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        A decisão de participar, em 2014, na Entrevista da TVI foi de iniciativa própria e contra a opinião dos amigos de partido. Serviu de trampolim para a entrar em cena na vida pública a nível nacional. Em casa teve o apoio total do Orlando e da filha mais velha, e a desaprovação da mais nova que, desde cedo, viu a mãe e a irmã comentar os sucessivos big brother nas redes sociais, mas via com maus olhos a exposição da própria mãe, em programas odiados por pessoas de bom senso. A Mariana estava longe de ter herdado a astúcia da mãe. Com aguçado faro político, a Ana Paula sabia que ser ouvida, notada e reconhecida era essencial. Sempre fora seduzida pelo poder e sabia bem como o alcançar. E a participação no reality show A Entrevista, como para muitos outros aspirantes a políticos a aparição em debates no mundo televisivo ou virtual, foi um passo decisivo na caminhada da política da nova era.

        Mas nem tudo foram flores, a nova visão ambiciosa não era comungada por muitos no partido. Tal como a Mariana, consideravam vergonhoso tomar parte desse mundo. Uma coisa seria a desejável participação em debates televisivos, outra a exibição da vida em directo. A Ana Paula contrapunha tratar-se de vozes do Velho do Restelo e que só em Portugal se pensava de forma tão senil. Custava-lhe ter uma filha antiquada aos vinte e um anos. Uns anos mais tarde, em defesa daquela participação televisiva, tentava dar exemplos de outros países, mas só ocorria o Trump e percebia não ser boa ideia trazer o personagem às discussões. Declarava-se mulher desempoeirada, sem nada a esconder. Achava perfeitamente normal mostrar-se a si e à sua vida aos portugueses para que pudessem saber o que contar. Não estamos no tempo das trevas. Já não é preciso esconder o corpo, a vida e as ideias, dizia. Vivemos num país livre e isto sim é liberdade. Devemos mostrar como somos e a forma de pensar, acrescentava.

        A Mariana tremia transida com estas frases. Mais? Mostrar mais, ainda? Olhava à volta e via os colegas na faculdade a mostrarem como pensam e são, via os professores, os funcionários, as pessoas nos restaurantes, nos supermercados, nas estradas, nas praias, nas salas de cinema. Desejava tanto que reservassem um pouco o que pensam e são, e dessem espaço e oportunidade à expressão dos outros. Ou, simplesmente, houvesse algum silêncio. A direcção nacional do partido também viu, por razões diferentes das da ingénua Mariana, com maus olhos a participação de uma militante em funções autárquicas no reality show. Se antes a Ana Paula obtivera sinais a nível central de eventual lugar destacado nas listas ao próximo congresso, a direcção do partido, por altura da exibição das primeiras entrevistas na TVI, arrepiou caminho e considerou retirá-la das listas. O apoio tido de antemão estava comprometido. No partido instalou-se o medo de ser confundido com big brothers. A razão principal do volte face teve origem, sobretudo, no gozo demostrado pela elite de comentadores de Lisboa. A chacota versava sobre o provincianismo de Ana Paula, que apesar de muito tentar não conseguia disfarçar a pertença e identificação com a sua terra. Como é sabido, comentador ou político que se preze, faz questão de se mostrar cosmopolita, apesar de frequentemente não ter a mais pequena ideia do que isso seja. E uma das formas de se demarcar do passado recente é destratar o resto do país e as suas gentes, até as mesmas migrarem, como eles ou os ascendentes fizeram, e transformarem-se em prezados amigos de sempre na capital.

        Na caminhada até Lisboa, a figura principal atravessou vários níveis de provincianismo. O próprio, traduzido na pequenez de espírito e na vontade de ser diferente, de se aproximar da imagem de sofisticação vista nos colegas de partido, elementos de grupos restritos de interesses. Mas também, e ainda, numa reminiscência de adolescente: a eterna vontade de se aproximar da imagem transmitida na televisão ou, nos tempos modernos, nas secções de lifestyle dos portais virtuais. E o provincianismo dos outros. Dos ascendidos ao degrau da escala dos que contam e riscam. A protagonista saloia enfrentou, então, os provincianos intelectuais já instalados. Bajuladores de universidades fora de fronteiras, onde estudaram por breve período, e onde tiveram o prazer supremo de se cruzar nos corredores com autores de livros que só conheciam das prateleiras, a quem começam a imitar os tiques. Deslumbrados a abrir fileiras de discípulos dentro do país, entre estudantes nas faculdades onde têm aulas ou apenas por cultivarem a vaidade pacóvia do clã por terem lido meia-dúzia de excertos de textos ou visto uma entrevista na televisão. O importante é cada um fazer questão de se mostrar superior ao anterior, nem que seja à custa de muito calço de intrujice. É a matrioska da vanglória. Cada degrau de vaidade faz questão de espezinhar a vaidade do degrau anterior.

        A palermice não grassa só entre os intelectuais. Em regra, Portugal ainda não se libertou do medo da colagem à imagem do saloio. Tal induz os portugueses mais informados, e supostamente mais cultos, numa saloiice mais perniciosa para a afirmação do país: a bajulação do que é estrangeiro ou novo, em detrimento do português ou antigo. O cunho português ou o tradicional, salvo a excepção de ter tido elogio estrangeiro, é sempre referido em sentido pejorativo.

        Daí permitir-se passar em horário nobre da televisão, sem qualquer registo de desagrado, reparo tonto de personagem de origem britânica sobre o carácter terceiro-mundista do Porto, num tempo em que ainda não havia hotéis e restaurantes padronizados ao gosto do turista plástico. E reproduzirem-se os que aderem ao novo-riquismo de quem, no modernismo endinheirado do cliché, nunca chega a conhecer a alma da terra pela qual passa, nem a sabedoria das suas gentes. Há uma expressão portuguesa antiga, a fazer cócegas na inteligência dos mensageiros da sofisticação, que a catalogam de rústica, usada restritamente para caracterizar gente parola, presente em qualquer parte do mundo, com pretensões a ser civilizada: piolho em camisa lavada.

        Enfrentou sobretudo o provincianismo dos comentadores e humoristas virtuais e televisivos com audiência, que enchem o espaço da comunicação social de salmos politicamente correcto, disfarçados de mínimos civilizacionais. Como se o respeito pela vida e pelo próximo, fosse inverso a factos menos in ou menos fracturantes. No espírito destas almas educadoras do povo, na dúvida a escolha será sempre contra a realidade. Têm total desconsideração pelo tecido social português, absoluta ignorância sobre a inteligência nacional, sempre menosprezada, sempre desdenhada, ou porque é de direita, e num país de esquerda há quarenta anos, ser de direita passou a ser sinónimo de acefalia, ou é civilizada, num país em que se confunde democracia com grosseria, ou não é de Lisboa, num país de migrados, envergonhados das origens rurais e deslumbrados com a luz da grande cidade, que não os parece iluminar, ou não tem formação académica superior, no país de licenciados e mestrados analfabetos, mas cheios de si.

        Ao contrário do previsto pela direcção do partido, a saloiice da Ana Paula foi sua sorte e o seu triunfo eleitoral. Os portugueses deixaram de se rever em provincianos disfarçados e enfatuados. Começam a preferir os genuínos. Afinal, para quê votar em políticos falsos, quando os originais passaram a ter condição elegível. Contra as expectativas da direcção do partido a Ana Paula ganhou os cem mil euros do concurso e passou a ter notoriedade e estatuto suficiente para ocupar o lugar de cabeça de lista pelo círculo de Aveiro. Escolha muito contestada dentro do partido, mas revelada certeira, face ao bom resultado num círculo eleitoral dominado pelo PSD.

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        Passou o fim-de-semana seguinte a ler o caderno dos pais da Margarida. Deu por si a tentar decorar definições. Mas depressa percebeu não ser suficiente. Não se estava a preparar para o exame da faculdade, mas para debater conceitos, até então, nebulosos. Começou pelo conceito de liberal, que a deixara perplexa nas últimas conversas dos compinchas de partido. Dizia-se liberal desde a adolescência. Achava, aliás, uma marca que a distinguia das mulheres do seu círculo familiar e social. E a perplexidade nas conversas decorria da animosidade demonstrada pelos comensais face ao liberalismo. A Ana Paula desconhecia a existência das várias facetas, e se a dos costumes coincidia tenuemente com aquilo que considerava ser uma pessoa liberal, as facetas política e económica e as suas derivações eram todo um mundo desconhecido. Não percebera até ao momento que a liberdade de expressão, a igualdade de género e a defesa de eleições democráticas são bandeiras da doutrina liberal. E nunca se questionara sobre a legitimidade da propriedade privada ou sobre a liberdade de mercado. Por isso, não percebia o tom insultuoso dirigido pelos convivas às pessoas do quadrante político oposto. Passeou-se também pelo capitalismo e pela propriedade privada. E só aí pôs em causa o afirmado pelos novos amigos. Afinal, o capitalismo não lhe parecia tão mau. Ter propriedade, ter a propriedade dos meios de produção, pagar a quem trabalhe e acumular riqueza não lhe pareciam princípio de vida errado. Só colocava em questão o montante da retribuição pelo trabalho, em momento algum, a questão da legitimidade da propriedade plena dos meios de produção pelo capital.

         A Margarida achava piada à socialista não ter sequer um lampejo de dúvida sobre a propriedade dos meios de produção, de se limitar a considerações sobre a justiça do salário, não questionando a própria existência do trabalho assalariado. Não só o comunismo estava arredado das ideias da Ana Paula, o próprio socialismo era apenas palavra vã. Como é habitual as decrescências das doutrinas, acabam em balofices inúteis.

       Cândida, a narradora admitia a hipótese de colher as melhores potencialidades do combinado liberalismo e socialismo, depurando de imperfeições e perversidades os rebentos capitalismo e comunismo. Não desconhecia os desfechos autoritários do comunismo nem as desigualdades gritantes no seio do capitalismo. Atrevida, a narradora achava que seriam arestas a limar na evolução do híbrido de liberalismo e socialismo, a antecâmara do novo estádio de civilização. Chegada a este ponto, já ouvia os brados pelos milhões de vidas perdidas nas ditaduras comunistas e as reacções inflamadas contra a exploração pelo capital. A aversão total de uns por outros, impedia-os de ver o óbvio: a sensatez aconselha a concertação destas doutrinas políticas e económicas, corrigindo as arbitrariedades. A única forma de impedir os desvios autoritários e nacionalistas e mais uns milhões de mortes escusadas. Não se tratava de manter a mera convivência pacífica entre dois mundos teóricos díspares, que se revezariam no poder, em governos indistintos, dirigidos por políticos fracos e capturados por interesses duvidosos, agarrados ao poder, perpetuando lugares e benesses para os próprios e apaniguados, com o conluio dos intelectuais vigentes que, ao lançar mão de críticas inofensivas, mostram quão farsantes são. Maravilhados pela forma como a nova democracia favoreceu alguns, mormente eles próprios, esquecem os outros, a imensa mole de gente descontente, sempre enxovalhada pela elite bem instalada. Os potenciais eleitores de populistas. Fartos de ser aldrabados, enxovalhados e destratados por um grupo pessoas cheias de certezas e de superioridade moral e intelectual. Alvo da chacota primária por quem regozija a eternização das injustiças, milhões de trabalhadores, tantas vezes mal pagos, vêem os impostos desembolsados serem canalizados para enriquecimento de corruptos, de lapas requintadas a meras baratas do poder. Deparam-se com o tráfico escancarado e despudorado de votos de subsídio-dependentes e de reivindicadores de qualquer causa da moda, fácil de satisfazer, ou de fanáticos de democracias faz de conta. Vêem empresários sufocados por impostos e obrigações legais a visar única e exclusivamente a proliferação de monopólios e o favorecimento de grandes grupos empresariais, que têm a possibilidade de se deslocalizar e de fugir à carga fiscal, conseguindo minar a sobrevivência de qualquer negócio de menor dimensão. Condenados à nascença pela liturgia da consultoria financeira internacional que, desfasada do genuíno, sentencia à morte, pelo mundo fora, todas as realidades não enquadráveis em estudos e linguagem infundada e especulativa. Vêem ainda populações rurais militantemente menosprezadas ou simplesmente esquecidas. E produtores agrícolas constrangidos a praticar preços de venda irrisórios, totalmente desfasados do custo de produção, mais uma vez a troco de subsídios, que enviesam qualquer possibilidade de uma economia justa e séria.

        Em vez de perder tempo com propagandas políticas patéticas que vão ao encontro de cada anseio, de cada indivíduo, a cada momento da existência. Em vez da atraente e moderna defesa das identidades, da cura prometida para mágoas e ressentimentos individuais e, tantas vezes, mesquinhas, propunha-se encontrar um denominador comum da base da sociedade. Soluções a servirem o bem-estar da colectividade. Sorria com a concessão. Ao fim de trinta anos deixara de sacralizar o individualismo e a liberdade individual. Para tando bastou ver a ideia levada ao absurdo, percebendo que tudo tem limites, até a liberdade.

        Não se tratava de manter democracia nos actuais moldes, mas sim reformar este frágil regime, antes que seja engolido pelo populismo. Com a linguagem do real e do concretizável. Fazendo concessões efectivas e palpáveis às populações, que veriam a sua integridade respeitada e, se possível, as vidas melhoradas. Não em resposta a demandas pontuais das populações, mas em razão do todo justo e razoável. De forma a não se tentarem com falsos profetas. Só nesta base via possível a manutenção da democracia, como travão do fascismo à espreita. Adivinhava a desconfiança e o gozo que tais pensamentos inspiravam em mentes mais instruídas e atraentes. Ainda assim, insistia. Apesar de nada disto ser apelativo, nada disto dar mostras dos dias correntes.

       Via a retribuição do trabalho numa base de relação horizontal entre a propriedade dos meios de produção e a força de trabalho, em atenção a estarmos face a dois sujeitos que concorrerem para o objectivo comum: o lucro e o crescimento da empresa, que deverá ser partilhado de forma igualitária. Acreditava no fim efectivo do arcaísmo do dar emprego. Nada se dá. Troca-se. Mesmo sem a compropriedade dos meios de produção do trabalhador, quando muito o dono da empresa vende o posto de trabalho a troco do serviço e o funcionário vende o serviço a troco da retribuição.

        Estava ciente da necessidade da estrutura hierárquica nas unidades de produção. Se a horizontalidade da relação laboral era possível na propriedade e na distribuição do lucro, nunca o seria na gestão, onde é preciso haver cadeia de comando. Acreditava na progressão profissional em função de objectivos quantificáveis e defendia a intervenção do estado, em matéria de salários e de progressão profissional, cingindo-se à definição de regras claras e objectivas quanto aos critérios de avaliação e eficácia nas diversas áreas. Seriam determinados através da legislação dos factores determinantes do salário x ou y, em função da conjugação de critérios objectivos e mensuráveis, como a assiduidade, a categoria profissional, a formação, o desempenho, a criatividade, a rentabilidade ou outros. Com mecanismos de fiscalização eficazes, que pusessem cobro às previsíveis manobras de contornar a lei. As empresas teriam de se sujeitar aos critérios definidos, imutáveis a cada legislatura e reflectidos para as seguintes. Cederia o liberalismo em prol do bem-comum. O centralismo socialista, em moeda de troca, emagreceria substancialmente, saindo da esfera dos negócios, território próprio da iniciativa privada. Libertaria os sectores mantidos reféns e deixaria de intervir e subsidiar a economia de forma a deixar de a enviesar. Decretando regras claras, objectivas e justas, desvinculadas dos diversos lobbies. Actuaria como árbitro e não um concorrente gigante e desleal no mercado livre. A Margarida acreditava no centralismo regulador e numa economia a desenvolver livre, mas regradamente.

        Não se resignava às novas correntes de pensamento que profetizam como consequência do caminho da automação do mundo moderno e tecnológico, a desocupação de cerca de um terço dos habitantes do planeta a quem, como há dois mil anos, é preciso dar pão e circo. Pensamento que incorre do deslumbre ou da demonização da robotização e da sua potencial perfeição, e na falta de constatação de para cada robô serem precisos vários indivíduos que o criem, usem e corrijam os defeitos. E outros para os abastecer de energia, transportar, fazer a manutenção, enfim, infinidade de acções que escapam aos distraídos do essencial: a iminência de conflitos e desastres naturais à escala mundial, o ajuste certo da densidade populacional do planeta.

        De qualquer modo, percebia a necessidade de suprir as deficiências económicas dos mais desfavorecidos. Razão pela qual, via com bons olhos o rendimento universal experimentado em países do norte. Ao estado compete, através dos impostos cobrados, conceber a redistribuição justa, sendo vantajoso criar o rendimento universal graduado em dois escalões. No primeiro escalão, dirigido em especial ao grupo constituído pelos que podendo, não trabalham, seria dado o mínimo de subsistência, a estender todos os cidadãos, fosse qual fosse a sua condição. No segundo escalão, compreendido pelos que façam prova de não poder trabalhar, seria dada o mesmo valor do anterior acrescido da compensação pela contingência, valor correspondente ao considerado vida condigna. Aos primeiros porque a sociedade comporta sempre margem de gente avessa às regras de convivência em comunidade, mas seria desumano recusar o mínimo de sobrevivência. E porque a justiça da medida seria perdida caso se não estendesse a todos, o oferecido apenas a alguns. Aos segundos, porque aos respeitadores das regras mínimas de convivência, ou aos que não as infringem voluntariamente, devem ser dados meios para uma vida condigna, independentemente da sorte a que estão sujeitos.

        É de mim, ou esqueceste a Ana Paula? O Vicente, ao aproximar-se e ler o último capítulo. Sim, distraí-me, ela estava a ler a Comezinha de 1991 e levantei voo, respondeu a Margarida, ainda absorta pelo manifestado. Estou a arriscar-me muito, não é? O namorado riu. Que queres que te responda? Avante camarada? Se nem tu estás convencida. Queres é apoio. Mas não vais ter. Nem penses, concluiu ele. Ela encolheu os ombros, balbuciando: vamos então voltar à história.

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        A Ana Paula concluíra a licenciatura de psicologia em Setembro de 2002, no início do ano seguinte assumira a direcção do departamento de recursos humanos da câmara municipal de Espinho. E, como seria expectável, aderira à política. Se a militância no partido socialista, neste momento de viragem e nos primeiros anos, fora pouco mais do que o crachá a exibir nas alturas certas, poucos anos mais tarde passou a ser vivida de forma intensa. Fez parte de várias acções de campanha locais na eleição de José Sócrates, como primeiro-ministro, em Fevereiro de 2005.

       Os jantares da nata socialista sucederam-se nesse ano, e a casa do agora bem instalado casal, Ana Paula e Orlando Barbosa, passou a ser ponto de encontro das mais influentes figuras locais do partido. Entre os comensais habituais estavam Fernando e Cristina Costa e o Paulo Martins, membros do Rotary Club. A protagonista começou a perscrutar o plano das ideias. Palavras que estava acostumada a usar para se definir a si própria, como argumento solto e inconsequente ou apenas para denominar aliados ou inimigos, como liberal, capitalista, socialista, fascista, ganharam novo esplendor na boca daqueles novos amigos, cuja eloquência tanto a atraía. Como algumas vezes havia acontecido no passado, sentia-se fora de pé, e não era menina de ficar nessa situação muito tempo, pelo que haveria de perceber os diálogos dos convivas. Resolveu ir à livraria, e perguntar à Maria das Neves se tinha algum livro de ciência política. A velha livreira fez sinal de volto já, passou pelo marido mostrando expressão incrédula, remexeu numa das prateleiras e voltou, pousando em cima do balcão O Príncipe, de Maquiavel e a Ciência Política, de Adriano Moreira. A Ana Paula mirou a capa do primeiro e admitiu que história não era o forte dela, e abrindo o segundo fez deslizar o dedo indicador pelos tópicos do índice: a laicização liberal, o colonialismo demo-liberal, a concepção cristã do Estado, num ápice fechou o livro e só então leu o nome do autor. Franziu o sobrolho, perguntando: este não é o antigo presidente do CDS? É, respondeu Maria das Neves, e acrescentou: e antigo ministro do ultramar, no Estado Novo. Credo, sacudiu a Ana Paula. Não tem aí coisa mais arejada? A Maria das Neves sorriu, repetiu o volto já, e piscando o olho ao marido, que arrumava os livros em cima da mesa central disfarçando não estar a seguir a conversa, foi buscar a Comezinha de 1991. Entregou o leve e maleável caderno de setenta páginas. As capas das Comezinhas eram conhecidas da Ana Paula, por vê-las desde criança, na montra da livraria, sempre encostadas na parede do lado esquerdo, aos pés da Constituição ou de Fernando Pessoa. Começaria pela Comezinha Política, mais tarde, se tivesse oportunidade aprofundaria o conhecimento, pensou ao procurar os trocos para pagar o pequeno tesouro. Quando ia a sair, o velho marido da Maria das Neves provocou: não leva a Nova Gente? Não, disse a Ana Paula, mas posso levar última Caras.

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        Se do Carlos Alberto e outros colegas e amigos de liceu, perdera o contacto, com a Helena conseguiu restabelecê-lo por volta de 2011, quando a filha mais velha ingressou no ensino superior. Sem alarde e contrariando a intenção dos pais, que concordavam casasse em Espinho, numa pequena quinta com casa destinada a festas, a Helena resolvera casar em Coimbra, onde vivia desde os dezoito anos. Tinha plena consciência que a decisão de ir para Coimbra, e de lá permanecer depois de acabado o curso, fora a mais acertada da sua vida. Desta forma, conseguiu espaço para respirar e ganhar a autonomia necessária, e confiar em si própria, vingando como gente. Não via a Ana Paula desde o jantar de convívio em 1996. Por isso, estranhou quando, em 2011, recebeu o telefonema da amiga de infância, a comunicar que a filha mais velha, Inês, iria para Coimbra fazer o curso de design e multimédia, pelo que, disse-o sem rodeios, contava com a velha amiga para dar o apoio necessário. E, nos três anos seguintes, os encontros sucederam-se um pouco contra vontade da Helena, cuja tranquilidade entretanto alcançada já não fazia tolerar as invasões de espaço e a falta de freio da antiga amiga, que se pespegava em sua casa com marido e filhas, a atazanar alguns sábados. Tardes passadas a seis. As miúdas deslocadas na sala apinhada de livros, vinis e cd, esses estranhos objectos do século passado, que sobreviviam naquela casa lado a lado com plantas da mais variada espécie. O par de homens a procurar temas de conversa comuns entre silêncios custosos, que só se diluíam no desviar do olhar para a televisão. O comando a distância conveniente de duas jovens curvadas sobre os smartphones, por onde deslizavam os polegares. E o par de mulheres em que uma falava quase interruptamente e a outra balbuciava hums, hums, pois, pois, e outros monumentos da eloquência, intervalados com tentativas de desviar a conversa de assuntos que não se cravassem em coisas ou pessoas. Em tentativas raras de agradar aos donos da casa e, num misto de vontade de exibir a sua ilustração, a Ana Paula recordava tempos antigos, o expendido filme de culto do genial Tarantino, o Pulp Fiction, ou os saudosos e fantásticos Nirvana, e seu som alternativo. Filme de culto e música alternativa eram expressões adquiridas nos anos noventa e que a elevariam ao patamar das pessoas que riscavam. Ou seja, da mole de gente que consumia e gabava tudo quanto era vendido com o rótulo de exclusivo.

       Mas, como sempre, o mais marcante destes ocasionais sábados era a preponderância imposta pela Ana Paula. Gostava da ressonância das suas palavras, gostava de se ouvir e gostava que a ouvissem. E falava por cima dos outros. Achava perda de tempo ouvi-los, a não ser que lhe contassem uma história de intriga, daquelas que detonam a curiosidade e a bisbilhotice. Saber dos outros, como se sentiam face a determinado acontecimento ou circunstância, o que os interessava, o seu dia, as suas alegrias e tristezas, era tudo desperdício de tempo. Do ponto de vista da Ana Paula, o tempo seria sempre melhor usado a falar de si própria ou a falar de agrados e ódios do que a ouvir os outros, que acha invariavelmente terem vidas chatas ou sem importância. Tudo gravita à sua volta. E mesmo como mãe, apesar da aparência de mãe zelosa, cuja imagem promove junto de familiares, amigos e colegas de trabalho, dando a ideia de mãe galinha sempre a par da vida das filhas, a verdade é que as trata como meros satélites. Nunca lhes dera importância como seres autónomos que merecem respeito, atenção e incentivo pelos seus interesses, escolhas e decisões. Não havendo coincidência exacta com aquilo que considera ser a orientação certa dos satélites, despreza todas as vontades, opiniões e decisões, não por prejudicarem os rebentos, mas pelo motivo fútil de não corresponderem à imagem de sucesso que criou ou tão simplesmente por não ter tempo ou pachorra para as aturar. Duas palavras a definem: primeiro eu.

       A filha mais velha, a estudar em Coimbra, era rapariga determinada e segura de si. Puxara à mãe, impondo-se facilmente aos outros. Já a Mariana, era uma miúda retraída e confusa. Sofria de sensação de inadequação e, em família, não conseguia ultrapassar as dificuldades. A mãe e a irmã eram incapazes de a compreender e de permitir que manifestasse o temperamento. E, ao cabo dos anos, o retraimento crescia na directa proporção do aumento de investidas no seu espaço de afirmação, criando o círculo vicioso que dificultava a definição do carácter da Mariana. A Helena percebeu facilmente os sinais, e aproveitou alguns momentos daqueles sábados, para conversar com a ela, dando respaldo que a miúda até, então, só encontrara em amigos da sua idade. À Ana Paula parecia estranha a cumplicidade estabelecida entre a filha e a velha amiga. Como é que uma miúda de quinze anos alinhava nas tretas desenxabidas, como plantas ou pintura, e gostava daquela casa tão pouco clean. O pó dos tapetes, dos livros, das telas e das plantas impressionavam negativamente a Ana Paula, que se tornara obcecada pelas limpezas, por causa das alergias. Além de mais a leitura, a pintura e a jardinagem eram coisas de reformados e desocupados. Gostaria que a filha se interessasse por coisas próprias das raparigas actuais. Que criasse uma página na internet sobre cosméticos, ou desenhasse uma colecção de biquínis ou monoquínis, como a irmã fizera com grande sucesso entre as amigas, ou um blogue sobre moda ou viagens. Qualquer coisa assim feminina e desempoeirada. Mas a filha mais nova desiludia-a; tinha interesses e amigos esquisitos e chatos, e agora mais esta, achava piada aquela casa cheia de poeira.

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        A Margarida acabou de escrever o capítulo anterior ressentindo-se de nítida sensação de culpa, o conceito judaico-cristão que aflige as pessoas que não aderiram à modernidade; culpa de se estar a desviar da narrativa. Não gostava de dar razão ao Vicente, mas concedia que não conseguira resistir aos já agora. O romance, ou lá o que é isto, começava a chegar ao fim, e os últimos pedaços de apontamentos que juntara desde que o principiou, em Abril de 2015, começavam agora a integrar o corpo do texto, à custa de muitos desvios. Temia que o livro fosse uma colcha de retalhos, mas acabava por se resignar a puras divagações. Ainda assim, a esperança de conseguir um todo coerente levava-a ao enredo da história e às aventuras e desventuras das personagens.

       A Ana Paula tinha curiosidade pela vida do Carlos Alberto, que se tornava evidente ao Oliveira quando recebia ocasionais chamadas do Orlando, a quem percebia no tom de voz, vir a mando da mulher. Como é evidente, não admitia ao marido a vontade de manter o contacto do antigo colega, de quem visivelmente nunca gostara. Mas pretendia informações novas, e desde que deixara de ir aos jantares, por se sentir desasada num grupo de amigos mais reduzido e cúmplice, o quinteto desta história, queria saber deles, sobretudo do Alberto, sem que o percebessem. Foi desta forma e sem sacrifício que o Orlando começou a dar-se com o Oliveira e a marcar jantaradas.

        Estavam num desses encontros, em 2006, quando ligou o Carlos Alberto, a viver em Paço de Arcos. Precisava da ajuda do velho amigo. Por sugestão de colega de trabalho, do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, comprara umas colunas tanoi e, inábil em matéria de electrónica, ficou espantado que não pudesse de imediato ligá-las à televisão como vira em casa do amigo de Lisboa. Abriu a caixa, tirou as colunas e conseguiu liga-las à aparelhagem, mas e agora, pôr o som do Gladiador ligado às colunas? Era a questão que se punha. Daí ter pegado no telefone, como muitas vezes fazia, e ter pedido ajuda ao Oliveira. Precisas apenas do cabo áudio para ligar ao amplificador. O Carlos Alberto, assustado, disse não ter isso do amplificador, desconhecendo até ter sido elucidado que a torre da aparelhagem pionier o incorporara.

       No dia seguinte viria a casa dos pais, a Espinho, por isso, combinou com o Oliveira encontrarem-se para irem juntos à Worten. Marcaram nesse Sábado, no Centro Comercial, indo também o Orlando, que aproveitou, como aproveitava sempre, para tentar estabelecer ligações com quem vivesse em Lisboa, e que lá estivesse instalado e bem relacionado em termos profissionais, já perscrutando a possibilidade dele próprio ter que se mudar, em resultado das ambições da mulher.

       O Oliveira e o Orlando chegaram mais cedo e divertiram-se a ver o Carlos Alberto subir as escadas rolantes e voltar-se de costas para babar à visão de uma rapariga esguia, de cabelos escorridos e sorriso seco, que descia ao parque do Arrábida Shopping. Quando o amigo os viu, riram do flagrante, não tendo ele alternativa senão assumir o deslize. Mas perante o espanto do velho amigo, atirou: tu viste-me aquele avião? Vi vi, a avionetazita, respondeu o Oliveira, não contando com a inesperada desenvoltura do antigo tímido. O outro continuou: Então pá? Tudo? Vai-se, chama-lhe zita, chama. Vais dizer que não marchava? O pasmo aumentava, mas o Oliveira resolveu não acusar a toque, e alinhar: à falta de melhor. E Carlos Alberto insistiu, hás-de dizer onde é o teu caixote de lixo.

       A conversa morreu ali. O José aligeirou a apresentação do Orlando, e em gesto largo encaminhou-os pelos corredores em direcção da loja. Enquanto andavam, e ao som das banalidades que os outros iam trocando, à cabeça do Oliveira vinham à memória os mais imbecis roncos que sabia serem da autoria do amigo de liceu, na caixa de comentários de alguns jornais online. Se o Carlos Alberto não conhecia os gostos dele, já este lhe conhecia bem não só os gostos e ódios de estimação como percebia nas entrelinhas as razões de tanta promoção. Perfeitamente analfabeto em tecnologia, fora o Oliveira a introduzi-lo ao mundo online. E fora ele a criar o email e até o nick name. Básico, não teve imaginação suficiente, ao longo dos anos, de sair do adquirido por sugestão do amigo, mantendo o mesmo email e comentando em diversos espaços online com o nome de utilizador Cato, abreviatura do nome, que numa tarde de tédio o Oliveira escolheu ao amigo. E quando não era Cato, era outra palavra ou sigla desinteressante seguida da idade ou data de nascimento. Ainda na semana passada lera crítica do amigo a notícia de trivialidades, que estava em destaque na página, cujo design era mantido sobre orientação do Oliveira. Em comentário a fotografia publicada por uma qualquer mulher que gosta de mostrar o corpo nas redes sociais, lia-se a singela frase assinada por Beto65: baleia dá à costa. A rapariga não tinha, é certo, os quarenta e cinco quilos das modelos dos desfiles das pernas torcidas, nem a cara de morta-viva apreciada pelo mundo da moda. Cheia de curvas, revelava-se uma mulher inteira, bonita e bem-feita. O tipo de mulher que assustava o Carlos Alberto, e muitos homens atarantados com a sensualidade.

        Bem-feita, feita. As palavras martelavam na cabeça. Conhecia bem os contrastes entre os gostos declarados dos homens e os seus vícios privados. Assim como depreendia as razões para gostos e desdéns. Uma antiga namorada despertara ainda mais a sua atenção para as contradições, ao dizer-lhe numa daquelas conversas de cama, que só se têm com cúmplices, que havia três razões para parte dos homens gostarem de mulheres magras ou muito magras e demonstrarem desprezo por todas as outras, a que costumam chamar gordas. Três razões ou três tipos de homem. Os fingidos, os influenciáveis e os tarados. Ria-se ao relembrar o sorriso franco e aberto da antiga namorada e a forma irónica como o dizia. Ficou sempre na dúvida se era provocação ou se a Eduarda acreditava mesmo no que afirmava. E dizia ela que há homens que fogem das mulheres voluptuosas, dando grandes ares de gatos refinados espantados, para no recato da intimidade se desfazerem em fantasias com mulheres carnudas, de apreciável peito e rabo pronunciado. Outros que aderiram ao mundo da magreza porque sim, porque é dado, faz parte da sua geração, tal como o sofá de canto a que chamam chaise-longue e a moldura digital, como há cinquenta anos, os pais tinham aderido ao pechiché, às andorinhas e ao menino da lágrima. E, por fim, os homens que não conseguem ficar indiferentes ao corpo de um rapazinho adolescente e que não podendo satisfazer a sua líbido doente no alvo de eleição, procuram no corpo de uma mulher muito magra, a semelhança que precisam no despertar do prazer. São casos clínicos que passam despercebidos, disfarçados no meio da moda generalizada da magreza.

       Martelou outra vez na palavra feita. Um homem adulto de bom gosto sente atracção por uma mulher-feita. Sem sombra de dúvida. Sentiu sintonia na vida que levava e agradeceu a plenitude e beleza física da mulher que escolheu para companheira e mãe dos filhos, e percebeu que chegara à porta da loja, na qual precisaria de estar mais concentrado e encontrar o que o amigo procurava. Um cabo áudio. Afinal era disso que se tratava.

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        Terminado o curso, o Luís estreara-se a dar aulas de geografia no ensino secundário. Nos primeiros quatro anos deambulou por algumas escolas do norte do país, até arranjar colocação em Gaia. Mas a incursão no ensino durou apenas sete anos. Enquanto andou por fora, em escolas pequenas de meios rurais do Minho e de Trás-os-Montes, sentia-se bem a cumprir um papel, o de professor. Os miúdos, mais ou menos barulhentos e mais ou menos interessados, iam à escola muitas vezes contrariados, mas aprender qualquer coisa. Ao contrário dos encontrados nos dois anos em que deu aulas em Gaia e no Porto, onde não conseguia fazer perceber a criaturas a rondar os dezasseis anos, que havia o que aprender. Estavam todos convencidos saber tudo e tudo poder ensinar.  E entre a indisciplina e estupidez generalizada era quase impossível levar algum conhecimento aos poucos que se mostravam curiosos e interessados. Por isso, em 1996, tratou de arranjar colocação no segundo ciclo; achou graça a leccionar a crianças de dez e onze anos, na idade das descobertas. Ainda não estavam estragados pelas certezas que dominam o mundo adolescente, o universo moderno. Ali a missão de ensinar voltaria a fazer sentido. Mas se os miúdos o inspiravam, os colegas nem por isso, pelo tédio demonstrado por alguns em ensinar seja o que for a crianças. Conflituou bastante com o professor encarregue da direcção de turma. A atitude na escola deste ilustre docente pouco diferia da conhecida dos miúdos indisciplinados a quem dera aulas nos dois anos anteriores. A postura de enfado imbecil era a mesma. Tivera o azar de apanhar um frustradíssimo colega de profissão, cuja verdadeira vocação seria estar no guiché a preencher formulários e carimbar documentos, entre atestados médicos e licenças. Dono e senhor de profunda incapacidade de expressão oral e escrita, fundada na enorme ignorância, o espécime considerava-se um investigador de mão-cheia, destinado a trabalhar no ensino superior, mas injustiçado e atirado para o trabalho menor de lidar com crianças. Empenhara-se no mestrado e no doutoramento em ciências ocultas, perdão, em ciências da educação, produzindo teses ideológicas, sem qualquer critério científico, que envergonhariam um aluno de liceu, de mediana inteligência. Para o efeito os contribuintes pagaram a bolsa ao senhor professor que, claro está, nunca pusera a hipótese de pagar o mestrado com o esforço do seu trabalho. Ensinar a crianças menorizava-o, e a conjugação da bolsa paga pelo estado e licença sem vencimento permitia o melhor dos mundos ao logro da ciência, que ainda assim reclamava do curto período de atribuição, quatro anos, e do montante da bolsa, miserável, na opinião dele, apesar de corresponder a bastante mais do que muitos têm, esforçando-se, para sustento da família. E quando a facilidade terminou, regressou à escola para desdenhar de alunos, de colegas e de funcionários, e claro, perorar sobre o péssimo estado do ensino em Portugal e questionar todas as políticas do sector. Acabava por ter respaldo em muitos outros professores insatisfeitos. As razões da insatisfação eram vastas, mas a Margarida concordava com o Luís, quando chegavam à conclusão de que os bons professores, os que respeitam e instruem os alunos apesar das dificuldades, são sempre os que menos se queixam do estado da educação do país. Talvez seja uma questão de aproveitamento do tempo. Os bons professores estão ocupados a preparar aulas, cingindo-se à matéria a leccionar, sem parangonas ideológicas ou azias e frustrações. Estão determinados transformar as horas passadas com os alunos em momentos de aprendizagem e de respeito mútuo. Estão a corrigir testes, cingindo-se ao acerto da resposta, sem se deixar cair em estimas e ódios, que resultam de preconceitos quanto à aparência, ao carácter ou aos comportamentos dos alunos. Estão focados na ideia de ensinar. O foco está nos alunos e não em egos mal resolvidos ou ambições financeiras goradas. Aos professores que deixam marca não sobra tempo, se não para viverem a vida fora da escola, cientes de dentro dela terem actuado como bons profissionais.

       Depois da incursão no ensino num grande centro urbano, o Luís ponderou voltar a concorrer para a escola onde mais gostara de dar aulas. Pegar em armas e bagagens e rumar à, então, aldeia de Arcozelo, em Ponte de Lima, entretanto elevada vila, e lá assentar arraiais, mas a vida dá voltas e desafiado por amigo de longa data a criar uma empresa, foi para perto, Santa Marta de Portuzelo, em Viana do Castelo, não dar aulas, mas produzir estruturas metálicas. Quando comentava os planos na escola, sentia a perplexidade da maioria dos colegas. Onde? Estranhavam eles. A ideia do Luís assemelhava-se a um mundo ao contrário. Este estranho colega fazia o percurso oposto. Queria inverter a normalidade. Parte substancial dos professores, como o grosso da população das grandes cidades portuguesas, viera de terras mais pequenas, de aldeias e vilas espalhadas pelo país e de lá fugira à procura da oportunidade de uma vida confortável. Gostavam de lá voltar, matar saudades dos poucos familiares que ficavam. Em muitos casos, voltar à terra significava demarcação do passado; era preciso vê-la para confirmar que já não se pertencia àquele lugar e àquele tempo, mas a um mundo diferente, moderno e melhor. Ou, então, em muitos casos, provinham dos bairros pobres das grandes cidades, em condições de vida muito frágeis, mudando-se agora para as urbanizações e zonas habitacionais novas e melhoradas, que cresceram exponencialmente ao longo das décadas de oitenta e noventa.

        O país mudou radicalmente em trinta anos. Nas cidades portuguesas, até aos anos oitenta, salvo uma franja de privilegiados, estava instalada a pobreza tanto ou mais do que nas zonas rurais, nas quais o recurso à produção de subsistência permitia acesso a víveres. Entre os anos sessenta e os anos noventa o país essencialmente agrícola transformou-se num país de serviços. Deu-se a migração de milhões de pessoas das zonas rurais para as cidades ou suas periferias no caso de Lisboa e Porto.  Moldou-se o novo-citadismo, versão de novo-riquismo, que se manifesta por suposta superioridade dos habitantes de cidade, alegadamente mais evoluídos. Ideia longe da verdade, já que a riqueza e o grau de civilização de um país só podem decorrer da educação e do conhecimento. Enquanto não se diferenciar educação de dinheiro e consumo desenfreado, e conhecimento de deslumbre e adesão às modas de cada momento, o país vai manter-se ignorante, atrasado e pobre.

        A democratização do ensino além da primária, o aumento substancial da média dos anos de escolaridade e o jorrar de fundos europeus mudaram o país. Proliferaram as infra-estruturas e o emprego, sobretudo nos serviços. Muitos portugueses puderam migrar para as cidades, e juntando-se aos que já cá estavam em pobres condições, puderam comprar casa e carro com recurso ao crédito, percorrer as novas vias rápidas e auto-estradas e desembocar à porta da sua terra, por altura da Páscoa, das vindimas ou perto da altura do Natal.

        A ascensão à qualidade de citadinos enriquecidos passou sobretudo pela imagem e pela linguagem. Antes de mais pelo modo de vestir e de se cuidar. A saia redonda preta, camisa clara, lenço, avental na barriga e chanatos abertos delas, e as calças castanhas, camisa branca, chapéu e chanatos fechados deles, deram lugar a todo um mundo de cor e novos cortes e texturas do pronto-a-vestir. O sabão rosa ou azul da mercearia e da drogaria deu lugar a infinita gama de champôs, sabonetes e geles dos hipermercados. O cabelo natural apanhado em puxo deu lugar a muita tinta, à mise e ao escorrido, cuidado no cabeleireiro, e o verniz berrante das unhas passou a certificado de modernidade. O vocabulário também mudou, os arcaísmos ficaram lá na terra ou no bairro, e hoje nos supermercados, nos bancos, nos cabeleireiros, nas empresas, nos centros comerciais, na rua ou em qualquer lugar onde se respire, reinam os advérbios de modo, os estrangeirismos, os termos da medicina, os preciosismos e todo o tipo de rebusque. Como diria a avó do Luís, nos idos de sessenta, aprenderam a falar como professoras de liceu. O português deixou de enjoar nas estradas portuguesas, de curva contracurva, para passar a ter náuseas por sobreviver a cinco horas consecutivas ao sol tórrido do Algarve no mês de Agosto, onde chega pela auto-estrada. Passou a acorrer em massa às urgências dos hospitais por causa de comichões e nódoas negras, ascendidas à categoria de reacção alérgica, pruridos, urticária e hematomas e, por isso, a novo grau de gravidade. O português enche as farmácias, florescidas à custa não só da desejável boa saúde dos utentes, mas também de uma panóplia de cremes, pomadas, pastilhas e bugigangas que só servem para entreter muitos com a ideia fútil de serem gente supostamente informada e cuidada. E aí se o salário ou o subsídio do estado não é suficiente para pagar todo este arsenal de luxos entorpecedores. Se isso acontecer vamos ter de ouvir vezes sem conta que o país está de mal a pior e falta o essencial, a miséria grassa e a saúde dos portugueses está em causa. Quando os portugueses cuja saúde está em causa são felizmente menos, apesar de serem cada vez mais os mesmos. Gente sem tempo de antena nas televisões e nas redes sociais, que vive de muito pouco, apesar de trabalhar uma vida inteira, e que nunca teve acesso a maior instrução. Gente sem capacidade de se fazer ouvir, ou porque acredita em coisas fora de moda, como o respeito pelos outros, ou porque tem medo de exigir o que merece, ou vergonha de viver da pedinchice, vista em concidadãos espertalhões. Porção do país desprezada por quem perora na comunicação social e redes sociais e por quem decide no Estado, e permite que essa fatia do país viva de salários e reformas miseráveis. Gente que nunca deixou de ser pobre, no campo ou na cidade. E mudos, longe dos gritos entoados sem esforço digno de consideração dos reivindicadores profissionais de regalias e privilégios, vivem com o pouco conquistado pelo esforço do trabalho e da contenção. Respeitar esta gente muda, reconhecer o seu valor e pagar o devido parece menos importante do que subsidiar os inúteis voluntários e fazer frente ao fosso entre sugadores e explorados.

        O grande fosso do estado novo, que dividia o país numa trincheira que salvaguardava a pequena minoria de privilegiados do país restante, pobre, analfabeto e opaco deu lugar à transparência dos muitos fossos. Fora desta trincheira, mantida até hoje bem à vista, na perspectiva económica, porque os altamente privilegiados continuam a sê-lo, estando o poder económico ainda mais concentrado em poucos, existe um sem número de outros fossos, o que separa o campo esquecido e a cidade prometida, como se a primeira tivesse sido proscrita do futuro e carimbada com o rótulo de passado, a visitar numa escapadinha de memória nostálgica.

       O fosso que divide o trabalho precário e mal remunerado do sector privado, do trabalho mais seguro e melhor remunerado na função pública, ou o fosso que divide empresas entre as que produzem e as que vivem à custa do erário público. A alusão a estas desigualdades é sempre sujeita à acusação de se estar a criar conflito desnecessário entre portugueses, e vai continuar a consumir a riqueza do país, não permitindo que se desenvolva e crie verdadeiro conforto aos portugueses como um todo. Medo de enfrentar a realidade, decorrente do poder encrustado em lugares na função pública e do tecido empresarial dependente do estado, leva governantes e fazedores de opinião a alimentar a fábula impostora do perigo da implosão do regime democrático, caso se mexa nessa base estável de eleitorado. Pretende-se, tão só, a perpetuação do status quo, através manutenção da base eleitoral dos partidos representados no parlamento, assente em aparente democraticidade dada por encenações de inconsequentes debates de ideias e críticas, que qualquer ser humano sensato percebe ser fantochada para entreter a opinião pública cada vez menos submissa e capaz de engolir o engodo. À custa da evidente pobreza do país, quando comparado com o que poderia ser, no seio da união europeia, e da perpetuação de desigualdades económicas e sociais gritantes.

       Os debates são invariavelmente os mesmos. Pela esquerda o bolo deve ser entregue a quem tem fome, pela direita quem tem fome deve ter acesso ao bolo. Para os primeiros o custo da entrega fica a cargo de quem não tem fome, ou pelo menos não tem tanta fome quanto quem tem mais fome. Para os segundos o acesso decorre do grau de capacidade do esfomeado para aceder ao bolo. A esquerda e a direita encontram-se no ponto de convergência dos mínimos civilizacionais, representados na defesa do estado de direito, que é a verdadeira sopa de pedra. Tem tudo, menos a pedra. A elite civilizada, venha de que quadrante político vier, que teve o tempo, a sorte e às vezes o empenho, de perceber a superioridade moral dos estados de direito resultante da distância que marca do olho por olho e dente por dente imposto pela barbárie, não parece perceber que o estado de direito não é um dado adquirido, mas uma vitória ou derrota a cada momento e, sobretudo, se a lei deve ser geral e abstracta, quem a decreta, executa, administra e quem com ela se conforma, é particular e concreto. O que muitas vezes significa que a defesa intransigente dos ditos mínimos civilizacionais, sem conhecer o terreno de aplicação das leis e a natureza humana, tem o efeito contrário ao pretendido, criando injustiças muito maiores das que se pretendem combater. A defesa insensata do estado de direito é, em alguns casos, o escudo onde se esconde a preguiça civilizada na aceitação das maiores aberrações, e o bem-comum, a pedra perdida desta sopa.

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         Se a Helena era sonsa e a Margarida chalupa, escreveria a Ana Paula se fosse ela a ter a mão na Entrevista, então, o que dizer do Luís? A protagonista nunca percebera aquele colega. Achava graça a algumas das tiradas, mas nunca percebia bem onde queria chegar. Por isso, não percebeu porque havia ele dito, quando se encontraram no Alfa Pendular a caminho de Lisboa, em Janeiro de 2015, ela para acompanhar a sobrinha e afilhada ao concerto da Violleta no Pavilhão Atlântico, ele para tratar de assuntos da empresa, que duvidava voltasse a dar aulas, como fizera até há quinze anos, e em Gaia nunca, ou no Porto, ou em Lisboa, ou mesmo em Espinho. Se algum dia a hipótese se colocasse optaria pelo norte, por Viana do Castelo, ou pelo sul, no Alentejo, ou pelas beiras, junto à Serra, com gente normal, o quanto mais longe dos lugares procurados pela maioria dos colegas. Ela retorquiu apenas que Gaia e Porto não lhe diziam muito, eram só as cidades próximas onde ia às compras nos centros comerciais ou ao médico, mas Lisboa admitia. Em Lisboa, sim, gostaria de viver. Cidade cosmopolita, com mais oferta cultural, onde tudo acontece, mais arejada. E aquela luz. O Luís sorria do lugar-comum e provocava em tom leve: em Lisboa não, estou a ver-te a viver na linha de Cascais, em apartamento com vista para o mar e, à noite a assistires, com o teu Orlando, à peça Subjugadas, a peça encenada por aquela estrela da televisão, jornalista, deputada, activista, atriz, escritora e agora também encenadora, cujo nome não me lembro. Ah? Estranhava ela. E ele continuava: isso claro, depois de jantares a ostra confeitada com creme de beringela e três riscos de essência de kombu, a que o chef, dono dos vários restaurantes espalhados pelo país, decorados em fusão de mosaicos marroquinos, cortinas de tule indianas, tapeçarias peruanas e mobiliário finlandês do Ikea, deu o nome de Marejada, conceito muito português te dirá ele quando vier à mesa cumprimentar a senhora deputada na nação. Eu? Lá estás tu a gozar, interrompia ela. Sim, tu, insistia o Luís. E terás uma reminiscência da tua decoradora do final dos anos oitenta. Vais recordar esses conceitos da cozinha e da decoração. E ao fim-de-semana, vais acordar tarde e procurar a esplanada animada na qual possas tomar o teu brunch, aquele crocante de centeio sem glúten, e aroma a baga de goji, acompanhado de batido biológico, onde nada a folha de hortelã. E irás regularmente às lojas da Avenida da Liberdade, onde estranharás a quantidade de compras que os angolanos e brasileiros lá fazem. Não tenho a menor dúvida que serás feliz em Lisboa, rematou ele, receoso de ter ido longe de mais. Eu? Lá estás tu a gozar, repetiu ela. Já lá passei algum tempo, como sabes, enquanto estava na TAP. Conheço bem Lisboa. Mas agora, nesta fase da vida, com família? O Orlando tem a vida dele cá e as miúdas e tudo mais, não é fácil mudar. Se tiver de ir, vou, mas nem sei como vai ser. O Luís vaticinou: confia em mim, está escrito nas estrelas, vais ser um sucesso nas eleições e vais para Lisboa.

       A Margarida esmiuçava o capítulo a rir consigo mesma do conceito. Afinal o Luís captava na perfeição o espírito da coisa. Só eles para continuarem a ir a antros de cheiro a grelha, como o Assador Típico, e deliciarem-se com galinha, costelinhas de porco, traços de vaca, espetadas de lulas ou bacalhau na brasa, acompanhadas de batatas a murro, arroz e saladas mistas e de pimentos. Que horror, que coisa de mau-gosto. Cozinha antiga mesclada pelos costumes vindos das ex-colónias. Sítios nos quais não se prescindia do piripiri. Até a frugal Helena alinhava; uma vez não são vezes e não era uma boa jantarada que iria fazer a balança ressentir-se. Há vinte anos o ponteiro andava, quando muito, dois para a frente ou trás. O carácter comedido e a natureza faziam a sua elegância. Ela e a maioria dos restantes convivas gostavam do que apetecia gostar, sem se preocuparem em dar imagem seja do que fosse. Em rigor, passavam uma imagem, a de gente saciada e bem-disposta, especialmente evidente nas barrigas do Luís e do Oliveira, e nos valentes quilos a mais da Margarida. Era patente que lidavam mal com conceitos. O amigo Carlos Alberto era o único que os dominava; mantinha numa forma invejável à custa da moda de sushi e gym, em perfeita harmonia com a consola em ésse no átrio do seu apartamento. Tremia face à possibilidade de os amigos voltarem a ter a ideia de ir à Cozinha do Manel, comer o Cozido, ou à Abadia para as Tripas. Com tantos restaurantes novos e com bom look, de tapas e petiscos, espalhados pelo Porto, tinham de escolher casas sem personalidade, moía ele. Nunca fazia bem a digestão desses almoços ou jantares. Se queriam comida tradicional portuguesa, concedia que fossem ao talentoso António, em Leça da Palmeira, Imbatível no cabrito e no polvo, concordavam todos. Mas não se pense que não cometia os seus pecadilhos; transigia na regra da contenção e não perdia a oportunidade de pegar num gin, servido em copo de balão, a única bebida alcoólica que bebia desde 2010, altura em que abandonou o hábito da Caipirinha, que aprendera a gostar, nos anos noventa, na vaga dos restaurantes de rodízio. Coisas do passado. Mas vinho à refeição não podia. Caia-lhe muito mal, pelo que as duas garrafas de tinto acabam sempre por ser divididas apenas pelos restantes quatro convivas, não sem o Luís perguntar no início dos almoços se as meninas não quereriam antes branco. A Margarida e Helena entreolhavam-se, sorriam e acabavam por dizer, salvo se a escolha do prato fosse lulas na grelha, estas meninas ressessas querem maduro tinto. O Carlos Alberto estranhava aquela forma de se referir ao vinho. Para ele ou branco ou tinto. Essa confusão antiga de maduro branco ou verde tinto era coisa de gente perdida nos tempos dos avós. E até por isso, achava uma forma de ignorância. O Luís e o Oliveira agradeciam, sabendo que assim mandariam vir duas iguais, e elas não beberiam mais do que dois copos; era bom negócio. Isto claro, se não fossem na cerveja, infalível para assistir à galinha no churrasco.

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        Começou o curso no ano da entrada em vigor de Bolonha, pelo que já não havia necessidade dos cinco anos da praxe. Mas à licenciatura em psicologia, abreviada para três anos, tencionava juntar o mestrado, de dois anos. Em cinco anos seria uma mulher diferente. Na voz do pai, uma doutorada. A Ana Paula encarou o curso corajosa, empenhando-se a estudar afincadamente, como nos tempos da meninice. Sob a perspectiva do tempo disponível, tinha o caminho facilitado. Apesar da vida atarefada de mulher e mãe de duas filhas pequenas, podia-se permitir estar no local de trabalho a ler os apontamentos e as cópias dos manuais de psicologia, que levava para o gabinete dos recursos humanos quase diariamente. Este comportamento em nada interferia com o desempenho profissional. Três quartos de hora ou uma hora de leitura de apontamentos por dia, não obstavam a que estivesse verdadeiramente concentrada nas restantes sete horas. Desligara as antenas das séries televisão, das fofocas das revistas e demais trivialidades para as ligar aos recursos humanos. De início, na elaboração de mapas de pessoal, processamento de salários, marcações de escalas, ou férias. No segundo ano, já ajudando a direcção na coordenação dos processos de recrutamento e selecção, na gestão dos processos de avaliação de desempenho ou na aprovação de mapas de férias. Tendo a cabeça bem oleada, lógica e nada poluída de inseguranças, era fácil esquematizar os procedimentos, interpretá-los e realizá-los em tempo útil sem dúvidas de maior, e se as possuía, facilmente resolvia o problema, questionando a Cidália, uma cinquentenária nos serviços da câmara desde a criação, há pouco mais trinta anos, dominando todas as matérias que poderiam levantar problemas à jovem colega. Na directora dos recursos humanos da câmara municipal, a Ana Paula encontrou mais um colo materno, capaz de enorme compreensão e abnegação. Em poucos anos estaria reformada, pelo que fez a discípula com brio, ensinando tudo quanto pode à dedicada nova colega. Ainda assim foram três anos difíceis por ter de, depois do horário laboral, arrancar em direcção ao Porto, em sentido contrário a transito, para se juntar aos colegas na faculdade de psicologia. A chegada ao Porto, ao final da tarde, era impactante. Causava-lhe estranheza a jovialidade dos colegas do horário diurno. Por vezes, os mais novos assistiam às aulas consigo. Achava-os irresponsáveis e desinteressantes, incapazes de perceber o esforço e o trabalho necessários para estar ali todos os dias apesar da vida ocupada. Já com maioria dos alunos do pós-laboral sentia certa cumplicidade.  Como ao longo de toda a vida, criou laços com alguns, partilhando e tirando dúvidas sobre as cadeiras, que foi fazendo, sem dificuldade de maior.

       Nos trinta minutos de caminho entre Espinho e o Porto, muitas vezes se lembrou dos colegas de liceu. Deu por si a pensar, em especial, no Tomás e na Helena. Espinhas atravessadas na garganta. O primo do Pedro, que só por este facto já lhe causava aversão, acabara o curso de direito na melhor faculdade do Porto, diria o próprio. Ou seria do país? Com jeitinho, um ranking internacional ainda a colocaria entre as mais prestigiadas do mundo. Pelo menos assim estavam convencidos, ele e a maioria dos colegas de curso. Porque não da galáxia, zombaria o Luís se ainda o ouvisse àquela época. O certo é que fora trabalhar em conhecida sociedade de advogados e parecia sair-se muitíssimo bem. A Margarida perguntava-se se não desprezara as virtudes da retórica e do elogio fácil. Afinal a prática de um e outro tinham o condão de converter o adolescente néscio em adulto bem-sucedido. A maldade induzia-a a não investigar se tal sucesso obtinha correspondência real no desempenho profissional. Se se tivesse dado ao trabalho, perceberia que o figurino não era tão mau como imaginava. Não era brilhante, é verdade. Mas, na realidade, o Tomás sempre fora esforçado e a arte do discurso e da argumentação tem o condão de obrigar o exercício mental, agiliza o cérebro e fá-lo responder mais depressa aos estímulos.  E o elogio fácil tem também a virtude de aumentar a auto-estima e permitir o risco. O Tomás não sofria do medo do ridículo. Sem juízo autocrítico, estava bem consigo próprio, convencido da sua inteligência e capacidade de trabalho, pelo que se permitia arriscar, o que faz toda a diferença quando se pretende singrar na vida. Não é com inseguranças e medo de errar que se consegue progredir e ter sucesso, constatava Margarida, para no momento seguinte, hesitar. Mas, então, e a Helena? A amiga dos tempos de liceu era o protótipo da pessoa insegura e reservada e parecia ter encontrado o seu caminho. A reserva conduzira-a num percurso de lenta afirmação, e aprofundamento do saber. A discreta colega possuía grande capacidade para ouvir os outros e natural tendência a desenvolver interesses próprios. Depósito de informação despejada pelos outros ou obtido modo próprio. Como qualquer pessoa tímida, tinha a particularidade de causar nas pessoas cheias de si enorme vontade de partilharem, senão de exibirem as conquistas e realizações. Vista pelos espalha-brasas, como lorpa incorrigível ou na melhor das hipóteses aprendiz, quando se descobriu ganhara uma bagagem intelectual e emocional muito mais robusta do que própria julgara até amadurecer. Conseguiu, ao longo da vida, juntar à própria experiência e conhecimento, sempre preservados por simples recato, o conhecimento partilhado pelos que gastam o tempo relatar a vida ostentando-a com mais ou menos rodeios e floreados. E, como tudo na vida tem o justo equilíbrio, em vez de parecer, ia procurando ser experta. Uma sonsa. Desabafaria para si própria a Ana Paula ao puxar o travão de mão do megane scénic, no parque de estacionamento da faculdade.

       O Vicente acabou de ler as linhas precedentes, fechou os olhos e suspirou como se desistisse. Ouviu a Margarida atrás do ombro: sim, sei, que mexerufada de vozes de narradora, de protagonista e de autora. Preferia que dissesses mixórdia, corrigiu ele. Eu preferia que não me dissesses como devo falar, irritou-se ela. Não preciso de tutor, acrescentou. Ele pôs-se em bicos dos pés, imitando a voz feminina, entrelaçando os dedos das mãos em frente e à altura da barriga e rondando o corpo em semicírculos, troçou: sim, sei, se há homens detestáveis são aqueles que dão palpites sobre o que as mulheres vestem ou que corrigem a forma como falam para sugerir piroseiras, vulgaridades ou o diabo que o valha. A Margarida encolheu os ombros. O teatrinho já tinha barbas; servia para recordá-la de uma das primeiras conversas, há mais de vinte anos. A primeira de muitas pequenas discussões. Na segunda o Vicente acusaria a namorada de não perceber nada de cinema, por não alinhar nos elogios ao desempenho de um actor, que deveria, na opinião dela, ter-se limitado ao papel de realizador. À época ficou furiosa. Preferia que a chamasse de chata, simplesmente. Era menos redundante. Como lá atrás, fechou o semblante e ele condescendeu: que foi agora? Estou a chatear ou entraste em modo do preciso de tempo para mim? Por acaso, lembrei-me agora, preciso de tempo, tenho as ideias correr, preciso de apanhar o momento, disse ela. Mas tu chamaste-me, lembras-te? Sim, lembro, está, está bem, mas agora deixa-me, saindo do escritório e começando a andar de trás e para diante no corredor. Impressionante, desabafou o Vicente. Chamas-me para ler e comentar, mas quando comento, abespinhas-te toda. Está, está bem, mas deixa-me um bocadinho, não estou chateada, sério. Deixa-me só estar comigo, pediu a Margarida enquanto atirou um beijo à passagem da porta do escritório. O namorado sentado no cadeirão da secretária, troçou:  resmas delas. Resmas a quererem atenção. A pediram para reparar no que vestem ou dizem. O que elas se queixam de falta de atenção. E tu? É isto. Raio de sina a minha. Após um minuto de silêncio, atirou: meu amor, não queres discutir a relação? Rindo com estrondo. Não, amor da minha vida, respondeu ela, se não te importas discutimos a relação na décima-quarta encarnação, agora não tenho tempo. Hás-de cá vir, hás-de, ele ao passar por ela no corredor a caminho da sala e dar uma palmada suave. Agarrado pela mão não resistiu a abraçá-la pelas costas. Já viste a paciência que tenho para te aturar. Sabes o que te vale? É isso mesmo, rematou o Vicente. Enfim, um quinto de século de picardias adoçara o espírito do par, constatou a Margarida.

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           A 15 de Dezembro 2014, a entrevista versou sobre o ano de 1999. Volvidos catorze anos sobre o último ano de liceu, a Ana Paula estava tranquila na vida pessoal e profissional. O bom-feitio e serenidade do marido e a alegria das filhas permitiam sentir-se confiante e realizada. O desembaraço no desempenho das tarefas profissionais, o à-vontade e a cumplicidade da maioria dos colegas de trabalho mantinham-na segura. Mas sentia falta de novo impulso, de mudança. Nessa entrevista de 15 de Dezembro, foi questionada sobre a razão de se ter inscrito no curso de psicologia, já nos trinta, depois de casada e mãe de duas filhas e da vida profissional preenchida. Ela respondeu tratar-se do apelo de progredir, da vontade de se valorizar. Sentia poder ir mais longe profissionalmente e sentia de alguma forma a vida um pouco estagnada. Não referiu o sentimento perfeitamente normal de ciúme ou inveja, aliado à sensação de injustiça. Na verdade, para si própria, no ano de 1999 pensava por que carga de água sendo uma mulher inteligente e capaz teria de estar às ordens de outrem. Lidava mal com a autoridade. Ter de responder perante a chefe de departamento, com quem antipatizava ferozmente, deixava-a irritada. Já não tinha idade para andar às ordens de ninguém, achava. E tinha uma ilusão. Via na licenciatura a carta de alforria. Como muitos conterrâneos achava que o curso superior além de salvo-conduto para uma vida livre de deveres de obediência, conferia o estatuto de pessoa respeitável. Além de mais, uma ideia incomodava-a. Isso da Helena estar a dar aulas em Coimbra. Porquê? Se nunca, ao longo do percurso feito em conjunto, entre a primeira-classe e o décimo-segundo ano, tirou notas muito diferentes. Se tivesse entrado na faculdade aos dezoito anos, possivelmente estaria a dar aulas, cismava. Mas estive na TAP, pensava saudosa daquele tempo em que o mundo se abriu um pouco. Já estivera ligada à aviação e agora estava confinada às tarefas administrativas naquele departamento, cada vez mais pequeno para as suas ambições. Como seria diferente, se tivesse ingressado na faculdade no final da adolescência. Quem sabe estaria, agora, a trabalhar num banco, como a Sofia, que acabou economia e é gestora. Diz trabalhar desalmadamente, por causa na loucura do crédito à habitação. O que vejo, pensava a Ana Paula, é que deixou o ar modernaço de vestir e passa na rua, em direcção ao Banco, de tailleur calça, blusinha clássica e sapato discreto de tacão alto, e pelo caminho há sempre alguém a chamar: ó doutora Sofia. Tal como a pirralha da irmã do Oliveira, até essa. Agora é advogada, tem menos dois anos do que eu e quando vai à câmara, até o presidente a trata com deferência, quando e chega para reclamar do atraso da emissão dos alvarás. Ó senhora doutora, tudo tem seu tempo, diga lá ao seu cliente tenha paciência, mais umas semanas e isso deve estar pronto.

       Mas para lá destas dores de alma que impulsionaram a vontade de completar o curso superior, dois factos determinaram a psicologia. A Sara, colega de trabalho, comprava revistas femininas, pelas quais a Ana Paula deitava os olhos. Na primavera de 1999, um artigo prendeu a sua atenção. Tratava-se de longo texto sobre o sucesso profissional no feminino. Testemunhos de empresária, estilista e psicóloga. Todas tinham singrado, desafiando as regras, destacando-se entre pares, apesar de vidas familiares extenuantes, apesar de todos os obstáculos impostos pela circunstância de serem mulheres. O testemunho da última prendeu-a particularmente porque fazia psicologia clínica e mostrava-se empolgada por ajudar a resolver dramas de mais variada espécie. Dizia a entrevistada gostar de dar as ferramentas com as quais os pacientes poderiam aprender a fazer as suas escolhas. A Ana Paula deixava-se enlevar pela ideia de dominar a psique. Saber como nos devemos comportar para obter o resultado assemelhava-se a uma ciência exacta que um dia dominaria. E, mais do que tudo, aprender a catalogar os outros, empregando os chavões que conservara na memória da disciplina opção de psicologia do liceu, uma arma que não poderia deixar aprender a manejar para arremessar a todos quantos não coubessem dentro da sua visão do mundo.

       Pragmática projectava com apuradíssimo sentido de oportunidade. Olhou à volta, viu a câmara municipal, e tentou perceber onde estava o furo certo para progredir. A psicologia clínica era uma tentação, mas o certo é que há quatro anos ali trabalhava, ganhara experiência e contactos e sabia estar ali a sua chance. Fez as contas aos anos para a reforma da directora dos recursos humanos e atirou-se de cabeça à psicologia. Tudo batia certo, pensava. As estrelas pareciam conspirar a seu favor. Se tudo corresse como idealizava, daqui a quatro anos estaria a dirigir aquele departamento, para o qual pediria transferência. Teria tempo para conhecer os cantos à casa e mostrar serviço. Daí em diante, a atitude no local de trabalho mudou radicalmente, empenhando-se seriamente.

       Entre colegas omitiu o alcance total dos projectos futuros. Dedicou-se a compor a fábula da injustiçada. Precisava de sair do urbanismo, por não suportar a chefe e as injustiças que via ocorrer debaixo do nariz. O seu profissionalismo e mérito não eram reconhecidos. Entre família, abriu um pouco o leque do sonho, dizendo que noutro departamento poderia ter mais sucesso. Ao Orlando, só ao Orlando, que a compreendia como ninguém, admitiu achar-se capaz de dirigir os recursos humanos. Foi no regresso do jantar do sexto aniversário da Inês que falou pela primeira vez na hipótese. Como habitual, tinham ido à Torreira festejar. Chegada ao restaurante puxou cadeira, pendurou a carteira Gucci e sentou-se junto à janela, enquanto o marido e as filhas discutiam onde encostar a catrefada de objectos que transportavam consigo, entre os telemóveis, a Nintendo, os patins, os capacetes e as joelheiras. A avó, acanhada, pensava qual seria o seu lugar, dando a mão ao marido na esperança que pudessem ficar juntos. Os sogros da Ana Paula foram cumprimentar os donos do restaurante, seus amigos, e as miúdas atiram-se sobre as cadeiras em frente à mãe do outro lado da mesa, junto à janela. A cuidadosa Armanda pensou em deixar o lugar ao lado da Aninhas para o Orlando, e sentar-se a seguir de frente ao Casimiro. Sentas-te ou quê! Berrou a filha. Sentou-se. Estava acostumada a ser destratada pela filha e de certa forma sabia merecer, pelo modo tonto como permitira levasse sempre a melhor e que, desde bebé, tivesse satisfeito todos os seus caprichos. Deseducara uma mimada, das que dão mostras a todo o momento do seu egoísmo. Ao longo dos últimos anos pode apreciar a filha adulta. Consumia-se num sentimento ambíguo, misto de orgulho e de remorso. Se por um lado, gostava de ver a determinação e coragem da menina, por outro sentia enorme remorso de não a ter ensinado a respeitar os outros. Via como falava do trabalho, dos colegas e superiores, agindo como se todos a devessem servir. Reparava que, em casa, exigia do marido e das filhas eterna gratidão. E o modo de se comportar no supermercado, atropelando quem ela se cruzasse no corredor ou exasperando os outros até arrumar primorosamente as compras no saco. No regresso a Espinho, viu uma vez mais a filha conduzir distraída a falar com o Orlando. Lá de trás, do banco junto do marido e das meninas, como se referia às netas, pôde voltar a testemunhar a atitude da Aninhas na estrada, conduzindo como se tivesse prioridade em todas as situações. Teria gostado que a filha fosse mais cuidadosa com os outros. E com ela, a mãe.

       Mas se havia coisa que tirava a Ana Paula do sério eram os salamaleques. A delicadeza e a mesura eram no seu espírito demonstrações de falta de inteligência, mas também de hipocrisia. Não concebia ser possível haver gente que cuidasse do bem-estar dos outros e gostasse genuinamente de tratar bem os outros. Pessoas que agissem assim, das duas uma, ou eram burras e, por isso, subservientes, como a mãe, achava ela, ou então hipócritas e a falsidade servia apenas para conquistarem a simpatia da pessoa objecto da delicadeza. Além de mais faziam lembrar gente da família do Pedro. Fosse por que razão fosse, as pessoas polidas e delicadas eram necessariamente motivo de desdém e chacota. Estava certa que todos agiam por interesse. Precisava de ser simpática e cordial com as chefias não porque lhes reconhecesse competência e empatia, mas porque as regras de convivência laboral o impunham. Ria com outras colegas da saia amarrotada de terceira, não porque houvesse especial cumplicidade com as primeiras, mas porque agora se tratava de dizer mal da última. A roda giraria até a maledicência tocar à vez cada uma das maledicentes. O importante era preencher o tempo opinando sobre os defeitos dos outros. Afirmava-se frontal e usava aquelas pérolas de expressão da vulgaridade: comigo ninguém faz farinha, eu não falo por trás, o que tenho a dizer, digo na cara. Esta sinceridade reles confundida com a lapidar franqueza dava lugar a momentos de revirares de olhos a cada se faz favor ou se não se importa ou muitíssimo obrigada de qualquer colega chegado de novo à câmara e se não portasse como selvagem. Gente assim era alvo da chacota máxima por parte da incivil Ana Paula.

Klaus Badelt, I Don't Belong Here

por Isabel Paulos, em 23.11.19

Escolha do Vicente.

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        E de onde vinha a conversa da Sofia? De uma ligação ao hospital de Santo António, no qual a Margarida trabalhava. Da ligação da mana Soares a um pacóvio oftalmologista. A antipatia à narradora nasceu do jantar organizado por colegas em 1995. Tudo parecia correr amenamente até ao final do repasto bem regado, quando o dito médico, de nome António Gonçalves, se aproximou, oferecendo o café que trazia na mão. Ela agradeceu ciente que a tal gesto de cavalheirismo e generosidade do clínico se seguiria o interrogatório, próprio dos apreciadores de catálogos e inventários pessoais. Então? Apanhada a sair do Morrer em Las Vegas, no Charlot. Não sei não, ainda se fosse do Seven, com actores a sério como o Morgan Freeman, seria aceitável, senhora enfermeira, arremessou ele. Já o vi também. Procuro não ver apenas o recomendado pelas estrelas de críticos de discurso obtuso, contestou ela maçada. Que mau feitio! Com esse temperamento não há homem que a queira. Estava só a meter-me consigo. Mas posso estar diante de uma cinéfila, e vou aproveitar e pedir recomendações. Que me aconselha a ver? A reposição do filme do Cameron, O Abismo, sugeriu a narradora já enjoada. Bem, mas também vê ficção científica. Estou a ver que tenho que dar uma palavrinha ao Dr. Rui Sá. Na oftalmologia não recrutam enfermeiras com essa bagagem. Ela sentia o asco provocado pelas abordagens viscosas. Mas António Gonçalves continuou. Deve ser o seu namorado que a arrasta para a ficção científica, as mulheres odeiam o género. Sabe que está provado que o cérebro feminino é menos propenso ao cálculo e abstracção? Margarida ficou em silêncio enquanto o inquisidor continuava. Digo namorado, não sei se estou enganado, mas como a vi bem acompanhada à saída do Charlot. Ela manteve-se impassível. E o António prosseguiu ainda com mais gosto, acusando bastante os três ou quatro copos de vinho, para os quais não contava com estrutura física e mental. Fazia questão de mostrar à atrevida arrogante que facilmente a dominava. Já percebi que é tímida, sabe que aqui no hospital é vista como uma encalhada, mas eu sempre soube que levava a sua vida. Após um silêncio, esticou a corda: aliás, ouvi dizer fora daqui que é amiga da vivaça da Filomena e ela não se dá com ingénuas. Tem de ter cuidado. Olhe a fama. A sua amiga é conhecida na noite do Porto por alegrar a vida a muitos homens. A enfermeira firmou o olhar: quanto à Filomena, se não tem estaleca e lhe faz confusão o género, não se meta com ela, quanto a mim, prefere catalogar-me de encalhada ou pê? É ao gosto do freguês. Tanto faz. Só peço que quando divulgar que sou pê, faça o favor de ser rigoroso, e em vez de dizer que alegro a vida a muitos homens, diga que deixo muitos homens alegrarem-me a vida. A ter a fama, quero tirar o máximo partido. Ouça lá, Margarida, você é um tanto dramática. Só estava a dizer para ter cuidado. Tinha-a por uma menina atinada e essas companhias da noite podem estragá-la, dissimulou ele. Estragada fico eu quanto se metem na minha vida, suspirou ela. Mas, por isso mesmo, você nunca fala da sua vida. Está aqui há cinco anos e não se lhe conhece nem família, nem namorado, nem cão. Não acha natural as pessoas conversarem? Entre pessoas que convivem diariamente, continuou ele. Não, não acho. Acho que querem encaixar os outros em lugares-comuns, sem genuíno interesse pela pessoa. Gosto de reserva, tentou rematar ela. Mas é o que todos fazemos, é normal, insistiu ele. Pois, será. O certo é que tenho direito ao respeito pela minha reserva, terminou ela. Por mim tudo bem, acho tudo isto um tanto bizarro, como queira, desistiu ele. E, ao afastar-se, ziguezagueante, atirou a medo: então e O Abismo, onde está? No Pedro Cem, respondeu a Margarida, impassível, contente por ter feito perceber que, com ela, devia reduzir-se a conversas inócuas.

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         Os encontros do quinteto foram a início convívios alargados. A ideia do primeiro jantar, que reuniu cerca de vinte jovens antigos estudantes do Liceu de Espinho, foi do Alexandre e Sérgio, o primeiro da turma de ciências da Margarida, do Carlos Alberto e do Oliveira, o segundo do curso de humanísticas da Ana Paula, Helena, Lara e do Tomás e do Luís. Estávamos em 1996, tendo passado doze anos sobre a conclusão do décimo segundo ano. E deu-se quando poucos utilizavam telemóveis ou computadores, e muito menos tinham acesso à internet, uma curiosidade de alguns coca-bichinhos que entremeavam o gozo de mexericar nos originais IBM e dos popularizados PC, usando-os não só para jogos, como no apoio ao estudo ou profissão. Até há pouco, lançava-se mão de editores de texto e folhas de cálculo rudimentares, de bases de dados que permitiam gestão e organização de informação, programadas em tipos de linguagens dominada por muito poucos. E quando principiaram a ser usadas aplicações de design gráfico e criação artística nos Macintosh. E também o tempo em que se começava a aceder à internet, principalmente nas faculdades, nas quais se multiplicaram canais de comunicação através de protocolos de partilha de informação entre universidades. Usados na partilha não só de ficheiros de informação académica e técnica, como outros, mais lúdicos, concebendo o conceito de salas de conversação, mais tarde vulgarizado pela internet e fundando os primeiros passos das redes sociais. Mas fora deste novo mundo, das faculdades, de sectores profissionais mais tecnológicos ou ligados à comunicação social, a que poucos chegavam, continuava a decorrer a vida normal de século XX.

       Nos anos noventa, para se localizar e falar com amigos, ainda se usava comunicar através dos números de telefone de casa dos pais, e numa fase em que se entrava na vida activa, já a trabalhar e depois de acabar os cursos na faculdade, se começava a tentar obter o número do próprio. Os números dos pais passavam a interposto de informação sobre as últimas notícias dos colegas e amigos: ah, não a Helena comprou casa em Coimbra, perto do apartamento que tinha arrendado, tipo república, quando fez o curso; sim, ficou por lá, teve um convite para ficar a dar aulas na faculdade. Ou não, não, a Ana Paula já não vive com nós, mas está perto, em Miramar, mais o marido. Não, claro, e largou a aviação, não dava para uma mulher de família, e também deixou o Solverde, agora trabalha na câmara.

       E assim os compinchas Alexandre e Sérgio conseguiram localizar e reunir vinte antigos colegas de Liceu. E o jantar deu-se mesmo em casa própria, em Espinho, porque tinham aberto pequeno restaurante, ao qual chamaram Italiano. Fazendo jus ao nome, as mesas estavam cobertas por toalhas aos quadrados vermelhos e brancos, sobre as quais repousava a vela, acesa quando os clientes se sentavam. Encarnadas e brancas, queres tu dizer, comentou o Vicente, que fora ao escritório buscar uma esferográfica e lera os últimos parágrafos. Se quisesse ser possidónia, escrevia encarnados, como não, fica vermelho. Dás licença, rematou a Margarida retirando o texto do alcance dos olhos do namorado. E não me venhas com a treta do rigor científico do nome da cor, tem dó. E continuou: os pratos não iam muito além de quatro variações de pizza, da lasanha, da carbonara e do fettuccine, mas a sala não sendo muito grande, era alegre e aconchegante. Espaço óptimo para reunir velhos, mas ainda muito novos amigos.

       Os anfitriões estavam como sempre descontraídos e a aproximação dos outros denunciava cada temperamento. A Lara chegou em passada firme e a sorrir abertamente, em estilo um nada negro e modo fantástico de se apresentar. O Luís chegou dócil, mas de olhar atento e vivaço, até se juntar aos poucos que já se encontravam no passeio da Rua 14. As irmãs Soares quais artistas pop, a Marta com casaco de cabedal, a Sofia de saia curta e botas com tachas, ambas de top, vinham a discutir animadamente e nem avistaram os outros a acenar à porta do Italiano. A Helena veio também de Coimbra, e abeirou-se no passo delicado. Parecia envergar o mesmo casaco de malha bege por cima da blusa de risquinhas, do último ano de Liceu, mas mais de perto percebia-se ser outro, por estar novo e ter cotoveleiras. A Helena tinha o seu modo de vestir e não gostava muito de mudar em função das modas de momento. Era normalíssimo entrar nas lojas e pedir roupa igual à que tinha no guarda-vestidos. Tal como o Oliveira, cuja camisa de xadrez, com que se aproximou do grupo em nada diferia das usadas no tempo de Liceu. As camisas folgadas, de xadrez ou lisas, os jeans e sapatos de cordões. Nem lhe passava pela cabeça algum dia vestisse outro tipo de peças de roupa. E foi de mãos enfiadas nos bolsos das calças índigo e andar descontraído, a contrastar com o olhar penetrante, que se chegou ao grupo de convivas. A Margarida veio curiosa e cautelosa, até a carteira fugir-lhe pelo ombro, cair e a engatar no pára-choques do carro estacionado em frente ao restaurante, cumprimentando os colegas ainda a rir do incidente. O Tomás também apareceu, de blazer azul-escuro, calças de tom cru e mocassins, o aspecto teso ou preso, de pescoço que não torce, e ao cumprimento do Sérgio, logo reagiu com graçola de conveniência no tom afectado que caracteriza muitos homens dito civilizados do norte e passa por falar de forma estranha, a dar a sensação de prender um arroto. Já o Carlos Alberto, continuava a falar com o bom do sotaque do norte, aos arranques e trocando os vês pelos bês, chegou de camisa estreita, clara e lisa, calça de prega escura, e aproximou-se com o desde sempre olhar envergonhado. Atrás de si apareceria a Ana Paula, em vestido justo e sapato alto, em marcha apressada e cabeça bem levantada a olhar de frente todo o grupo. Dirigiu-se a cada um dos amigos e colegas, dando dois beijos e dizendo: que saudade! Há tanto tempo não nos vemos. Então, como estás? Novidades? Dando a cada um não mais de cinco segundos de oportunidade de resposta.

       Como sempre acontece nestes convívios, demoraram quase uma hora a sentarem-se à mesa. Muitas novidades a pôr em dia, muitos episódios a lembrar, muitas curiosidades a satisfazer e muita dificuldade em escolher lugar, uma vez que todos querem ficar ao lado de todos. Ou não. Já sentados, lá escolheram o menu, que nos italianos nunca é difícil, e o Alexandre pousou na mesa, para alegria de quase todos, cinco jarros de litro de sangria, combustível para ainda mais animação. Logo no início da refeição, houve um qui pro quo, porque o Sérgio decidiu segurar a cadeira da Ana Paula ao sentar-se, lançando piropo: as mais bonitas pernas do Liceu merecem o meu cavalheirismo. Ela reagiu de ar indignado, passando a meia-hora seguinte a falar em surdina com a Lara a Joana do desagradável da situação e do baixo nível do comentário. Nessa mesma noite comparou o caso ao da colega da tesouraria do Hotel, permanentemente assediada por membro das chefias. E ao longo da vida várias vezes recordava o episódio a familiares, amigos e conhecidos, rematando sempre, como o comentário: já não se pode ter umas pernas bem-feitas.

      Na outra ponta da mesa, o Carlos Alberto e o Oliveira falam animadamente dos seus Hondas Civic e CR-V, cada um defendendo a sua dama, como se da namorada se tratasse. Animado na conversa, o primeiro bebeu de mais e abstraindo de cilindradas, cavalos e jantes de liga leve, e também do amigo, meteu-se com a loirinha de quem não se lembrava da época do Liceu, saindo na companhia dela antes do jantar terminar, sob o olhar atento da Ana Paula. Ao lado do Oliveira, a Helena e a Margarida foram pondo em dia os últimos anos, contando curiosidades sobre os derradeiros cartuchos da vida académica e de início profissional. A escolha da casa, os destinos de férias, das leituras, e naturalmente da intenção sempre adiada de casar ou juntar trapinhos. Nenhuma das duas via no casamento uma prioridade, a Helena porque apesar do namoro de vários anos queria certificar-se de não fazer asneira, a Margarida porque queria certificar-se de primeiro fazer as asneiras.

       O Tomás hirto durante todo o jantar, passara o dito a observar a forma como a Ana Paula e a Lara conversavam com os donos do restaurante e alguns outros colegas, gesticulando de modo exuberante de talher içado na mão, e como o Carlos Alberto, entretanto saído, fizera notar que acabara a refeição, empurrando o prato para a frente. Tolhido de repulsa, aproximou-se do Luís, sossegado a fumar um cigarro, e atravessou o resto da noite a contar sucessos profissionais. A Ana Paula e a Lara passaram a noite a conversar sobre as noites mal dormidas por causas das bebés; da segunda filha da primeira e da primogénita da segunda. Das roupinhas das meninas, das papas, percentis e vacinas. Do pediatra e dos elogios ao desenvolvimento das filhas. Conversa à qual se juntou a Marta Soares, mãe de um rapaz já de quatro anos, tal como a filha mais velha da Ana Paula.

       Ia adiantada a hora quando a protagonista baixou a voz e zurzir, em surdina, um rol de acusações sobre a Helena e a Margarida. A Marta tentou entender a que se referia a amiga, e logo percebeu ser apenas a azia ainda por curar do afastamento da Helena, bastante indiferente aos ditos da amiga de infância ao longo do jantar, como aliás acontecia nos últimos anos. Tentou cortar a conversa algumas vezes, mas a irmã alinhou com a Ana Paula e zombaram ambas da mosca morta e da estranha, até a Sofia dizer qualquer coisa relativa à vida da Margarida, que nem a irmã nem a amiga perceberam porque a voz dela estava entaramelada. Cansada da própria má-língua, no meio de risota solta, desatou a cantar, pedindo aos donos do restaurante para ligarem karaoke, inexistente. Ainda assim, na companhia da irmã, dos donos do restaurante e de uns tantos outros, animou-se a cantar. Entoaram em coro o La Macarena, dos Los Del Rio, o One dos U2 e o novíssimo Wannabe das Spice Girls. Cantou-se e ouviu-se o conhecido Homem do leme dos Xutos & Pontapés, a Noite dos Resistência e a Paixão de Rui Veloso. E muitos outros êxitos.

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       O quinteto manteve ao longo dos anos amizade mais autêntica do que assídua e nos últimos jantares, no Assador Típico, a Margarida e a Helena quase não tiveram oportunidade de intervir tais os desabafos dos amigos quanto ao temperamento e manias das gajas. Isto a propósito do tema da entrevista de 2 de Dezembro de 2014, na qual Ana Paula havia escalpelizado os cuidados do corpo e da saúde. E, como era fundamental alertar os portugueses para a necessidade da alimentação cuidada e do exercício físico. Na verdade, a entrevistada não tinha dito alertar, mas sim consciencializar os portugueses, mas a Margarida temeu escrevê-lo, não fosse o livro cair em mãos de algum editor sensível, mas sem humor.

       Esta amizade a cinco só existia com a abertura desejável, por os três homens se sentirem à vontade para carpir mágoas de homens incompreendidos e estarem certos de não provocarem os costumeiros juízos críticos de condescendência maternal. Se o Carlos Alberto alinhava bastante na conversa da vida saudável, não tinha qualquer hipótese junto do Luís e do Oliveira. Desde sempre, se mostraram avessos às ditaduras da moda. Neste último encontro, a conversa versou sobre daquilo a que é usual chamar coisas de gaja e deveria ser chamado coisas de tontos. Estavam tão animados na conversa que a Margarida sugeriu ao Oliveira publicasse no blogue um artigo de opinião sobre esse universo. Insistiu que seria engraçado vê-lo em perspectiva, deixá-lo perceber aos olhos dos homens, sem as tradicionais fífias e boquinhas tão previsíveis quanto inócuas. Mas o amigo esquivou-se dizendo que o blogue se reservava a coisas técnicas, e dando graxa à narradora, insinuou que ela sim tinha mão na escrita desse tipo de romances. Sem falsos pudores e pragmática como era, ela prometeu reduzir a escrito o sumo das observações dos amigos, e assim o fez, não resistindo a dar as suas achegas.

       O Vicente não fizera especiais comentários quanto ao capítulo precedente, mas estacou neste ponto, quando o leu o que se seguia. Que foi isto? O namorado, atónito. Não vais incluir isso no livro. A Margarida levantou apenas os olhos, não movendo nem mais um músculo da cara ou do corpo. Não foi preciso mais, ele percebeu. Sim, ela ia fazê-lo. Espécie de manifesto deslocado no meio da história ou romance. Conhecia-a, sabia não ignorar os óbices. Este despropósito era impróprio de quem tem pretensões a ser levada a sério. Mas se insistisse, teria de ouvir pela enésima vez, a frase: não fujo da verdade. Não gostava do lembrete. Não era mulher de fugir, sabia-o. E, por isso mesmo, afugentava tantos. Não era crueza, apenas rigor visceral. Ela odiava floreados, mentiras ou omissões. E para perceberem ao que vinha, seria explicativa, sairia do registo de romance, se é que até aqui o conseguira, e daria uma de cronista. Acreditava na escrita. O romance não era simples vaidade.

       E escrevia ela na sequência das conversas dos amigos, que fatia substancial das mulheres não resiste ao lugar-comum das vagas de dietas e cuidados de saúde. Se a moda é comer saladas, vegetais crus, bacon e ovos cozidos e abolir os hidratos de carbono é porque se segue a dieta de Atkins, mas só até aparecer uma mais badalada, como a paleo ou a do jejum. Pelo nome, têm tudo para dar certo. Escolher a do mediterrâneo, isso não, porque soa a comida da avó gorduchinha. Se a moda é aula de aeróbica, é melhor dançar até aprender o zumba e ficar exaurida de tanto mexe e remexe, passar então ao funk, e acabar na musculação, sendo o importante manter a inscrição no ginásio, sabido que pessoa saudável frequenta o ginásio, estando os restantes mortais destinados a morrer de enfarte, por causa do perímetro abdominal, ou a cair em depressão, consabido o exercício libertar as endorfinas provocadoras do bem estar, tal como o chocolate, mas isso agora não interessa nada porque sempre foi o bicho papão das correntes dietistas até se tornar em aliado nos últimos anos. Se a moda é cuidar dos ossos e evitar a osteoporose, tomam-se suplementos de cálcio até serem desaconselhados por prejudiciais e se voltar ao leite proscrito por acéfalos, por causa da intolerância à lactose. Se estão constipadas é melhor tomar o último grito de anti-constipal porque isso de tomar analgésicos e anti-piréticos com nomes iguais há mais de dez anos é coisa de gente antiga. Quando à constipação sucede a gripe, e o anti-gripal não funciona, lá se conformam e tomam o anti-inflamatório, desgostosas de há anos ter a mesma designação, soando a tradicional, sinal de uma de duas coisas: ou é pouco eficaz ou é cancerígeno. 

       Se a moda é o amarelo, ainda que até à semana anterior fosse a cor mais odiada lá em casa, logo se vai comprar o anoraque pintainho. Se o tailleur de cerimónia na montra da loja da marca mais in, se assemelha ao vestido pela princesa das mãozinhas no colo da visita à Islândia, ou pela vip platinada e pirosa que compra o serviço de fotógrafo para poder mostrar o baptizado do neto na Caras,  é forçoso comprá-lo, e não havendo ocasiões propícias ao uso, vá de usá-la no local de trabalho ou em jantar descontraído de amigos. E se a moda são unhas obscenamente compridas, é melhor optar pelo massacre das unhas de gel. Se é moda o cabelo escorrido toca a esticá-lo e comprar todos os produtos e máscaras para o cabelo permanecer escorrido, brilhante e alinhado. Se a moda são as leggings, passam a ser usadas em massa, fiquem bem, mal ou assim-assim.

        Há heresias. A mulher de banho bem tomado, mas de cabelo branco, cara lavada e unhas por pintar é necessariamente uma mulher descuidada e infeliz, que desistiu de si mesma. Sim, no ponto de vista da maioria mulheres, pintar o cabelo, a cara e as unhas significa ser mulher, ser feminina e, sobretudo, não se ter desistido. Isso e a depilação é o considerado grau mínimo de feminidade. E note-se não se tratar da depilação em si, feita por todas, mas o de parecer ter-se vindo ao mundo sem pêlo, além do cabelo e sobrancelhas, tal é o embaraço em assumi-lo, salvo às amiguinhas e às esteticistas ucranianas e brasileiras. Depois há a fãs e mais arrebiques na cara, no corpo, nos trajes e nos adereços, considerando-os cuidados indispensáveis numa mulher. Ser feminina é dar a imagem de feminina. Cuidar-se. E cuidar é engalanar, qualquer coisa a remeter para o mundo animal e os rituais de acasalamento. À semelhança do reino animal a exibição é uma das muitas formas conhecidas de seduzir o sexo oposto, como a luta ou o carinho, mas a busca do vistoso pelas mulheres tem a nuance de ir muito além do querer agradar ao bem-amado. É a vontade de agradar a todos, especialmente, de agradar às outras mulheres. Na maioria das vezes sem consciência raparigas e mulheres guerreiam entre si, nas escolas, entre amigas, no local de trabalho, por lugar de destaque. Concorrem para obtê-lo, e ao contrário do expectável entre seres humanos do século XXI, fazem-no mais através da imagem do que pela inteligência. Mulheres e homens acreditam ter mais sucesso, se aderirem comportamentos e tiques de moda. Sendo mais atraentes, segundo o padrão dominante a cada momento. Medem-se a si e aos outros em função da imagem, longe de imaginarem que o traje de dança mais sensual, é o da inteligência e da sensibilidade.

       Parte substancial dos homens também foi engolido na voragem do aparente. Desnorteados tentam agradar às mulheres que se emanciparam de forma aparente. Nos casos felizes transformam-se em casais modelo, muito alinhados, iguais aos dos anúncios a margarinas magras com sabor a manteiga, ele de ar blasé, de camisa azul clara aberta, calças de sarja bege e sapatilhas adidas, ela de blusinha de viscose, saiinha a condizer e sapatinho de bailarina, ambos a sorrir muito para irradiar aquela felicidade pessoal e profissional que se reconhece ter sido alcançada com a prática da outrora auto-ajuda, hoje coaching.

       Também eles se cuidam. Não sendo cuidar sinal de tomar conta do corpo e saúde, mas antes padronizar o corpo, tentar se aproxime ao máximo do estereótipo tido como perfeito, ainda que isso pouco tenha a ver com o razoável ou essencial de cada um. E tornar verdade incontestada ser corpo saudável o corpo magro, conquistado a pouco mais do que água, alface e fitness. E se todas estas considerações ouvissem as e os adeptos do chamado estilo de vida saudável, teríamos de ouvir sermão e missa cantada. Porque é blasfémia, porque deturpamos tudo e só estamos a demonstrar a nossa ignorância e apego aos mitos antigos. Porque nem em caricatura é assim. E tudo tem equilíbrio. Não se pense serem desajustados os termos religiosos. Trata-se de seita de muitos e muitas beatas prontos a catequizarem todos os hereges que não resistem a cometer os pecados capitais da gula e da preguiça. Todos os dias os vemos na televisão, sentados nos sofás dos programas de entretenimento ou mesmo em programas de informação, elas a gesticular contidamente, as mãos presas em finíssimos braços, e as perninhas juntas em ângulo de vinte graus a trazer à memória os namoros de sofá de meados do século passado sob o olhar atento dos pais ou as antigas catequistas das nossas Igrejas. Eles quase sempre de fatinho escuro, a recordar os Mórmons e o discurso hipnotizador semelhante ao empregado na ciência desconhecida que não se deve negar à partida, a astrologia. Imagens e discursos, que extravasam a televisão e perpassam todas a redes sociais. Cansa a quem olha de fora que não se perceba tudo ter equilíbrio, mas com dois pesos a contrabalançar e não uma voz única, cada vez mais única e poderosa, viciada em interesses económicos na área da alimentação, do desporto, do vestuário e da saúde. A indústria da imagem vendida a milhões de seguidores da suposta vida saudável.

       E existe a heresia máxima, a de ser dotado de corpo volumoso ou curvilíneo.  É tido como deficiência física, decorrente de excessos alimentares e falta de exercício físico ou doença grave. E tratado com o asco que as pessoas desprovidas de inteligência demostram face às deficiências. Naturalmente alvo de anedotas fáceis a versar mancos, manetas, surdos, cegos ou gordos. Após séculos de evolução a humanidade começa a entender que o cego, o manco, o maneta, ou o surdo não são maldição divina caída sobre o próprio ou a família. Também será preciso tempo para deixar de ver o gordo como o amaldiçoado. E seria bom rir tão só da diferença de cada um, nem menos, nem mais irrepreensível, recusando modelos únicos. Rir da despedida até mais ver do cego, do âh do surdo, do tropeço do manco, do danoninho fora do alcance do maneta, e do aniversário a 4, 5 e 6 de Abril do gordo, sem perder de vista que a caricatura é isso mesmo e não castigo a proscrever alguns do paraíso da dita normalidade destinado aos puros. Neste paraíso criado artificialmente pelo preconceito, só os magros de membros e sentidos apurados são dignos de ter sucesso profissional, apesar de poderem ser incompetentes, só eles são dignos de se sentarem à mesa, ainda que gesticulem o talher no ar, só eles podem praticar bom sexo, apesar de poderem temer a dimensão e expressão do próprio corpo, só eles podem durar até aos cem anos, apesar de poderem morrer aos vinte. De fora, gordos e deficientes. Apesar de poderem ser bons profissionais ou de saberem apreciar uma refeição, não encaixam bem no perfil ideal de secretária ou mesa bem-posta. Causam estranheza a muitos imaginários eróticos, porque apesar de poderem ser magníficos amantes,  não renunciam à dimensão carnal ou diferença, que assusta cada vez mais adeptos do sexo artificial, praticado segundo guião ou por telepatia, de quem começa por confundir desejo e humanidade com perversão e acaba por pugnar pela ausência de corpo, esse pedaço de culpa, que a modernidade há de querer esconder.

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       Dois anos depois da Inês, nasceu a Mariana, e dois meses mais tarde a silhueta da mamã voltara à perfeição que exigia a si mesma. Nunca sequer pôs a hipótese de não se manter em boa forma. O seu ponto de honra. Engrenou cedo no capítulo da imagem e vida saudável, e conforme relatou numa entrevista de Dezembro de 2014, sempre se cuidou e acha importante que: as mulheres, principalmente as mulheres, se cuidem, não desistindo da sua felicidade. Se nos anos oitenta, apesar do nojo sentido em dividir a água da piscina com outros, foi convencida pela Helena, praticante de sempre, sobre os benefícios da natação e começou a nadar regularmente na piscina municipal de Espinho, nos anos noventa foi com semelhante desconfiança, por se lembrar da deprimente Volta a Portugal, que passou aos percursos de bicicleta na companhia das cunhadas e o marido, pai das duas filhas, e em 2000 largou a bicicleta,  inscrevendo-se em aulas de aeróbica e fitness no ginásio frequentado por muitas colegas da câmara municipal.

       Com pouco mundo, estava habituada a criticar e desdenhar de tudo quanto lhe era estranho e não superara o teste do recomendável pelo modismo. Aderia às novidades sem hesitações, mas com condições. E estas eram facilmente detectáveis por ordem de cronológica: a televisão defendia, as massas aderiam e as amigas praticavam. Máxima actualizada no século XXI para as redes sociais defendem, as massas aderem e as amigas praticam. Estando satisfeitas as três condições, adoptava-as com o fervor próprio de quem tem brinquedo novo. No caso da bicicleta dos anos noventa, tornou-se por meses em obsessão. A razão de ser da existência como meio de locomoção era o que menos relevava. Interessavam outros pormenores próprios da ideologia da moda. Era sua propriedade. A recente aquisição passaria rapidamente a verdade intemporal. Quando se referia à bicicleta, dir-se-ia viera ao mundo com ela, tal a minúcia como descrevia as características. O sentido de propriedade era ilimitado. Com natural ignorância atrevida, seria capaz de descrever as características ou habilidades ao fabricante ou ao praticante profissional, e se preciso fosse daria achegas sobre eventuais defeitos de algumas versões menos in, sem sequer perceber o mecanismo de funcionamento, era proprietária de uma Vilar, a melhor marca portuguesa de bicicletas, afiançara o vendedor.

       O peso da ideologia da moda esteve presente em parte substancial das decisões tomadas ao longo da vida. E mais não esteve porque as cruas circunstâncias impostas pela realidade a desviavam da gloriosa caminhada na vanguarda. Ou, em rigor e, à claridade e justiça das ideias, revelam-na tão só o cliché do seu tempo. O joeirar dos nomes das filhas seria mais uma evidência da constante preocupação em estar na moda.

        No início da primeira gravidez convenceu-se que seria rapaz e hesitava entre o, então, vulgar e apelativo nome Diogo, e os quase tão populares Gonçalo e Francisco. Curiosamente, em criança, fartara-se de gozar com colegas de nomes tradicionais como António, Francisco, Manuel ou Joaquim, para si nomes de gente parola; gente da agricultura, como chamava aos lavradores. Mais tarde, as revistas cor-de-rosa e a televisão abriram novos horizontes e afinal esses nomes parolos, os tradicionais, eram os nomes eleitos pelas pessoas que apareciam nas festas elegantes. Como não podia deixar de ser aderiu de novo, como grande parte dos concidadãos, ao festival do nome da moda. Se fosse rapaz seria Diogo; teria de estar na crista da onda. E, sobretudo, precisava de se demarcar do passado bafiento. Até aos sessenta do século XX as crianças eram, em regra, baptizadas em função dos costumes. Ou se dava o nome dos pais, avós ou padrinhos, ou o nome escolhido pelo padre que presidia ao ritual. Menos comuns, apesar de as haver, as escolhas em função do gosto pessoal dos pais ou das modas de momento, como o caso dos nomes femininos afrancesados, as velhas étes. Depois dos anos sessenta popularizaram-se primeiro os nomes compostos, entre um ao gosto dos pais e outro de família, ou já compostos por dois nomes conjugados ao gosto dos pais. A democratização trazida por Abril, o acesso às primeiras novelas portuguesas e às revistas de sociedade, e a permeabilidade da convivência entre classes, muito ampliada nas escolas portuguesas, vulgarizou os nomes tradicionais e civilizados. Os nomes comuns entre gente bem medraram numa larga faixa da população ascendida socialmente e, agora, reparava desdenhosa nomes estrangeirados, considerados de mau gosto.

       A Ana Paula teve duas filhas. E quanto a nomes de rapariga, ou nomes de menina, na sua linguagem, nem as civilizadíssimas Marias das revistas a convenceram. Não valia tudo o que era popular. Ao decidir o nome das pequenas possuía duas certezas, sempre mantidas, Maria nunca, que dava em micas e os nomes das avós ou madrinhas jamais, achava ela, porque além de bronco era de total falta de imaginação. As filhas, como espectável, seriam Inês e Mariana.

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       Adaptou-se rapidamente ao novo mundo, porque cedo percebeu o essencial. Aprendeu a questionar e detalhar as tarefas. Como hospedeira de bordo ou secretária estava habituada a desempenhar as funções sem questionar exaustivamente a razão de ser nem dar grandes explicações sobre o que fazia, salvo excepcionalmente nalguns momentos de insatisfação ou, no oposto, de pura troça. Conhecia bem os procedimentos de segurança na aviação, a forma mais eficaz e delicada de servir uma refeição ou gerir conflitos na cabine, assim como era muito hábil na gestão de agendamentos de reuniões de trabalho e assertiva na forma de ir fornecendo ou retendo informação no hotel, mas naturalmente não questionava o executado a todo o momento. Se antes sugerissem dar importância aos comentários de trabalho entre colegas ou chefias, a descrever além do razoável, toda e qualquer tarefa desempenhada por cada um, com certeza acharia ridículo. Além de mais, qual a vantagem de tal comportamento? No serviço público, porém, percebeu haver enorme vantagem, esmiuçar o sexo dos anjos faz com se passe parte substancial horário de trabalho a não produzir nada. Em muitos casos, o que mais interessa a quem manda e se quer perpetuar no poder, mantendo acadimada a mole de gente que só na aparência do discurso do interesse público se interessa pelo destino dos concidadãos. E parte do restante tempo, era gasto a conversar sobre séries da televisão. Depois de vários anos viciada nas telenovelas brasileiras, passou às séries norte-americanas. À época siderava frente à excêntrica angústia de Twin Peaks, e um par de anos mais tarde achava empolgante o Serviço de Urgência e o despique com as colegas Sara e Raquel versava sobre os atributos físicos do Dr. Mark Greene e do Dr. Doug Ross; ao contrário delas, apostava no último. Evidentemente o futuro deu-lhe razão.

       As intrigas da ficção televisiva entravam também nas conversas triviais em família, perante a qual costumava gozar das colegas, especialmente da Sara, por confundir personagem e actor. A protagonista aprendera na Nova Gente ser de absoluta ignorância confundir traços de personalidade do actor com a personagem. Deliciava-se de gozo com comentários básicos sobre as abordagens de rua hostis aos actores que fazem papéis de vilões e de elogio aos que desempenhavam papéis de heróis ou vítimas, e sentenciava: só ignorantes podem fazer tal confusão. Ora a Sara, tinha dado esse salto infantil há muito. De maior amplitude de entendimento, pouco se impressionava com sentenças primárias; além de ter o péssimo hábito de achar que os actores deixavam marca na personagem, coisa estranha. Talvez um dia a Ana Paula viesse a perceber que o carácter do artista não se apaga na representação. Não confundir obra e intérprete não significa não se discutir o carácter do intérprete, ou mesmo do autor, decisivos na obra.

       O local de trabalho era, àquela época, extensão da sua sala de estar. No intervalo das animadas conversas de entretenimento, cumpria as tarefas incumbidas com particular desamor e negligência. Ao contrário do que aconteceria anos mais tarde, não se podia dizer que fosse uma funcionária dedicada. Ao talento agora aprimorado na arte de bem articular palavras em rendilhado burocrático e à tendência para a futilidade, acrescia verdadeira negação para aceitar regras; sobretudo as que poderiam melhorar a eficiência. De qualquer modo, o traquejo adquirido impediu males maiores, fazendo o pedido, cumprir calendário.

       Por essa altura, era usual dirigir-se ao departamento discreto electricista da câmara, o Orlando, que explorava uma loja de tintas e materiais de construção, na rua transversal ao largo Dr. José Salvador. Deslocava-se à câmara regularmente, menos por causa do trabalho como electricista e mais para habituais reuniões de acerto das condições de venda do material à própria entidade patronal ou aos empreiteiros a quem eram adjudicadas as obras. Depois da entrada da Ana Paula no departamento, as reuniões começaram a multiplicar-se. Todos os pretextos serviam, desde o extravio das notas de encomenda à correcção das quantidades e propriedades do material, valia tudo para voltar à câmara e, pelo meio, dar um saltinho ao departamento de urbanismo falar com a menina das blusas acetinadas, saia aveludada e longas unhas escarlate, cereja ou rúbeo. Ela gostava daquele modo atento. E dos cuidados e delicadezas tidas consigo. Era a primeira vez que ouvia um homem distinguir cores. Não sabia existirem. Os outros pareciam conhecer apenas as cores dos clubes de futebol, a que na melhor das hipóteses acrescentavam o claro e o escuro. O que uma palete pantone pode fazer por um homem e o futuro. Seis meses depois da primeira conversa com a Ana Paula, estava casado. E três anos volvidos, era pai de duas princesinhas, vulgarmente vestidas de cor-de-rosa.

       No dia seguinte ao nascimento da Inês, a primeira filha, a recém-parturiente viu passar o Oliveira. A cunhada, mulher do André, também dera à luz no hospital. Após as apresentações, o Orlando, que além de electricista era habilidoso das electrotecnias, um tanto desasado sem ter o que dizer às várias amigas da mulher, prendeu a atenção do Oliveira, contente pela companhia e boa conversa, para desagrado da Ana Paula. Nunca gostara da amizade do antigo colega com o Carlos Alberto, não faltando mais de passar a amigo do marido. Mas, neste dia, ficou a saber as novidades sobre o colega de liceu, e isso das novidades agradava, mesmo não tivessem passado vinte e quatro horas sobre o trabalho de parto. Soube que o Oliveira fez o primeiro ano de engenharia electrónica, e desistiu porque começou a trabalhar em Aveiro, como administrativo, numa empresa de construção. O que não chegou a saber, porque ele não era dado a autopromoção, é que por mostrar talento para o desenho técnico, se iniciou ainda sem formação a fazer trabalhos como desenhador. E, em 1989, por ter feito o curso de técnico projectista teve papel preponderante e acesso aos dados da empresa, começando a programar em auxílio do armazenamento e tratamento da informação. E criara o programa de orçamentação das obras e também o de processamento de salários da empresa. A Ana Paula soube anos mais tarde, que ele se desligara da construtora e acabara por se envolver no projecto de criação de desenho digital e na criação de um portal português.

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       O desgosto provocado pelo fim do casamento causou danos no emprego, no qual a Ana Paula se passou a sentir peixe fora de água. Achou perder a deferência como era tratada por ser mulher do filho do grande amigo do director, e apesar do Dr. Gouveia parecer pouco interessado no destino da vida amorosa do filho do amigo, por quem não nutria especial consideração por não mostrar ambição e dignidade, as qualidades que apreciava nos homens, mas escrevia a Margarida, apesar desta indiferença, a protagonista sentia-se menorizada. O mal-estar começou a instalar-se no Solverde. Todas as razões eram válidas para engrenar em reparos entre colegas mais próximos, sobre outros menos estimados e, em especial, sobre as chefias. Recomeçava assim o festival da maledicência e do queixume, percebido por todos.

       À época era hábito comentar-se, no hotel, o mau feitio da Ana Paula, e havia quem tivesse a franqueza de fazer notar o quão insuportável se tornara a colega nos últimos meses. Em Setembro de 1991 decorria pequena obra de reparação no moderníssimo hotel e o ruído de trabalhos de obra no piso inferior irrompera por todo o edifício de forma intervalada, ao longo de cerca de vinte minutos. A criatura vociferou porque se fosse ela a mandar, certamente, não haveria tais incómodos, porque só trolhas deficientes poderiam perturbar o ambiente de tão selecto hotel. E continuou: há horas próprias para os trabalhos. E, ao ver da janela um dos trabalhadores, acrescentou: aquele larilas trabalha mesmo à preto, pensa que está na terra dele em que não há leis. Apesar de se grisar ouvindo música aos berros e usualmente produzir mais decibéis em injúrias do que alguns martelos compressores das obras, a criatura achava poder descompor os outros desta forma. A mesma criatura que vinte anos depois, tocada pela novela, pelo programa de talentos, pelo reality show e resmas de comentários nas redes sociais, nos quais pôde conhecer a versão estrela televisiva ou virtual do trolha, do imigrante, do negro ou do gay, aprendeu a oportunidade de termos como racismo, xenofobia e homofobia.

       À época hastear a bandeira da diversidade e do inclusivo ainda não estava em voga e, por isso mesmo, a Ana Paula não havia aderido. Na primeira década séc. XXI viria a dar lições de dedo em riste em matéria de defesa das minorias e dez anos volvidos já propunha condenações sumárias a quem não respeitasse as identidades; advogava a censura de todas as manifestações de racismo contra as raças com que engraçasse, xenofobia contra os imigrantes e refugiados que não a incomodassem, homofobia contra homossexuais com boa aparência, e misoginia de homens que não soubessem disfarçar. Mesmo se estes ódios ou repulsas estivessem fossilizadas por décadas ou séculos de distância ou se o único problema fosse não passarem pelo crivo da falta de humor, da falta de inteligência e da noção da história dos factos. Em 1991 estava longe da sofisticação mais tarde conquistada e foi, por isso, com perplexidade que, terminado o chorrilho de insultos dirigidos ao trabalhador, virando-se, deu com o Dr. Gouveia a olhá-la de modo recriminatório. Ele, em frente dos colegas, explicou à nossa esquitécia que o trabalho de trolha era tão digno ou pouco digno como o de secretária e, se a menina quisesse manter o emprego, teria de aprender a portar-se como gente civilizada, isto é, a respeitar os outros. Uma velha funcionária do hotel, considerada por todos, tentou por água da fervura, dizendo tratar-se dos nervos da colega, a atravessar uma fase difícil da vida. O director respondeu, simplesmente, que isso do nervoso é coisa de gente sem educação. As pessoas educadas contêm-se, disse.

       Pela segunda vez um homem atirava à cara a falta de educação. E isso deixava-a mais do que ofendida, furiosa. Quem eram os paspalhos para se acharem superiores? Tarde ou cedo mostraria aos parvalhões de que massa era feita. Sentia-se guerreira e, neste dia, ao invés de trepar pelas paredes e desabafar revolta, resolveu planear o futuro. Revelar-se-ia verdadeiramente e estava convencida que no futuro o Pedro e o Dr. Gouveia se arrependeriam das desconsiderações. Determinou, nesse dia, arranjar emprego melhor e, meses depois, no Inverno de 1992, conseguiu o que julgava ser trabalho decente. Concorreu ao lugar de assistente administrativa do departamento de urbanismo da câmara municipal desenhado segundo o seu perfil, por cunha de familiar da amiga Lara, e assim encetou o serviço público.

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        Era com a Lara que a Ana Paula desabafava sobre as desconsiderações sofridas no primeiro casamento. Contava à amiga que as mulheres da família do marido, senhoras, corrigiria ele se a ouvisse, a tratavam com desapreço. Notava-o nos entreolhares trocados entre a sogra, as tias e as cunhadas, ou na falta de atenção dada quando falava ou contava uma novidade, sempre interrompida por observações e assuntos que nada lhe diziam. Faziam questão de a deixar à margem, queixava-se, e quando desabafava com o Pedro, ele desvalorizava ou pior, ofendia-a muito dizendo ser uma questão de aprender a portar-se como uma senhora. Levava seis meses de casada, quando ouviu isto pela primeira vez e nunca mais a relação voltou aos tempos das meiguices e das delicadezas.

       Quando estavam com a família do Pedro o dia acabava em discussão, ou porque o menino advertia não se dizer enxertar, mas encetar, quando ela abria o pacote de arroz para preparar a mariscada do jantar, ou porque ela constatava comer-se arroz com arroz, e cheiro de carne, em casa dos sogros. Levando o Pedro a trazer à baila as origens da mulher. E não era o mais odioso do casamento, pior era a forma controladora de vigiar as fatiotas da Ana Paula, sempre a medo que caísse nas piroseiras de nova-rica. E mais, como controlava o seu comportamento perante os outros homens. Se no início apreciava a maneira de se apresentar da mulher, depressa se cansou e começou a temer e criticar o exibicionismo. Ela não se deixava ficar e ripostava, se quisesses uma discreta, casavas-te com uma songamonga amiga das tuas irmãs e primas, sempre com aquele ar de tia desinteressante que aproveita os restos do jantar e se veste para estar na aldeia, a aquecer-se na lareira e a fazer malha. No campo, na quinta, na Matinha, a tricotar, emendava o Pedro, pronto a esquecer a bulha.

       Aborrecia a Ana Paula com constantes jantares e reuniões de familiares e de amigos. Todos os pretextos eram válidos para jantar em casa de familiares, amigos ou colegas de trabalho. Havia semanas, nas quais eram mais as saídas, do que os serões em casa. No início, a mulher encarou tais hábitos de boa vontade, mas depressa se cansou, até porque não raro o menino fazia questão de desvalorizar ou ridiculizar o pronunciado pela mulher, frente aos outros, mostrando de forma descarada que o seu mundo era este e ela a intrusa. Além de não se sentir bem-vinda nestes constantes encontros, sabia faltar tempo à intimidade do casal, atulhados como estavam de gente a cercar.

       Apesar de gostar da imagem de mulher casada e vida social intensa, sabendo causar certo frisson nas hostes espinhenses, o desencanto instalou-se rapidamente. Podia ser uma mulher fútil, mas não estúpida. Apesar do prazer de parecer o que achava ser uma socialite, e do gozo em causar impacto nos que não distinguem gente educada de gente que se exibe, sofria por não ser admirada, sequer respeitada pelo marido. Casara apaixonada e a mágoa crescia a cada dia. Podia lidar com o desprezo, até manipulá-lo, mas não o do homem que amava.

       A relação esfriou ainda mais quando o Pedro, a propósito das deslocações profissionais a Lisboa, para reuniões no ministério da agricultura, uma segunda-feira por mês, começou a ir no Intercidades do fim da tarde de Sábado, a pretexto dos comboios seguirem muito cheios ao Domingo. Enquanto a Ana Paula passava a noite de Sábado a roer-se de fúria, ele circulava na noite do Bairro Alto, entre o Frágil e o Pavilhão Chinês, na companhia dos amigos de Lisboa. E aproveitava os Domingos para se passear nos Jardins da Gulbenkian, almoçar na Praça dos Restauradores e ir de eléctrico até Belém. Dos Domingos solitários nasceu a certeza na Ana Paula de não ser aquilo que pretendia da vida, e numa noite de segunda-feira, assim que meteu a chave à porta, o Pedro ouviu da mulher: podes dar meia volta e ir à tua vidinha. O casamento acabou.

       A Lara apoiava bastante, viver uma relação sem respeito não era vida para a amiga, que era bonita, trabalhava e podia muito bem seguir outro rumo. Estar agarrada a um homem que não a apreciava não era coisa digna de mulher resolvida. Também desabafava com a Marta Soares, mas esta amiga mostrava-se pouco atreita a dar conselhos. Percebeu, desde início, que o casal tinha maneiras de estar muito diferentes e, apesar de achar o Pedro um homem interessante, concordava com a Lara. Era asneira da grossa deixar passar em claro as desconsiderações dos homens. Mas nunca manifestou qualquer opinião nesse ou noutro sentido, mantendo-se o mais neutra possível, até porque sabia que a resoluta Ana Paula saberia dar bem conta do recado. E deu.

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       Outra visita da casa da Ana Paula era a Lara. Ao contrário da Marta Soares nada apreciada pelo Pedro. Quase enlouquecia com a forma como o Rui, o marido, enfiava a cara no prato e sorvia a sopa, enquanto ela dissertava sobre música e cinema alternativo, sentada de lado e cotovelo apoiado na mesa. Alternativo era termo que encanitava o Pedro; topava a presunção. E apesar de ouvirem algumas bandas em comum e do cinema de autor ser do agrado do sofisticado Pedro, aquele modo insurrecto e rude de estar e falar arreliava-o bastante. Nessa época, a Lara trabalhava ainda num pronto-a-vestir da Rua 19, no centro de Espinho. Depressa se fartou de passar o dia entre saias travadas, camisas de gola engomada e casacos cheios de chumaços, com vista para a rua central na qual passavam as mesmas pessoas à mesma hora, mas o salário certo ao fim do mês e a independência económica falaram mais alto. Cinco anos mais tarde, atraída pela novidade dos centros comerciais da Sonae, começou a trabalhar na Zara no recém-inaugurado Gaiashooping, como subgerente de loja, o que permitia acréscimo financeiro. Trabalhar na loja de roupa mais popular entre gente nova dava-lhe gozo, apesar da pouca paciência para aturar a clientela. Pouco depois, entediou-se deste emprego e a considerou arranjar outro. Na visão da Lara, e na de muitos portugueses, não se tratava de querer trabalho, mais sim emprego. Nos cinco anos de trabalho no pronto-a-vestir conseguiu obter três baixas médicas, por períodos de pelo menos de trinta dias cada, mas na Zara tais veleidades não eram bem aceites, pelo que rapidamente foi sugerida a saída. Estava sintonizada a parte significativa da sua geração. E tinha respaldo caseiro, sobretudo do pai, funcionário da junta de freguesia desde 1977, quando se filiara no partido socialista, mas também dos primos Aurélio e Jacinto, transmontanos, migrados para Espinho no final da adolescência, na segunda metade dos anos oitenta, no intuito de fazer o curso de programação de computadores em linguagem COBOL.

      Durante parte dos seis meses do curso ficaram na pequena casa dos tios. Sabido que em casa de transmontanos nunca se nega dormida à alargada família. Dormiam num canto, no sofá da sala. Tinham a obrigação de levantar, lavar-se e arrumar o espaço que serviria a família nuclear de anfitriões. O curso feito permitia o acesso a estágio e aspiravam ingressar no sector bancário. Tal como o tio, em curto espaço de tempo fizeram relações interessadas, e ainda a terminar o curso filiaram-se no PSD, a convite de um dos formadores, membro dos órgãos da direcção distrital do partido. A militância dava garantia de emprego, acabado estágio e caso não ficassem a trabalhar no banco que os acolheria. A escolha do PSD foi circunstancial; a social-democracia de Cavaco Silva ou o socialismo de Soares, então primeiro-ministro e presidente, eram conceitos abstractos que não faziam esforço de entender nem questionar. Comentavam entre si, isso sim, que o tio Ângelo e os amigos do PS falavam sempre como se tivessem a propriedade da liberdade, trabalhavam em serviços públicos e eram velhos de conversa, ainda que alguns deles tivessem a sua idade e aparentassem saúde formidável. Rematavam sempre, mas temos lá bons amigos. E tinham, sobretudo o amigo funcionário da segurança social, que conseguiu arranjar os contactos certos para obterem renda de casa paga pelo Estado, ao abrigo da legislação em vigor, destinada a favorecer a formação dos jovens portugueses. E revelara-se profundamente amigo, porque apesar da renda efectiva cobrada ser de cinquenta contos, sugeriu declarassem o valor de cem contos, em conluio do senhorio, e dividissem entre si o lucro gerado pela burla da pandilha, em prejuízo óbvio dos contribuintes.

      Já o formador era um tipo novo, cheio de genica e empreendedor. Além das aulas de formação na área informática, na qual trabalhara apenas sete ou oito anos, agora prestava serviços através da empresa que criara com o amigo e colega de curso, e já criara vinte postos de trabalho, tudo com ajuda dos fundos da C.E.E. É evidente que, além de prestar serviços de assistência informática à Banca, prestava serviços a si próprio, conseguindo desviar, através de esquema de facturas falsas, alguns fundos destinado à compra do JIPE da praxe e umas verbas extras na ajuda da construção da moradia à beira-mar. Foi nessa empresa informática que a Lara entrou, anos mais tarde, para ajudar na contabilidade e fornecedores. Nunca deixou de desdenhar do patrão e da forma de servir-se da empresa em benefício próprio de forma lícita e ilícita. Mas começou também a perceber como podia tirar vantagens das lacunas da legislação ou tão só das oportunidades que iam surgindo. Queixava-se ser mal paga. E fazia notar que tinha de se esforçar no sustento a família, já que, apesar das gorjetas, o salário do marido era parco.

      A Lara engrenou bem na corrente do tempo. Após quatro décadas da imposição cega de deveres, sobrevieram quatro décadas de reivindicação cega de direitos. Olho por olho, dente por dente. E se há índices certeiros para medir a desonestidade, dois deles são a prontidão no conhecimento da legislação que favorece os interesses e a amnésia quanto à criadora de deveres ou obrigações, mas também a permanente crítica dirigida a quem está numa situação de privilégio económico ainda que legítimo, numa demonstração de pura inveja. Ao longo da vida a narradora pôde verificar ser comum entre portugueses rasgar-se as vestes contra a corrupção dos políticos, dos banqueiros, dos grandes empresários, dos patrões, dos trabalhadores, dos vizinhos, dos pais dos colegas dos filhos, dos colegas de trabalho, dos adeptos dos outros clubes, enfim dos outros, enquanto se leva a vida quotidiana de burlazinha em burlazinha, a subornar funcionários públicos, a apresentar atestados médicos falsos, a não declarar rendimentos auferidos, para obter subsídios e abonos, ou tão só não pagar o inerente imposto, a declarar valores inferiores de venda de imóveis, evitando o pagamento da proporção legal do imposto, a prestar declarações falsas para a obtenção de subsídios da segurança social, a apresentar orçamentos falsos às companhias de seguro. Enfim, interminável rol de trafulhices que não se considera corrupção, tão só pela circunstância de se ser o prevaricador. Aos olhos de muitos o corrupto é sempre o vizinho do lado, sendo o próprio a vítima que mais não faz senão tentar fazer pela vida neste país injusto e desigual que deveria tê-lo consagrado a grande resistente, o verdadeiro herói.

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       Por altura do primeiro casamento a protagonista perdeu algumas amigas. A mais antiga, Helena, fora para Coimbra viver numa casa arrendada a meias com a prima e a amiga, e estudar na faculdade de História. Só vinha um fim-de-semana por mês a casa e, com o tempo apertado, deixou de aparecer n’ O Nosso Café, ponto de encontro das amigas até então e também de ligar para o telefone de casa da Ana Paula. A Sofia Soares, a estudar na faculdade de Economia no Porto, saía de manhã cedo de Espinho e regressava ao fim do dia, logo começando a criar relações na Invicta, para onde fugia cada vez mais aos fins-de-semana. A Lara manteve-se em Espinho a trabalhar num pronto-a-vestir para desagrado do pai, que insistia querer a filha na universidade. Mas ela planeava algo importante, viver independente. Independente ou nem por isso porque a ideia era casar rapidamente. O certo é que a paixão pelo Rui deixava pouco tempo para almoços demorados no restaurante Graciosa com Ana Paula, prolongados muito além do horário de entrada no hotel. Aproveitando ainda a ida ao centro e dar duas de letra com colegas do aparthotel da Solverde. Sabia que o Dr. Paulo Gouveia não voltava do almoço antes das quatro e meia. Podia, perfeitamente, de vez em quando, entrar às quatro e preparar o ar atarefadíssimo a bater a pequena resma de folhas A4 na mesa, como sempre fazia quando alguém passava na salinha de entremeio, à entrada do escritório do director, onde ficava a secretária. A mesa continha o canto esquerdo sempre apinhado de dossiês, que mais não faziam na secretária senão ser objecto de decoração, e o centro era ocupado pela máquina de escrever eléctrica Oliveti, essa sim, muito usada pela Ana Paula, para dar seguimento às muitas cartas e comunicações ditadas pelo Dr. Gouveia. No canto oposto à resma inútil de dossiês, ficava o moderno telefone de baquelite clara e teclas luminosas, muito utilizado fosse como filtro das chamadas a passar ao director, e demais contactos profissionais, fosse para pôr a conversa em dia com as outras funcionárias do hotel. Fez algumas amigas no Solverde. Mas, nessa altura, a amiga mais presente e de maior proximidade era a Marta Soares.

       Era comum ir jantar a casa do jovem casal, e o Pedro simpatizava com esta amiga da mulher, até pela forma quase poética de percorrer o Porto. Acabado o décimo segundo ano, a Marta começou a trabalhar como administrativa na seguradora Tranquilidade, na baixa do Porto, e o postal envelhecido e sofrido feito cidade deixava-a emocionada. O anfitrião afirmava-se tripeiro velho, dos que têm orgulho na sua terra e conhecem bem os seus recantos. Não conhecia assim tão bem; movia-se sobretudo a parte ocidental da cidade, em especial na Foz e na Boavista. Pouco sabia da alargada Campanhã, das genuínas Fontainhas ou do alto arvoredo de Arca D´Água e os túneis e galerias subterrâneas. E, sobretudo, suspeitava a Margarida, passara distraído um par de vezes pelo Passeio das Virtudes, sem se deixar morrer ali mesmo perdido num dos ângulos mais belos da cidade. Ainda não era um verdadeiro apaixonado do Porto. Mas o ar deslumbrado da espinhense ao falar da sua terra, deixava-o orgulhoso. Dizia a Marta Soares apanhar o comboio em Espinho e gostar da companhia do mar no primeiro troço da viagem e das casas de veraneio das praias de Granja e de Miramar, antes de mergulhar no aglomerado feio e confuso do dormitório em que se transformou Gaia, mas que ao chegar ao Porto, antes de descer na histórica estação de São Bento e subir à Avenida dos Aliados, se deixava por segundos na base da Praça, junto aos Congregados, olhando à esquerda, a ingreme rua dos Clérigos, rematada pela vista da torre, e à direita, a não menos ingreme rua 31 de Janeiro, para a Margarida sempre rua de Santo António, no cimo da qual se erguia a Igreja de Santo Ildefonso, mas dizia a Marta Soares que antes de lá chegar tremia à passagem sobre a centenária ponte D. Maria. A velha ponte de rijo ferro-fundido, um tabuleiro pousado num arco preso por numerosas traves de reforço, construída por projecto de Gustavo Eiffel na década de setenta do século XIX, e que esteve em funcionamento até então. A mana mais velha da icónica Ponte D. Luís dos dois tabuleiros, inaugurada na década seguinte e mantida em funcionamento, com circulação automóvel nos dois tabuleiros, até os anos 2000, quando o superior ficou destinado ao metro. O Pedro falava de uns amigos que viviam em Gaia, acima das caves, mais perto da Avenida da República. Onde, nos tempos antigos, havia boas casas e diziam as más-línguas viver as amantes dos homens-ricos do Porto. Dizia ele que esses amigos contavam histórias fantásticas da ponte a balançar no dia de São João, a principal festa da cidade. Se queria ser um portuense à séria teria de conhecer a sensação de atravessá-la a pé no meio da multidão e dos abanões sob a morrinha caída certa na noite perfeita do Porto. Não tivera ainda a oportunidade de experimentá-lo em noite de festa. Mas ensaiara a medo atravessá-la a pé no sentido Gaia-Porto num dia invernoso, e não pôde deixar de ficar fascinado pela tal escuridão da cidade, que se ergue do rio, sob o vento e a chuva e confirmar a altivez de milhafre ferido na asa, do Porto do Carlos Tê e de todos que o sentem seu. Também ele conhecia histórias sobre a ponte D. Maria, e muitos sabiam do número de parafusos caídos ao Douro a cada comboio. O pensamento atemorizou a Marta Soares até 1991, quando passou a atravessar o rio, pela nova ponte, a São João, projectada por Edgar Cardoso.

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       Entre o dia em se conheceram na piscina e o do casamento decorreu pouco mais de um ano. Casaram em Setembro de 1989. A desenvoltura e segurança da Ana Paula atraíram o Pedro, habituado a meninas mais discretas e titubeantes. Agradava-lhe uma mulher que sabia o que queria e se mostrava sem hesitações empolgada por ele. Gostava do passo decidido, do bambolear do corpo e do ar vistoso. Entenderam-se bem no namoro e nos primeiros meses de casamento, enquanto durava a paixão. A forma da mulher absorver entusiasta o mundo e os interesses do Pedro, enchiam-no de vontades de a impressionar. A natureza coquete e as artes de sedução deixavam-no desvanecido. Os modos desenvoltos do Pedro, a maneira de a admirar com o olhar, a desenvoltura de conversa e, claro, o tipo de beleza distinto do comum, do cabelo loiro e olhos azuis, deixavam a Ana Paula focada e apaixonada.

       O quotidiano inicial foi tranquilo. Valorizavam a modernidade. A montagem da nova casa manteve-os distraídos da própria natureza, voltada que estava a atenção para elementos imprescindíveis ao dia a dia. O micro-ondas para aquecer o café com leite da manhã do Pedro, as tijelas dos cereais da Kellogg’s da Ana Paula. Ou a estante da televisão, o videogravador e as cassetes VHS, alugadas no vídeo clube essenciais aos serões de cinema. A mesma estante na qual assentava a aparelhagem e as bebidas exóticas das noites mais cálidas, sem prescindir da antena parabólica que dava acesso à MTV e a RTL fora de horas e do computador para os joguinhos.

       Estando ambos a trabalhar e ganhando bem, a vida financeira era desafogada e a relação com o dinheiro pacífica. Como engenheiro agrónomo, o Pedro trabalhava no imenso ministério da agricultura, sem nunca ter demonstrado conhecimento de relevo quanto a questões da terra, apenas próxima por causa dos encontros nas quintas de familiares e amigos ou, depois de entrar para o Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, das espaçadas visitas relâmpago impostas pela agenda profissional. Do curso também retirou pouco. Foi feito quase se diria sem querer, tal a falta de noção demonstrada quanto às matérias estudadas. Dispunha, outrossim, de enorme à-vontade para falar das burocracias inerentes ao serviço e fazer conversa sobre as correntes ideológicas em voga a cada momento. Um ás do social e da conversa de circunstância, sustentado no sentido de humor acutilante a que se habituara em família. Ao Pedro a vida desafogada caiu do céu, não precisando de esforço para alcançar apetecíveis comodidades. Apesar de não ter sido nem bom aluno nem técnico de mão-cheia, não sentiu dificuldade alguma em aceder logo no início da vida profissional a rendimentos abonados, e habituou-se a usar de certa displicência no aspecto monetário de vida. Era, aliás, assunto que fora educado e menosprezar, essa coisa de contar os tostões ou poupar era um tanto desprezível, coisa de gente pouco polida. Dizia à mulher que a sovinice lhe fazia lembrar os primos de Gondarém. Apesar dos muitos haveres e boa educação comportavam-se como judeus, considerava. A Ana Paula retorquia: são assim maus? Desde criança associava os judeus ao mal, pelo uso do termo popular judiaria, enquanto sinónimo de maldade, herdeiro de séculos de segregação. Na sua cabeça, mesmo após os filmes vistos na RTP e das aulas de história, não conseguia desfazer a dúvida, que colocava nestes termos: afinal os judeus seriam os vilões ou as vítimas. Anos depois, a Lista de Schindler e mais tarde a Vida é Bella, de Roberto Benigni ecoaram na consciência em força. Mas foi sol de pouca dura; encetado o novo milénio, já o anti-semitismo se disseminara novamente em parte substancial das redações de jornais, dos fazedores de opinião, depois, nas redes sociais, e, logo, a indignação sentida face à barbárie, foi esquecida. Recuando novamente ao ano de 1990, o jovem casal entendia-se e, apesar do sangue judeu de parte significativa dos portugueses e do próprio Pedro, ele não gostava de ser chamado à realidade. Temendo descobertas incómodas, desprezava a genealogia. Desconhecia a origem da fortuna da família, o faro e a esperteza de avós cristãos-novos. Muito menos lhe ocorria que a ilustração testemunhada no convívio entre familiares era a melhor das decorrências da riqueza. Seriam precisos muitos anos para perceber que a acumulação de bens pode servir óptimos propósitos e o desprezo pela dita só faz sentido se obtida de forma amoral ou servir para maus fins. Sobretudo, nunca chegou a compreender que a honestidade decorre da forma vertical de estar na vida e na forma de se tratar os outros, mais do que na acomodação e na adesão às linhas de pensamento e de regime vigente. Por mais proveitosa tivesse sido a necessidade sentida na adolescência, do início dos anos oitenta, de militar num partido de extrema-esquerda, que pena fosse apenas pelo aspecto cool da coisa, pela graça de criar atrito à mesa familiar ou alargar o grupo de amigos, e não tivesse sido pela compreensão do ajuste necessário à sociedade. Mas dava-lhe it, achava ele. Afirmava-se contracorrente, curiosidade divertida, na fase em que monumental maioria dos portugueses se dizia de esquerda ou apresentava discurso consentâneo com o socialismo radical. Ser de esquerda em Portugal nas décadas de setenta e oitenta, poderia ser merecedor de variados elogios. Porém, em abono da verdade, não podia estar mais longe de ser um acto de coragem.

       Mas impressionava a noiva e isso também contava. Era um homem apaixonado. Mês e meio antes de casar, a Ana Paula saiu da TAP, um pouco para agradar ao namorado que, se achava graça à ideia de ter uma mulher viajada e às escapadelas à Paris de borla, tendia ao desejo de vida familiar mais tradicional. Por essa razão, sugeriu a amigo próximo que encontrasse emprego à namorada. E, assim, ela começou a trabalhar no Solverde, como secretária do director comercial.

       Também ela gostava de exibir desdém pela contenção de gastos. Achava conferir-lhe certa superioridade, não permitindo fosse confundida com gente pobre.  Precisava demarcar-se do orgulho na humildade sentida pelos pais. Pobres, mas honestos, ouvira em casa um sem-número de vezes. E a forma encontrada para dar a volta por cima, era desdenhar da falta de dinheiro. Pouca coisa na vida seria tão preciosa à Ana Paula como os bens materiais, mas havia que dissimular a carência passada, dando ar de nada ter faltado. Expressões dos pais e dos avós e tios, como a do sabes lá por aquilo que passámos, a vida custa muito, comíamos uma sardinha e olha lá, muito em voga nos anos oitenta em desabafos sobre o passado de muitas famílias pobres portuguesas, seriam abolidas pela Ana Paula. Quase injuriava os pais por as proferirem. Ninguém precisava saber dessas menoridades. Fazia questão de fazer crer e que a mãe fizesse crer o que parecia digno de gente abonada. Na sua linguagem ainda por refinar, dizia que sempre comeu do bom e do melhor, que comprava carne de primeira no talho, era a melhor cliente da ourivesaria, na qual só comprava ouro, e da boutique mais cara de Espinho, onde a mãe a ensinou a comprar a roupinha da Páscoa. Mais tarde afinou o discurso e principiou a evitar estes pormenores, por ter percebido junto das colegas do Solverde soar a conversa de gente sem educação. Antes, na TAP, não percebera os lamirés a respeito da falta de civilidade.

       Formavam um casal do seu tempo, democrático não só pela miscelânea de aristocracia e plebe, tão antiga quanto o mundo, mas aos olhos dos próprios uma conquista da modernidade, mas também pelo desdém à frugalidade e à poupança, que os remetia para o passado de país velho e bafiento dirigido pelo homem, cujo nome serviu para baptizar o rapa-tachos. A frugalidade e a prudência nunca condisseram com juventude, mas nos anos oitenta e noventa, aos olhos dos arautos da modernidade, eram blasfémias no mínimo de gente velha, provavelmente reaccionária e quase de certeza fascista.

       A Margarida ficou a imaginar quem poderia testemunhar o capítulo agora a terminar, mas logo constatou ser difícil; parecia impossível encontrar alguém que cumulasse três requisitos: estivesse vivo, fosse ouvido no meio do ruído insano e percebesse a subtileza dos termos frugalidade e bom senso, sem ser de imediato ridiculizado e proscrito para a terra dos ignorantes, como a voz corrente chama a toda a gente que não se verga perante as vagas dominantes e passageiras. É, aliás, curiosidade da nova era, a massificação do léxico trouxe a curiosidade de se ouvir absolutos imbecis a apelidarem de ignorante gente pensada, absolutos alarves a chamarem mal-educada a gente muito bem-educada, e por aí adiante. Democratizou-se bem a palavra; faltou democratizar a inteligência e a sensibilidade. Tarefa bastante mais difícil até porque elas não são fáceis de encontrar ou sequer comprar. Bom senso e frugalidade são termos apagados da linguagem e dos hábitos dos portugueses e de parte importante dos povos contemporâneos. Retrocedeu nos anos, lembrando-se de colarinhos gastos, virados do avesso para durarem mais meia-dúzia de estações, e de fatos com igual destino, e de tintureiros que tingiam a roupa desbotada, e de camisolas desfeitas e lã ou algodão aproveitado na camisola do próximo inverno ou verão, até ao momento em que o smartphone apitou para anunciar a entrada de mensagem na caixa de correio electrónico; devia ser o aviso de desconto de vinte e cinco ou cinquenta por cento num qualquer produto de supermercado, ou o alerta de existência de gadget sem utilidade nenhuma, ou a oferta de teste gratuito do aparelho auditivo que, em vez de três mil euros extorquidos pelas lojas dos verdadeiros, custa apenas cinco euros; o que apesar de tudo não é caro por uma pilha e um amplificador de som fabricado na Indonésia. Deixou-se embalar pelo trabalhoso cálculo de quantas camisolas de lã tricotadas pela mãe daria o dinheiro gasto a comprar o smartphone, que duraria os próximos quatro anos. Dezenas, com certeza.

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