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       Em 22 de Novembro de 2014, após o pico de audiência e para descanso dos produtores, que viam a vida malparada com o insucesso inicial do programa, sobretudo, a dificuldade em entrar nas camadas mais jovens, o reality show lançou mão de novo trunfo. Se antes as audiências não estavam a sair como planeado, já que os habituais espectadores das casas do segredo não tinham aderido em massa ao novo formato, o espiolhar das intimidades e debilidades da protagonista conferira vigor ao programa e, agora, voltaria a não falhar com a aparição do Alexandre. A base de audiência da piada fácil e da falta de filtro estava ao fim de trinta anos muito ampliada. Se antes as anedotas versariam sobre a inabilidade para a condução das mulheres, agora que a realidade havia desfeito o lugar-comum, nem sequer sobrava ao piadista a ignorância das mulheres e, em especial, da Ana Paula quanto a assuntos de mecânica. O mote do debate foi, por isso, a sagacidade do Alexandre como vendedor. Vinha a propósito dos presentes de aniversário que os pais da Ana Paula quiseram oferecer nos dezanove anos: a carta de condução e um automóvel. Desejo da Ana Paula desde os dezoito; dos poucos não satisfeitos até então. O trio foi comprá-lo ao stand para o qual o Alexandre entrara há pouco tempo. Trinta anos depois ainda gozava de ter feito uma bela comissão. Saíra do liceu nesse mesmo ano e, no alto da impetuosidade dos quase vinte anos, contrapôs preço mais alto ao patrão, que estabelecera o preço de venda do carro em mil e duzentos contos em atenção a ser um recuperado. Se o vendesse por mil e trezentos, acordaram eles, somava à comissão de cinco por cento, metade dos cem contos que acrescera da sua lábia. E conseguiu, convencendo os pais da colega que o carro fora do José Malhoa, de quem eram apreciadores. Contou o Alexandre no programa ter dito aquela mentira porque a morada do antigo proprietário do carro era Rua José Malhoa, em São João da Madeira. E rindo a bom rir dizia: à custa do pimba mamei quase um salário mínimo de assentada. Tantos anos após e já na casa dos cinquenta, após ter contado o episódio dezenas de vezes, nunca tomara consciência do homenageado da rua ser o pintor. Em bom rigor, nem ele nem vários elementos da equipa de produção do programa, pelo que a entrevista do dia 22 de Novembro deixou o equívoco bronco entre a audiência. E quando mais tarde houve uma alma caridosa a chamar à atenção, o Alexandre apressou-se a tentar fazer querer que sempre soubera quem foi José Malhoa e mostrou-se espantado por não poder brincar com nada, porque há sempre virgens ofendidas. Naturalmente, a crítica atentava a liberdade humorística e a inteligência.

       Com ou sem pimba, a Ana Paula teve o primeiro carro, o Volkswagen Golf em segunda mão. Longe de ser o carro dos seus sonhos, depressa o tomou elemento de orgulho. Havia no stand vários carros Fiat e Renault baratos, dizia. Aliás, se quisesse um novo podia trazer um desses por menos, acrescentava. Mas eu quis um robusto e fiável. Papagueava os adjectivos em voga na publicidade da marca alemã que ouviu ao vendedor e amigo para a convencer e despachar o carro recuperado de acidente, no qual o dono deixara de confiar. Mas a amiga teve sorte, o carro acabou por não dar problemas de maior e resolveu a questão das primeiras deslocações entre Espinho e a Maia, nos diferentes horários do trajecto a percorrer para se juntar à tripulação de que fazia parte nos voos TAP.

       Estávamos em 1986 e o negócio automóvel iniciara boom inimaginável nessa década. A considerável melhoria das condições de vida no país proporcionou o acesso massivo ao automóvel. Bem de luxo até há década anterior, ao qual a grande maioria das famílias portuguesas não tinha acesso, o carro democratizou-se. Dos anos noventa em diante, poucas famílias em Portugal não o têm. Os utilitários vieram substituir em muitos casos, as motorizadas que circulavam em abundância nas estradas portuguesas com destino às fábricas ainda a operar no país na década de setenta e início dos anos oitenta. Foi de motorizada, numa Casal Boss, que a Ana Paula se habituou a andar em criança, ora sentada entre o pai e a mãe, ora à frente junto ao guiador. Depois dos oito anos começou a odiar aquele meio de transporte. Ainda teve de o suportar mais alguns anos, até aos pais juntarem dinheiro suficiente para comprarem o Renault 5 em segunda mão. Nele, em Maio de 1982, fez a primeira grande viagem para ir a Fátima. A mãe queria acender a vela a Nossa Senhora pelas muitas graças concedidas até então, o marido que a tratava bem, a filha cheia de saúde e boa aluna na escola, a casa onde não faltava o essencial e agora até o tão desejado carro. Não ia a Fátima pedir, mas sim agradecer. A vida corria bem e a Armanda era grata por tudo. Já a filha esteve no santuário, no alto dos quinze anos, com atitude mista de desdém e perplexidade. Se a gratidão da mãe a irritava profundamente, achando que a vida lhes devia muito mais, o fervor da multidão mexia intimamente, sem conseguir explicar o aperto de peito sentido ao assistir à manifestação de fé da mole humana que enchia de comoção a noite de doze de Maio do santuário. O cenário de velas acesas na escuridão, as ondas de silêncio, de oração e de cânticos humanizaram o figurino; até a Ana Paula baixou a cabeça ao ver passar da imagem de Nossa Senhora e não conteve a lágrima por explicar.

       Ao contrário da mãe, achava faltar o essencial em casa. Sessenta metros quadrados modestos divididos em três assoalhadas. A sala feita de pequeno sofá de pé alto e três lugares em napa verde escura, a cristaleira apinhada de pequenas peças de porcelana, a mesa de jantar de vidro e metal e quatro cadeiras de metal e assento de veludo vermelho, muito diferente do esplendor que via na novela brasileira da televisão. Faltavam os enormes sofás brancos cobertos por almofadas de seda coloridas, os brilhos dos grandes vasos e alvura das colunas e estátuas que preenchiam os amplos cenários das casas de gente rica construídos na brasileira rede Globo. E como odiava a cama estreita de formica bege encostada à parede, a condizer com o guarda-fatos de duas portas. Sonhava uma cama de casal, mas hesitava entre a de dossel idealizada em criança e a grande cama de ferro de cabeceira encostada ao janelão. Concretizou este sonho quando saiu de casa dos pais e arrendou o apartamento que transformaria num cenário meticulosamente idealizado ao longo dos anos anteriores, nele se entregaria mais tarde à paixão do desejado homem dos seus sonhos, com quem casaria.

       Em 1987, no entusiamo da montagem da primeira casa, ainda ouviu uma decoradora, amiga de colega da TAP, mas a sugestão da rede de pesca pendurada na parede da sala, junto ao bar, e âncoras, ânforas, conchas e estrelas-do-mar agarradas, fê-la recuar. Nessa a Ana Paula não caiu. Sabia bem que estava em desuso; recordava-se da ideia, ou do conceito, como se diria hoje, numa capa de revista de decoração da Livraria Neves, há seguramente oito anos, era ainda pouco mais do que criança. Além de mais, fazia lembrar as modestas casas da zona sul, a zona piscatória de Espinho. Quis a decoração mais despojada, mais clara e aberta e fê-la sozinha, sem recorrer aos conceitos do design interior aplicados pela amiga decoradora.

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         A 2 de Novembro de 2014, a Entrevista retrocedeu aos anos de 1984 e 1985 e o grande tema esmiuçado foi a saúde frágil da protagonista e os meses difíceis por que passou. Em Dezembro de 1984 adoecera. A entrevistada teve oportunidade de contar pela milésima vez, agora perante audiência de milhares, o quão difícil foi sofrer de uma doença estigmatizante, e como havia, à época, preconceito contra os portadores do vírus da hepatite. Recordava a vergonha de outros doentes e do modo como escondiam a sua condição, com medo de serem alcunhados de promíscuos. Já ela desafiara os tabus contando a todos padecer de hepatite A, recordava a admiração das amigas ao conhecer seu drama e de como deu a volta por cima, fazendo da sua história de vida exemplo inspirador para outras pessoas.

       No restaurante, a Margarida e a Helena trocavam olhares divertidos enquanto os rapazes desfrutavam do pratinho. O Carlos Alberto faltara ao jantar semanal, alegando ficar uma fortuna percorrer Lisboa-Porto todas as semanas. Os quatro estavam mais livres do que nunca. O Luís comentava não haver vivalma no Liceu, nos idos anos oitenta, não soubesse do estado clínico da Ana Paula. O Oliveira, pragmático, dizia: verdade seja dita, não era só o clínico, não havia quem no Liceu não soubesse os estados de alma da Ana Paula, e se houvesse ela tratava de pôr cobro a isso. As raparigas traziam à memória a Enciclopédia de Saúde da Reader’s Digest, na qual, a maioria dos adolescentes curiosos com acesso a livros se tinham ilustrado quanto a todas as nuances das hepatites e outras enfermidades. Fora, por isso, com ironia e sem perplexidade, habituadas ao pioneirismo da Ana Paula, que a ouviram falar da admiração e confusão provocada, na altura, nas amigas.

       Foram as Soares, antes mesmo dos médicos, a elucidar a Ana Paula quanto ao prognóstico e, sobretudo, foram elas a desmitificar causas, pondo-a à vontade. Contaram que a doença havia sido diagnosticada quatro anos antes à filha de uns conhecidos dos pais, que viviam em Santarém. A rapariga tinha quinze anos e possivelmente teria contraído o vírus, através da ingestão de alimentos contaminados. A Margarida recordava que a notícia não impressionara nem a Lara, ficando apenas preocupada com a saúde da Ana Paula, como de resto estavam todos os amigos. Por isso, achava graça à alusão na entrevista, por parte de uma das convidadas do dia, a mesma Lara, notoriamente em conivência com a visada, à injúria de promíscua, que alegadamente alguns colegas dirigiram à agora entrevistada. Na verdade, tais julgamentos não passavam pela cabeça de ninguém no liceu, preocupados com as próprias vidas e cientes da Ana Paula nada esconder. Mas ela e a Lara gostavam do tema. Nada que estranhassem a Margarida e a Helena. Bem se lembravam das histórias mirabolantes e como o tema sexo e, sobretudo, sexo forçado era fulcral no repertório das outras duas. Os cenários variavam entre ruas estreitas e perigosas onde asseguravam já tinham sido violadas raparigas da sua idade, e por onde a Margarida e a Helena passavam quase diariamente, só vendo escombros, lixo, débeis mentais e toxicodependentes, por assaltos, nestas mesmas ruas, de seringas contaminadas com o vírus da sida ou, simplesmente, por casas assaltadas em noites arrepiantes, que acabavam sempre com mulheres molestadas. A narradora trouxe à memória a pergunta que fizera à Helena, nesse ano de 1984, e cuja resposta a tranquilizou para a vida, afinal havia raparigas normais. Quando pensas na possibilidade de um assalto em tua casa, que mais te vem à cabeça e assusta? Que me batam. Que magoem o meu irmão ou os meus pais. De resto que levem as porcarias que quiserem, respondeu a amiga. Porquê? Acrescentou. Porque há gente que não percebe que os assaltantes querem é dinheiro e valores. A Helena percebeu e sorriu, rematando apenas: deixa, elas gostam de fantasiar.

       Mas as sensaborias de sensatez não rendiam audiência, pelo que os entrevistadores exploraram à saciedade os pormenores das dores de alma da Ana Paula nos seus difíceis dezoito anos. Ela contou ter perdido o ano, passando mais de cinco meses enfiada em casa, enquanto se tratava com descansos e a pouca medicação que podia tomar, aguentando estoicamente as febres, as náuseas e as dores musculares, aguardando a regeneração do fígado. O médico na altura disse-me que estive muito perto do fim. E deixando correr duas lágrimas pela cara, acrescentou: estive à beira da morte. Quando estamos frágeis vemos a força que temos. Nada nos derruba, se acreditarmos em nós mesmos, terminou.

       O tema deu novo fôlego às audiências da Entrevista, aumentando-as de modo significativo, em sequências de comentários nas redes socias, nas quais a dissecação das miudezas provoca variáveis de sentimentos bem reveladoras da natureza humana. Impressionados com tamanha bravura face à desgraça, uns revelavam-se seus admiradores. Outros, desdenhosos, destilavam fel. E a figura, agora sim, começava a ganhar força. Calculista o suficiente para não se deixar aquecer ou arrefecer com o que sobre si diziam, juntava os elogios e as ofensas, como peças pretas e brancas do mastermind. A solução estava ao alcance em poucas jogadas. Sabia-o. Astuta, achava que a combinação de cores daria sempre o mesmo resultado: inveja. A Ana Paula não considerava bem-sucedido sinónimo de estar bem consigo mesmo ou ser admirado ou amado, mas sim ser invejado. Cada vulto atrás do comentário nas televisões e redes sociais, do piar do Twitter, ou do post no blogue, do artigo no jornal, representava uma peça branca ou preta, a manipular, com a mesma dose de ardil. A combinação de amor-ódio era vital na escalada.

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       Ele voltava; em princípio, voltava. Aprendeu a não ter certezas. E sabia que esta dúvida, sobre se um dia o Vicente não regressaria, era prova do amor que sentia por ele. Não o tinha como adquirido, como não tinha por certa a alegria. Saboreava bem ambos. E queria aproveitar o ânimo para adiantar o livro e terminá-lo. Já passara tempo de mais a empatar. Sentou-se na cadeira em frente à secretária, na qual estava pousado o portátil, e abriu a entrevista do dia 10 de Outubro. Os entrevistadores recuaram ao final do ano de 1986 e discutiu-se o contexto em que surgiu o primeiro emprego, como hospedeira de bordo. Pela discussão final, depois de entrevista inicial, do testemunho da Lara e da recusa do Carlos Alberto em colaborar na produção do episódio, percebeu-se que nas últimas semanas de Dezembro de 1986 a miscelânea de assuntos relevantes era o Alberto e a TAP. N’ O Nosso Café, juntou-se à Helena e à Lara para voltar à carga: Espinho é uma terra pequena e tacanha, preciso alargar horizontes e esquecer o sonso do Carlos Alberto. Ele alinhara no veneno das primas sobre aquele episódio rocambolesco do carnaval de Ovar. Quase um ano depois, tinha-se desavindo da prima no namorado, que em revanche, resolvera contar ao rapaz o que vira e o que não vira no desfile. A Ana Paula repetia insistentemente que não curtira com o Victor, nem tal lhe passava pela cabeça. Quando a prima do ex-namorado se aproximou, estava apenas tonta de tanto ter dançado e a consolar o amigo de infância pelo recente desgosto. Nem perdera tempo a explicar as razões ao Alberto, como sempre lhe chamava, ao contrário dos amigos e família. A falta de confiança demonstrada na cena de ciúmes era motivo suficiente para acabar o namoro de mais de três anos. E estava decidida a mudar o rumo da vida. No fim-de-semana vira, no jornal Expresso, que começara a comprar para leitura exclusiva das páginas de emprego, o anúncio de recrutamento de hospedeiros de bordo da TAP. Iria responder, e acompanhada de inabalável certeza, iria conseguir o lugar.

       Dito e feito. Fez a entrevista, os testes psicotécnicos e médicos e entrou para o curso, estreando-se a trabalhar primeiro nas rotas domésticas, alargando o mundo tacanho de Espinho, ao exótico mundo dos aeroportos de Pedras Rubras e Portela e redondezas. Mais tarde ao de Faro e das ilhas, e no último meio ano de trabalho até aos exuberantes aeroportos de Orly e De Gaulle, em vôos apinhados de conterrâneos emigrados. Ao todo, foram três anos em que a experiência na aviação da TAP, essa sim, interessante pelas competências técnicas de excelência, trouxe algo de novo ao mundo da Ana Paula. Além dessa vantagem, a mais significativa foi a de incrementar ainda mais a autoestima da protagonista e conferir-lhe a pinta necessária para despertar interesse do tão desejado Pedro.

       Mas afinal como o havia conhecido a Ana Paula? Escreveu a Margarida, sorrindo e pensando que o espírito alinhado do Vicente gostaria de estar neste momento a lê-la. Ou não. No Verão de 1988, em Julho, a Ana Paula fora na companhia da Helena e a Lara passar a tarde à piscina da Granja. Programa comum de muitos jovens de Espinho e Gaia. Nas espreguiçadeiras do terraço junto à piscina estavam deitados o Tomás, os primos Pedro e Gonçalo, além do amigo Manuel. Tinham despido as calças de sarja e pólos, ficando em calções curtos lisos ou de xadrez miúdo. Formavam elegante grupo de rapazes magros e ágeis, sobressaindo o Pedro por ter rosto simétrico e corpo desenhado a proporções generosas e elegantes. Comentavam o mau gosto das bermudas compridas e floridas do rapaz que ensaiava mergulhos sucessivos para a piscina junto do irmão mais novo e, quando o Tomás dizia que pior só mesmo a tanga, viram surgir a Lara numa longa t-shirt negra e riscada de branco e cinza. Atrás surgiram as outras, e as três abeiram-se de um dos últimos conjuntos de espreguiçadeiras ainda livres. Despachada a Lara fez sair pela cabeça a longa t-shirt, descobrindo o biquíni a imitar tecido de jeans. A Helena despiu a blusa pérola de alças largas e calções caqui, deixando-se à vontade no fato de banho verde água. A Ana Paula vinha coberta com páreo em tons quentes, de vermelhos, laranjas e amarelos, numa paisagem a renascer paragens longínquas de palmeiras e sol quente, e ao destapar-se fez surgir o biquíni alaranjado a condizer, atado por laçadas de cordões.

       A chegada das três amigas não deixou de despertar o interesse no grupo de rapazes, tendo o Gonçalo e o Manuel desatado de imediato a comentar os atributos físicos das donzelas. O Pedro manteve-se calado, muito calado, mas absolutamente embevecido por tudo quanto envolvia o sol quente das palmeiras. Para espanto de todos, o Tomás riu triunfante e disse: se as querem conhecer basta seguirem-me. E assim foi. Levantou-se, foi cumprimentar as colegas de Liceu e apresentou-as ao Gonçalo e ao Manuel. Já o Pedro se deixou estar de papo para o ar, olhos fechados como se nada fosse. Sabia que poucas coisas são menos encantadoras do que o maralhal de apresentações. Deixou-se estar, sabia que o seu momento chegaria. Na outra banda, o grupo agora alargado, falava e ria. A Lara questionou o colega sobre o amigo que ficou deitado na cadeira e rapidamente engrenaram todos a cantarolar animados, mas baixinho a música Pós-modernos dos G.N.R., que se ouvia no rádio do grupo das espreguiçadeiras do lado. Indiferente ao que diziam, até porque nem sequer os ouvia, o Pedro levantou-se e mergulhou em ângulo perfeito, tendo feito duas piscinas em crawl ainda mais perfeito. Foi à cadeira buscar a toalha, limpou a cara e cabelo, enrolou a toalha à volta da cintura, realçando o porte atlético, e dirigiu-se ao grupo. Então, vêm para aqui para a cavaqueira e nada de nadar?  Eu sou o Pedro e as meninas, quem são? Perguntou directamente, não buscando ajuda do primo, nem dos amigos. A Lara apressou-se a dizer: eu sou a Lara. E olhando o Tomás, comentou: afinal o teu primo não é tímido. Seguiu-se a Ana Paula. Disse apenas o nome, encolhendo as pernas para permitir que ele se sentasse. Por fim a Helena, comentou a proeza do rapaz ter feito duas piscinas em menos de minuto e meio. Obteve apenas um sorriso desligado do Pedro, enquanto se sentava nos pés da espreguiçadeira de Ana Paula, e comentava o navio Reijin na praia da Madalena. Falaram sobre as circunstâncias em que encalhou e o Pedro descreveu o tamanho gigante ali mesmo, com mais de cinco mil carros novos a bordo, a escassos metros na praia, despertando o interesse dos que ainda não o haviam visto. De tal forma que combinaram hora para no dia seguinte o irem ver, antes que o cargueiro japonês fosse desmantelado.

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       Para a entrevista de 5 de Outubro foi sorteado o tema escola primária. Perguntada sobre a memória do ano de 1974, a Ana Paula revelou precisar de se esforçar para recordar a sua vida aos sete anos. Andava na segunda-classe e a professora chamava-se Maria Amália e, às vezes, dava palmadas nas meninas que se portavam mal; nela nunca deu, porque não fazia asneiras. Lembrava-se que na sala só havia meninas e ouvia dizer à Helena que a professora do irmão era mais dura nos castigos; batia com a régua sempre pousada junto ao giz na estreita prateleira do fundo do quadro preto de ardósia. Eles estavam noutra ala da escola. Nos recreios também não se juntavam, adiantou a protagonista, contando da estranheza que foi quando na quarta-classe a turma passou a ser mista.

       No primeiro quarto de hora que durou a entrevista descreveu a sala de aula, os colegas e as brincadeiras. Seguia-se uma espécie de acareação em diferido e à distância. A equipa do programa gravara o testemunho da professora. Segundo o desenho do reality show que animou as noites do Outono de 2014 a professora podia trazer alguma luz sobre o que foi a vida da Ana Paula. Em cada dia, o programa era dividido em três partes de quinze minutos cada. Abria pela entrevista, seguiam-se os testemunhos do dia, e terminava com a discussão entre a concorrente e os entrevistadores. Sendo um fixo, o outro convidado.

       A professora Maria Amália, agora quase aos oitenta anos, acedeu a gravar o testemunho bastante relutante por motivo fácil de perceber, mas que foi escondido pela equipa de produção; ela mal se recordava daquela turma e da Ana Paula. Fora há quarenta anos. Mais de um milhar de crianças passara pelas suas mãos ao longo das quatro décadas em que deu aulas. Começou em meados dos cinquenta e assim se manteve até 1997, quando se reformou. Se a deixassem falar do que queria, falaria da paixão pelo ensino, pelo gosto em pegar em meninos e meninas de seis anos, ainda muito bebés, e fazer deles uns sábios, ensinando-os a desenhar as letras e a juntá-las sílaba a sílaba, até a palavra correr veloz, a contar pelos dedos e mais tarde contar de testa franzida pelo esforço da abstracção, a ajudá-los a ter regra e disciplina. Guardava na memória saudade a alguns alunos, sobretudo os muito curiosos e os que faziam perguntas difíceis. Um deles era o Leonardo. Lembrou-se a custo daquele primeiro ano de junção de rapazes e raparigas na mesma turma. A meio do primeiro trimestre, resolveu trocar os lugares e pôr na primeira carteira o Leonardo e a Helena. A junção natural e justa. Ambos mereciam ser deixados em paz pelos anteriores parceiros; dois bons alunos e sobretudo, educados e respeitadores. Mereciam. Quem não gostou nada da mudança foi a Ana Paula, que passou para a segunda fila. Era colega do lado da Helena desde a primeira classe e quando a professora comunicou a alteração fez perrice, deixando de falar à amiga durante dias por esta não se ter oposto. Disso se lembrava a professora; mais nada. Insistindo a produção em obter mais informações, a professora acabou por dizer que tinha ideia que a concorrente era boa aluna, cumpria o pedido.

       Com testemunho tão curto, a produção descobriu o Nelson, aluno da mesma turma. Perguntado sobre a Ana Paula, respondeu de imediato que se recordava que em 1976, na quarta-classe, foi a primeira vez que esteve na escola junto das raparigas. E lembrava-se de ter descoberto que as meninas estudavam as mesmas coisas. Até então, até porque era filho único e não tinha primas da sua idade, achava que as meninas não aprendiam a ler, escrever e fazer contas. Pensava que aprendiam costura nas aulas de lavores como a vizinha de porta, cinco anos mais velha. Pelo menos ouvira a mãe dizer que a menina era muito jeitosa nas lides de casa, pois pudera, andava no curso de formação feminina. Pelo que foi grande descoberta, saber que rapazes e raparigas aprendiam o mesmo na sala de aula. Da concorrente, dizia: a menina mais linda da sala, mas muito mazinha para as amigas. Lembrava-se do episódio da troca de lugares e de como ficou zangada por ser preterida. Um tanto encabulado, disse na entrevista: isto é chato para outra colega se estiver a ver o programa, mas o que mais chateou a Aninhas, é que ficou ao lado da Fernanda, que ela dizia que vestia roupa remendada. Nós não víamos essas coisas, porque todos usávamos bata, mas a Aninhas apontava essas coisas todas. Ela tinha manias de rica; não era, mas tinha as manias.

       Afinal acabaste por dar continuidade à entrevista, concluiu o Vicente após ler os dois últimos capítulos. A Margarida anuiu, abanando a cabeça e, vendo o olhar meio vazio do namorado, confessou: não me ocorreu nada melhor. Afinal de conta era a minha ideia inicial; até comecei o romance ou novela, ou o que isto é, pelo primeiro episódio do programa. Pois, mas depois mudaste de ideia e fizeste aquela entrada triunfal da Ana Paula no jardim da Espinho. Pensei que ias por aí, estranhou o Vicente. Sim, mas tu mesmo me disseste que expunha demais o que pensava sobre a evolução do país, desculpou-se ela. Sim, e? Insistiu ele. Desististe? Não me digas. Era a primeira vez que me davas ouvidos. Ela ripostou: farto-me de te dar ouvidos e tu não dás por ela. Mas quanto ao triunfo no jardim de Espinho, não desisti, vai passar a epílogo. Ele não conseguiu deixar de rir alto e acrescentar, contigo isso de escrever é um puzzle, martelas é um bocado as peças, sempre quero ver a paisagem final; aposto que vai haver nuvens na relva, e toupeiras no céu. Ora, aí está, comigo as coisas são menos convencionais, defendeu-se ela. Para o céu vou eu por te aturar estes anos todos. Sabes, na semana passada vi que ainda tenho muitas peças soltas e que isto não ata nem desata, por isso resolvi-me e ontem estive a escrever sobre o percurso das várias personagens. Hoje preciso de cosê-las à Ana Paula. Olhou à retaguarda e viu que já estava a falar sozinha, o Vicente zarpara. Ouviu-o já na porta de entrada do apartamento a dizer: devias ter-te aplicado mais nos lavores, afinal passas a vida de agulha e linha. Vou buscar pêssegos, devo voltar um dia.

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       No início de Outubro de 2014, a Margarida juntara-se aos antigos companheiros de liceu, no encontro que marcaram a cinco, vindo a Helena, o Luís, o Carlos Alberto e o Oliveira. E se o pretexto eram os habituais jantares anuais, por ocasião do início do ano lectivo e que, dos cerca de vinte convivas iniciais e ao fim de quase vinte anos, se foi reduzindo a este quinteto, a verdadeira razão era comentar o desempenho da Ana Paula na Entrevista da TVI, que sabiam ser rampa de lançamento para a candidatura às legislativas de 2015, como cabeça de lista do PS, pelo distrito de Aveiro. A primeira entrevista foi feita no dia 28 de Setembro de 2014, e versou sobre a infância e o primeiro casamento, tendo a entretanto licenciada em psicologia falado nas agruras dos tempos antigos, como Espinho tinha sido terra de injustiças, e se recordava bem da impossibilidade de falar abertamente por receio da polícia, que na verdade ocultada das câmaras, só associava ao velho militar da Guarda Nacional Republicana, que vira mandar levantar a barraca explorada pelos tios, sem licença, na grande e ruidosa Feira de Espinho.

       E também conversou sobre a ingenuidade com que casou a primeira vez, na Igreja, jovem e sem perceber que estava a cair na armadilha do casamento tradicional por imposição da família. Rebobinou até 1989 e recordou a discussão com a mãe, Armanda, na qual esgrimiu razões, agora referidas como anti casamento católico, mas à época apenas contra o curso de preparação para o matrimónio imposto pelo pároco. Tivera breve contacto com as lides espirituais, nunca faltando à catequese de preparação das comunhões, mas cedo se habituou ao tema religião como alvo de chacota e desdém. Fazendo uso de todos os argumentos que aprendera e desenvolvera nas conversas jocosas entre colegas de liceu e de trabalho, tomou posição. Não se sujeitaria às imposições ridículas impostas pela Igreja. Não, não queria fazer o curso de preparação. Tudo isso lhe soava a antiquado, enfadonho e, acima de tudo, causava vergonha.

       Cresceu na época em que atacar a Igreja era sinónimo de inteligência e libertação. Depois de tantos anos de cinzentismo e contenção, e apesar do país ter passado pela perseguição religiosa há não muito tempo, no início do século XX, pelas mãos da primeira elite republicana, a nova geração sentia necessidade de voltar a demarcar-se da vetusta instituição e de se mostrar mais arejada e ilustrada. Isso significava denunciar e ridiculizar a desonestidade, a falsidade ou tão só a credulidade de devotos, praticantes, padres e de todos quantos tivessem alguma ligação à esconjurada Igreja. Não queria ser confundida com essa gente, que diriam as amigas se soubessem que teria de voltar ao tempo de catequese, quando criança, nos idos anos setenta. Além de mais, ninguém poderia intrometer-se no grande dia da sua vida. Na Igreja, que serviria apenas de cenário, tudo seria simples. De longo vestido caicai, imaculadamente branco, apareceria na porta pelo braço do pai e sairia coberta de pétalas e arroz, ao lado do marido. Preferências obviamente omitidas do discurso actual, no qual a referência pela própria ao vestido e costumes passou por mera alusão sobre piroseiras da juventude.

       E contou que, à época, a mãe insistira que a bênção era importante e não custava nada fazer a vontade ao padre. O facto é que nem por momentos, no espírito das duas almas argumentativas, ocorria recordar o significado primeiro da celebração. Nenhuma se acostumara a questionar a fé. A filha por seguir as tendências do momento. A mãe por crescer convicta e crente na benévola Senhora da Ajuda e na adoração do Cristo sofredor, que aprendeu a venerar olhando a imagem esculpida por Teixeira Lopes, no altar lateral da Igreja Matriz. Além disso, era orgulhosa da grandeza da nova Igreja e estava segura de que não seria engolida pelo mar, como a original e pequena capela da nossa Senhora da Ajuda. Sempre idealizou a filha a entregar o ramo de flores na sua imagem, como ela fizera vinte e poucos anos antes. Sabia que os tempos eram outros, mas com a fé deveria haver esmero. De resto, tudo quanto a filha decidira quanto ao copo-de-água parecia bom e moderno. Dariam o almoço abonado no restaurante A Cabana, marisqueira de Espinho, no qual alguns dos familiares e amigos do noivo costumavam realizar jantaradas. Mas desconheciam elas, jamais festejos, muito menos casamentos.

      Na entrevista, abordaram a propósito do mesmo ano, o tema relativo às primeiras férias no Algarve, uma despedida de solteira em grande da protagonista, para quem na verdade o ano de 1989 foi de grande felicidade e de concretização de objectivos. Queria casar, queria casar com o Pedro, menino fino de cabelo loiro e olhos azuis, queria de facto casar pela Igreja para ter a festa associada, e queria marcar a diferença em despedida de solteira dos tempos modernos. Ora, tendo marcado o casamento no primeiro Sábado de Setembro, por sugestão do noivo, que já engolira a marisqueira a muito custo e a contragosto de toda a sua família, não faltando mais do que casar num Domingo de Agosto, combinou para a terceira semana desse mês as férias, em Albufeira, na companhia das amigas, Helena, Lara, Marta e Sofia.

       Se o ano foi bom, o dia 12 de Agosto ficou marcado por discussão monumental, registada na memória da noiva, sem nunca o admitir, como um momento periclitante da sua vida. Tinha a viagem marcada e o apartamento reservado para si e amigas, que adiantaram a quota-parte do valor do arrendamento. Ancorada em infundada certeza, afiançou a todas que não precisariam de viajar na posse de dinheiro vivo, que aliás seria perigoso, porque assim que chegassem a Albufeira levantaria todo o valor na máquina multibanco. Já utilizava o cartão há quase quatro anos, desde que a rede permitia colher notas das paredes fora instalada em Portugal. Era uma mulher da sua era. Tudo seria simples, fácil e sem espinhas, como gostava de dizer. Entre as convivas de férias, mais nenhuma usava multibanco, algumas nem sequer conta bancária, e por isso, dias antes, entregaram a sua parte, receosas. Dir-se-ia mesmo que contra vontade. Chegadas ao largo Eng. Duarte Pacheco, a Ana Paula dirigiu-se ao multibanco cravado na parede da casa que alojava a agência do Banco Português do Atlântico e deu a ordem de levantamento, dos primeiros, achava ela, vinte contos. E sentenciosa, explicada às amigas que bastaria repetir a ordem mais duas vezes, para reunir o valor e distribuir por todas para os gastos dos primeiros dias, e ir à Padaria do lado, ter com a D. Guadalupe, a algarvia que arrendava o apartamento, levantar a chave a pagar os cinquenta contos do alojamento. Tudo seria perfeito. Passariam os dias a bronzear-se na praia e as noites nos bares de Albufeira e da Oura, e não perderiam a oportunidade de conhecer a discoteca Kiss. Aliás, no ano seguinte, concretizaria outra grande ambição, já casada rodaria nos braços do homem dos seus sonhos, na pista de dança da recém-inaugurada Kadoc, tornada famosa pelos raios laser. Regressando à primeira estada no Algarve, tudo seria perfeito, se não houvesse o limite de levantamento associado à conta, que ainda não era do seu conhecimento, mas que, logo, logo passaria a certeza de sempre no mundo da nossa esquitécia. Obviamente instalou-se mau estar entre o grupo, trocaram-se acusações e demorou a chegar a solução, após a cara de poucos amigos da imperturbável D. Guadalupe, que sem pestanejar dizia: sem dinheiro não há chave, nem apartamento. Era Sábado, os bancos estavam fechados e as mais incautas das amigas, cuja primeira vinda ao Algarve era encarada como uma aventura, viam a vida malparada. As irmãs Soares, habituadas a valorizar e contar os tostões, repetiam à exaustão que estavam fartas dos modos de princesa, ideias parvas e ordens da amiga e que já estavam arrependidas de não ter tratado das férias à sua maneira, isto é, voltarem a fazer campismo, como sempre. Que fosse no Algarve, tudo bem, mas o que interessava é que fosse no ambiente divertido dos parques de campismo, os jogos de cartas, os fogareiros e a galhofa. A Lara sentiu um aperto de coração por ter corrido mal a chegada às férias dos seus sonhos. Via nas revistas e na televisão imagens das praias e ruas no Algarve pejadas de gentes de outras cidades do país e, sobretudo, pejadas de estrangeiros, o que a atraia bastante. Valeu-lhes a Helena, sempre vista como a retardada do grupo. Quando os ânimos estavam acessos, pediu que a ouvissem várias vezes, sem sucesso, como usual. Até que ergueu a voz e disse: eu trago o dinheiro que falta. Posso pagar a vossa parte e na segunda vamos ao banco levantar o dinheiro para acertar contas. Fez-se um primeiro silêncio, até as outras desatarem a gracejar sobre o improvável que foi ser a Helena a resolver o problema. Ela, conformada ao tom de gozo que sempre lhe dirigiam, não reagiu, sentindo-se satisfeita com a ideia de se estender na cama, junto à janela virada para as figueiras e o mar. Desejava aquele regresso. Queria sentir o bálsamo algarvio, depois da viagem cansativa e da torrente de palavras que as amigas jorravam sem tento desde as primeiras horas da madrugada, quando o autocarro expresso saiu dos Clérigos, no Porto. Haviam decidido não ir de carro para estarem mais livres. A Helena estava especialmente contente por voltar ao Algarve, depois de alguns anos, ainda que o de este ano não fosse o seu Algarve. Passara férias em criança, nos verões de setenta e quatro a setenta e nove, em Tavira e em Lagos. Recordava as longas e demoradas viagens de carro, umas vezes pelo litoral, outras pelo interior, e as primeiras impressões sobre as diferentes características de cada paisagem rural e urbana ao longo percurso. Desce cedo, pode reparar quão diverso é Portugal, apesar da pequenez. O que mais a impressionava, as longas rectas do Alentejo, as planícies douradas a perder de vista e as casas alentejanas e algarvias caiadas de branco, tão descomplicadas e diferentes do que estava habituada no Norte.

       À mesa do Assador Típico, sem perder muito tempo no assunto da despedida de solteira, os amigos debruçaram-se sobre o que a protagonista disse sobre o período da ditadura e mais tarde, sobre o primeiro casamento. Se os outros se contiveram, o Luís não deixou passar em claro o fingimento e gracejou do caricato de ser a ditadorazita do liceu a usar agora o chavão da falta de liberdade de expressão no tempo em que, crianças pequenas, ainda não se conheciam, e também da sempre determinada e focada mulher, se revelar ingénua donzela caída na armadilha do casamento. Entusiasmado, como de resto estavam os quatro amigos com o pretexto de má-língua, sugeriu que marcassem outro jantar daí a quinze dias, de forma a fazerem o balanço das próximas prestações da Ana Paula.

Eddie Calvert, Loneliness

por Isabel Paulos, em 10.11.19

Escolha do Vicente.

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       E agora? Pensou a Margarida, recostada na cama e computador sobre o tabuleiro almofadado apoiado na barriga e nas coxas, depois de dezenas de páginas de apresentação dos personagens, conforme o cânone dos romances, deveria seguir-se a descrição do decurso normal do tempo e espaço, antes do rompante, da entrada da circunstância que vai definir a enredo da história. O Vicente dormia ao seu lado, hoje longe dos pensamentos da narradora, que aproveitou este momento de solidão para terminar a primeira parte do livro, e reintroduzir-se na história.

       Filha do João e da Constança, casal peculiar. Agora reformados, ele trabalhara a vida inteira numa gráfica em Vila Nova de Gaia, ela como administrativa numa empresa de vinhos. Quando nasceu, em 1966, já os pais tinham tomado a mais lúcida decisão das suas vidas. Viver da forma mais despojada possível. De forma peculiar, antecipando o movimento hippie, resolveram não viver como os pais, irmãos, primos e amigos. Daí resultou no afastamento das origens e numa vida nova criada à medida dessa vontade de liberdade. Independência que não se fez à custa dos lugares comuns das calças à boca-de-sino ou das saias cumpridas, ou em punhos erguidos, da coreografia de slogans ideológicos, sequer de verborreias vertidas na imprensa em busca de lugar de destaque na democracia que se avizinhava. A escolha, apesar de militante, não representava a adesão a qualquer ideologia. Decorria tão só do tempo vivido e da forma crédula e sã de encarar os problemas da sociedade e do país. Nascidos no Porto e Lisboa, na década de quarenta, oriundos de famílias chiques em decadência económica, chocava-os a forma desligada da realidade como muitos dos familiares e amigos viviam. Desfasados da realidade. Ouviam vezes sem conta loas à sua condição. Não se tratava de apregoar valores de forma vã, como muitas vezes se critica de maneira fácil e errada, mas tão só de fazer a defesa da linhagem e da forma de estar. O João crescera rodeado de fanfarronice. O carácter, o comportamento ou as habilidades da sua gente eram motivo de gabarolice, e o elogio fácil surgia entre pares sem qualquer critério de verdade. Ouvia-os dizer barbaridades, estupefacto. O primo era o melhor tenista português, o tio fora o melhor piloto de automóveis a correr nos anos dourados, a irmã a melhor dançarina nos bailes do clube, o amigo o melhor aluno de sempre da faculdade de economia, e o tio-avô o mais brilhante professor de medicina de Coimbra. Ainda que o primo nunca tivesse defrontado os tenistas realmente premiados, o tio estivesse habituado a ficar desclassificado ou, na melhor das hipóteses, nos últimos lugares na corrida da Boavista, a irmã dançasse benzinho, mas incomparavelmente pior do que as irmãs mil-flores, graciosas e elegantes, o amigo tivesse sido tão bom aluno quanto as outras centenas de alunos que ao longo dos anos acabaram o curso com média de catorze, e o tio-avô tivesse sido daquele tipo de homem impreparado e entediante, que faz justiça à graça antiga de haver homens tão imprestáveis que só podem dar em lentes. Rapaz de sensibilidade, o João reparou, desde cedo, que o sentido de pertença e orgulho entre os seus decorria não raras vezes da mais pura das mentiras ou de tiques e maneirismos próprios de qualquer tribo, no caso, da tribo de pessoas civilizadas. 

       A Constança veio viver para o Porto, poucos meses antes de conhecer o João. Fugira da tragédia da vida em Lisboa. A mãe, Benedita, apesar de ter sido poupada, no tempo de meninice, àquele tipo de tontearias, por ter nascido numa família mais sóbria, partilhava com o marido da filha a redoma onde crescera, o escudo defensor de ínfima parte dos portugueses. Representavam pequena parte da população portuguesa. Classe altamente privilegiada, constituída não apenas por gente riquíssima, como também por famílias bem instaladas há várias gerações, e mesmo por quem já perdera os haveres, mas não o pedigree. A avó da Margarida nada e crescida no Porto, era rapariga resolvida e bem-disposta, a mais nova de uma prole de seis irmãos e a até aos dezassete anos a sua vida fez-se entre um bom colégio do Porto e as variadas casas de gente elegante ou bem instalada da cidade e do país. Entre festas e outros encontros a avó fora criada num mundo de muitas dezenas de familiares e amigos. Vida riquíssima em relações. Havia gente, havia gente com histórias e alguns com História. Nessas reuniões usava-se conversar. Por isso, sabia da vida de centenas de pessoas. Conhecia as alegrias e tristezas, as glórias e as calamidades. As verdades e as mentiras. Prodígio da sua época, a Benedita era uma extraordinária aluna, e aos dezoito anos, num tempo em que poucas senhoras concluíam o liceu, e raras ingressavam na universidade, foi para lisboa fazer a licenciatura. Ficou instalada em casa de primos e em 1940 completou o curso de Filologia Clássica. Lá conheceu Estevão Almeida, o futuro marido. Um daqueles homens bonitos, sedutores e muito faladores, que ao primeiro contacto deixam óptima impressão, à segunda a dúvida se serão de facto atraentes e à terceira a constatação de se tratar de pavões sem bondade nem interesse. Ainda assim conseguiu enfeitiçar a curiosa Benedita que, nos primeiros anos, escrevia poemas a descrever a beleza e alegria do marido. Ainda levava da meninice a candura e a determinação, mas se até então fora poupada à bazófia, depressa se desiludiu. O marido, escrevente no Ministério dos Negócio Estrangeiros, afirmava-se lisboeta de gema, sendo a gema um mesclado de genes minhotos, beirões e algarvios, que o próprio se esfalfava a dissimular. Não fosse saber-se da avó de saia redonda e arcadas minhotas, vinda para Lisboa trabalhar como criada de dentro na casa dos comerciantes de fazendas de lã, tecidas na Covilhã, na fábrica de lanifícios na qual o avô era intermediário e transportador. E feitor das descargas da mercadoria para venda do ano seguinte. Numa delas, o avô encantou-se pela bela Alzira, sempre pronta a dar achegas na loja e, esperta como um alho, aproveitar para saber novidades. E, uma vez casados, fixaram residência em Lisboa, fazendo pequena fortuna que transformou os dois rapazes em apetecíveis partidos de meninas bem-educadas e de nomes sonantes, fugidas à pobreza do Algarve. Um deles o avô da Constança, que não herdara dos pais o jeito para o negócio, e por isso mesmo, desfez a fortuna ainda o filho Estevão era um jovenzito perdido ou encontrado à noite, a deambular pelas ruas de Lisboa na companhia do irmão um pouco mais velho, em busca de tascas onde se pudesse beber e ouvir fado, ou ocasionalmente nas bancadas das touradas. E, não raras vezes, a envolver-se em rixas, fazendo valer a bravura, que dizia ter herdado do general, cujo nome ninguém ouvira falar, mas a mãe dissera ser o mais nobre avô algarvio. Anos mais tarde, a Benedita, quando o marido invocava tão nobre senhor, delirando da nobreza e ilustração dos antepassados, perguntava onde podia ir depositar a coroa de flores ao general desconhecido. Enfurecia-o, como era de esperar e lá seguia ele para mais uma noitada de farra e boémia, muito fado e revista. Sem falsos pudores, a Benedita dizia que fosse ter com as coristas e fadistas e que por lá ficasse. Vai lá para as tuas piegas brejeiras, dizia de forma seca e sem admitir réplica. O que mais queria, é que a deixasse em paz. A falta de erudição e mundo do marido foi o maior desgosto da sua vida e viria a determinar o triste fim. Ao fim de dez anos de casamento a avó da Margarida já se limitava a passar os dias sentada na senhorinha a ler e sonhar em regressar ao Porto, volvidos quinze anos, já pouco lia e só suportava o marido à terceira vodka, e passados vinte e quatro anos deu o tiro na cabeça pegando na arma que ele guardava na papeleira do tetravô Afonso, o pai do general desconhecido.

       O episódio aconteceu aos dezanove anos na Constança; dois meses depois decidiu sair de Lisboa e vir viver para o Porto, cidade de toda a família da mãe. Cortou relações com o pai e irmãos, dois rapazes que insistiam em tratar a Benedita como louca. Nem pai, nem irmãos quiseram alguma vez saber os motivos dos destemperos da mãe, a razão de ter começado a beber já depois dos trinta, de ter principiado a desligar-se do quotidiano. Cortou relações, não ficando a assistir à vulgaridade e falsa civilidade do pai e irmãos, que continuaram a adorar a vida nocturna lisboeta, a que começaram a chamar vida cultural. Casas de fado a perder a má fama e revistas com pretensões a teatro. Mas ao contrário do tempo da juventude do Estevão, agora passavam por dificuldades, o que não os impedia de continuar a levar vida de aparente fausto e de se apresentarem trajando fatos de corte primoroso nos vários eventos festivos. Circunstância a que não era alheio o facto da nova senhora da casa, segunda mulher do Estevão, ser uma das responsáveis pelo guarda-roupa do Parque Mayer.

       A casa que a Constança deixou para trás, no fatídico ano de 1965, restava pouco da adorada mãe. Restavam os livros da salinha, em rigor, a única coisa daquela casa que trazia saudade. E a dor diluiu-a com a Margarida, nas muitas conversas entre mãe e filha, que aprendeu a gostar dessa avó que não conheceu, mas de quem parceria ter herdado alguns traços de carácter.

       Pouco mais de um ano após a chegada ao Porto, a mãe da Margarida começou a trabalhar numa cave de vinho do Porto, tendo de enfrentar no trabalho aquilo que conseguira evitar na sua nova casa, unindo-se a um homem inteligente. Outra vez, a presunção de gente de grande preguiça mental. No escritório dava andamento administrativo às encomendas do mundo inteiro. Nada que não lhe agradasse não fossem as agressões permanentes e presunção da pispirreta e do pequeno sócio da empresa, seu marido. Casal absolutamente anedótico; ela aprendera a usar discurso articulado em conversas de circunstância, cujo teor se resumia ao arrazoado de baboseiras a rondar invariavelmente empregadas, compras, vestidos e dinheiro. Instalada desde criança no dinheiro, que começou a jorrar quando o pai teve sucesso na fábrica de solas que ergueu, fez-se sujeita sem educação e sempre interessada no mundo chique, que mimetizava à exaustão. O marido primava por exibir ar de superioridade que achava decorrer da árvore genealógica, não percebendo que ser civilizado mais do que adquirido de nascimento é exercício para a vida. Ter nascido no seio de família há várias gerações bem instalada, ao invés de criar este pedantismo, deveria originar obrigação moral de respeito pelos outros. Nunca o percebeu. Assim se entende que a Margarida não tivesse grande simpatia pelo filho desde casal, da mesma idade e colega de Liceu, Tomás. Percebe-se a irritação permanente com a presunção de superioridade. A incapacidade de ver a sabedoria no próximo quando se olha do cimo de suposto degrau social; a dificuldade em reconhecer conhecimento, talento ou simplesmente bondade em quem não faz parte dos pedestais enviesados pela ideia de superioridade económica, social ou intelectual. Chateavam-na as estátuas encrustadas de vaidade.

       Ainda estava a aprender a ganhar a serenidade dos progenitores. Senhores de ideias e sentimentos bem arrumados, entendiam-se de forma tão ordenada como as estações. A Constança desanuviava, degustando a ironia na cumplicidade do marido. Escrevia na vontade de provocar o traço firme e gentil do João, que apreciava os concisos registos da mulher, reunindo-os no pequeno e bem iluminado escritório do anexo, onde produzia as ilustrações e punha a leitura em dia. No fundo do jardim vivo e alegre, que mantinham tão bem tratado quanto as Comezinhas, havia ânimo. Cuidavam do seu jardim.

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        Incluindo a grande mata contígua à nacional 1, feita não só de pinheiros resinentos de agulhas verdes e de pinhas mais decorativas do que frutíferas, e eucaliptos esguios e prateados, de perfume fresco a vida aberta, misturado em dias de chuva no cheiro abafado e original da terra húmida, não só de pinheiros e de eucaliptos da praxe, sentia a Margarida enquanto escrevia, mas também de carvalhos de folha caduca pequena e alongada e bolotas convertidas, noutros tempos e paragens, em farinha do pão, antes de serem alimento dos porcos, de plátanos de folha verde clara, de castanheiros de folha em feição de lança dentada e ouriços em mãos atrevidas e picadas, do salgueiro que só podia ser chorão, tal era a beleza requebrada das saias, e de todo o restante arvoredo, disfarce da casa e das tílias de folha dupla face, verde escuro do direito, verde prata no verso e, no Verão, o cheiro suave e adocicado do miúdo molho de flores amarelas, de rododendros que coloriam de rosa forte a primavera, combinadas com as primas em forma de arbusto, as azáleas; era feita também da falta de magnólias, cuja beleza frágil enchia outros invernos de delicadezas, já ali os meses frios eram agrestes e vingavam as japoneiras de folha perene luzidia, troncos gravados de amores impossíveis, camélias de diversos recortes e cores; feita também da nespereira perdida, e no Verão, da nêspera, o acre do nico de polpa consentida pelos caroços, colhida esticando o braço curto de criança, de ameixoeiras de pequenas delícias vermelhas por fora amarelas por dentro, mais amargas do que as dos pomares, as amarelas e as verdes caranguejeiras, causadoras de setembrites, e voltando a subir ao terreiro, do diospireiro coroa-de-rei frente à porta de sala de jantar, a advertir ali estar a tentação para os de fora, porque os de dentro se limitam a saber apreciar a beleza; tal como se fazia do despontar de malmequeres, de junquilhos amarelos, e de uma flor do tamanho destes, mas roxa e, ao contrário deles, de pétala aberta, cujo nome a Margarida não sabia, mas haveria de aprender antes de escrever o segundo livro; até lá teria tempo de descobrir o nome dos pequenos insectos laranja salpicados de preto, oblongos, que parecendo viver em permanente cópula, povoavam o terreiro, dando ar de praga aos passantes e, também, das pequenas flores de pétalas cor-de-rosa e olho amarelo, despontadas nos dias frios, em arbustos nus a ladear as rampas de acesso à casa; e descendo de novo aos pomares, a nogueira com nozes cobertas da membrana preta e viscosa que enegrecia os dedos, os figos pingo-de-mel da figueira solitária, e o leite deles saído ainda verdes, o cura cravos, e as macieiras das deliciosas bravo Esmolfe, acastanhadas à primeira trinca, e vá de passá-las pela corrente da de água da mina, das apetecíveis róseas porta da loja, apodrecidas na viagem ao hemisfério sul, das pé-de-boi, das mais vulgares amarelas sarapintadas de preto, dos sumarentos pipo de Basto, das ásperas reinetas, e outras já esquecidas, mesmo pelo Luís, a quem vinha a imagem do chão pejado delas, as que acabariam assadas no forno a lenha ou no doce de maçãs podres; e, no primeiro patamar, as pereiras, cujos frutos finavam cozidos, apaziguando barrigas envelhecidas, em contraste com as joviais laranjeiras e tangerineira, o essencial limoeiro e a limeira, razão da perícia e do método do garfo e faca para afastar as membranas brancas e, assim, desfrutar da mescla doce e ácida da lima; feita destas de outras árvores e de muitas videiras velhas, baixas estendidas em vinhas ou encarrapitadas em ramadas, com uvas para o lagar ou de mesa; e este todo, um todo imenso, transformava a quinta num idílio, onde cresceu o Luís, também aluno do curso de humanidades do liceu de Espinho.

       Filho de casal insólito. A mãe de espírito livre e rebelde, a quem o cinto apertado da religião em vez de estreitar, transformou numa alegre contradição. Esclarecida, revelava laço desempoeirado à fé, podendo debater com teólogos matérias de espírito, dogmas e escrituras, enquanto punha a Santíssima Trindade a interceder por si e pelos seus. Faceta confundida, por muitos, como trapaça ou batota. Injustamente, porque é patente ser preciso acreditar para saber brincar com Deus. Achar haver humanos perfeitos e eleitos é contranatura e, por isso, contra a própria ideia de Deus. Maria passou parte importante da meninice a estudar fora de Portugal, em Espanha e na Suíça, e sendo viajada quando poucos viajavam, via no Paraíso, pequena quinta herdada, o porto de abrigo. Mais tarde, transformado no albergue da prole de cinco pedrinhas, como chamava aos filhos, e do pedra mor, o marido Miguel Pedra, era o ponto de encontro da imensa turba de parentes, afins e amigos. Lugar repleto de histórias de vida de uma família grande, entrecruzadas de forma peculiar, criando um mundo à parte daquele em que todos vivemos. Visto de fora, aparentava bastar-se a si mesmo, de tão rico, mas por dentro, reconhecia-se estar a sabedoria no tino em saltar fora e conhecer o que diferente e melhor tem o mundo de todos nós. E, assim, progressivamente, ampliar aquele micro-universo. O pai do Luís, na juventude, marialva da idade moderna, numa época que já não se montava a cavalo, vivia entre as paixões dos carros e das mulheres bonitas. Na verdade, esmerava-se mais nos carros do que nas mulheres, até conhecer a Maria, que o fez perceber melhor hierarquias e prioridades na vida. Os carros continuaram presentes e os ímpetos da juventude transmutaram-se no gosto pelo cinema e pela música. Épicos, de preferência. Antes de casarem, o Miguel Pedra, combateu em condições particularmente difíceis, numa batalha muito desigual em Goa, em 1961. Amargo de boca para o resto da vida de um patriota, que se viu entregue à morte, ao lado dos camaradas, para regressar ao país sem honra nem glória. Voltar ao país decadente, metrópole do império em vias de colapsar.

       Aos olhos do Luís o pai era um inventor, daqueles sobre quem os próprios e os entes queridos acham que virá o dia de se tornarem célebres pelas suas criações. Cresceu a ver o pai desenhar geringonças perfeitas. Em dias, meses e às vezes anos de cálculos de sobrolho franzido. Na verdade, o ganha-pão do pai resultava de ser técnico de hidráulica e topografia, mas os múltiplos talentos para as tecnologias levavam-no a passar tempos infindos sobre os próprios projectos, com os quais encontrava soluções práticas para problemas surgidos quotidianamente. Os de maior envergadura nunca chegariam a ver a luz do dia, mas tiveram o condão de enriquecer a educação tecnológica dos filhos, área estúpida e sucessivamente subvalorizada, no país onde facilmente vingam logros intelectuais das letras. Ao salário do pai, juntava-se o amealhado pela Maria nas explicações de francês e traduções de castelhano. Assim, sustentavam a família e a casa. E também a quinta, porque apesar dos vinte hectares, era francamente mal gerida, tendo rendimento escasso para pagar aos jornaleiros, que a trabalhavam.  

       Em criança, o Luís deu os primeiros passos num interesse, mantido pela vida fora. Muitos anos depois, já adulto e na posse dos telescópios de alta-resolução, que compraria ao juntar os primeiros salários como professor de geografia, ainda se recordava do ar tépido das noites de Setembro, no terreiro do Paraíso, sentado nas escadas de pedra da casa, junto dos irmãos e primos, a maravilhar-se com o céu estrelado, a mãe a mostrar a estrela polar, a ursa maior, a cassiopeia. E o caminho de Santiago ou via láctea. O lado visível do nosso bairro, como dizia o Vicente. O Luís caía sempre na tentação de baixar o telescópio até à superfície, sorrir e perguntar entre dentes: onde está o meu cavalinho? Lembrando-se da silhueta dos pinheiros da mata da quinta, em forma de cavalo.

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       O desalinho da Lara contribuía para ter amigos do mais variado género e acabava por ser ela o elo entre muitos no Liceu, como da Ana Paula e das irmãs Soares, e também dos colegas Alexandre e o Sérgio. Dupla inseparável de cábulas gozões. O que mais o definia a parelha era a piada rápida e permanente com antecedentes previsíveis. O pai do Alexandre era empregado de mesa n’ O Nosso Café e a mãe fazia trabalhos e arranjos de costura em casa. Da infância o rapaz retinha sobretudo a boa disposição do pai e as graçolas típicas do modo de vida, que passavam invariavelmente por retorquir ao pedido: queria um café, se faz favor; com o inefável: queria? Então, já não quer? De porte largo e farto bigode, tirava proveito de todas as oportunidades para escarnecer das bizarrias e maneirismos da clientela. Tanto revelava desdém pela frugalidade e contenção de gastos de alguns habitués, desde as senhoras, que à conta do chá sem torrada, passavam a tarde no crochet, à sofreguidão e excessos dos destemperados, que gostavam de exibir as suas posses e histórias forjadas. Os alvos preferidos eram, contudo, os das pestanas queimadas, de tanta explicação e estudo. Só escapavam os amigalhaços, que incentivavam e elogiavam a graça. 

       Crescera também a ouvir o característico som do pedal da máquina de costura, primeiro mecânico, a trazer à memória a lenda alentejana da costureirinha, mais tarde eléctrico, onde a mãe passava o dia em volta de panos, linhas, agulhas e moldes das revistas Burda. Quando criança pequena gostava de estar no quarto dos pais, onde, além da cama de casal, na qual assentava a boneca de porcelana de olhos atentos, só havia espaço para o guarda-fatos arrebicado, com grande espelho de prova das clientes, e a cadeira em frente ao móvel da moderna Singer, onde se sentava a dar ao pedal. Brincadeira atalhada sempre pelo sonoro: pára com isso, que me desenfias a canela. Atirado da cozinha pela Clotilde. E fora do carreto passou toda a infância e adolescência. Seguindo e aperfeiçoando as pisadas do pai, pregava ou tentava pregar partidas a todos quanto se punham a jeito. A arte ocupava horas de treino em frente ao espelho das donas dos vestidos, porque a perfeição das piadas não era coisa de amadores. O grande amigo, Sérgio, gostava de morder pela calada e, sendo mais esperto, usava o Alexandre a bel-prazer para todas as maldades e vingançazitas. Bastava uma pequena sugestão do Sérgio quanto a suposta falha ou tique de alguém, para o Alexandre levantar voo, e com grande lábia, encorajada pelo veloz sussurrar de bojardas do amigo, desfazer em mil pedaços o respeito granjeado até então pelo visado. E foram muitos os caídos nas redes das graçolas da dupla tida por mais divertida do liceu, onde só havia mais alguém de assinalável sentido de humor, o Luís. Servia-se de um tipo de graça bem mais sóbrio. O problema da competição e rivalidade nunca não se punha. O Luís sabia que o seu espaço de aceitação era reduzido, face ao universo pleno de glória da dupla das anedotas escatológicas ou picantes. Os reis do peido e das mamalhudas, como se referia à dupla, quando falava com o irmão Manuel sobre as peripécias do liceu. O irmão replicava sempre que tal reinado não lhe desagradava inteiramente, rindo ambos, até passarem a outros assuntos, cientes que a brejeirice tem o condão de alegrar quando usada restritamente e enojar quando exibida à exaustão.

       E se não fosse a brejeirice da dupla citadina de Espinho, era certo e sabido que as piadolas versariam sobre a sonsice das beatas e seminaristas, os sotaques e a burrice do matarruano minhoto ou do choninha visiense, o folclore, os afazeres agrícolas e termos da terra ou sobre a burrice dos negros ou das gentes do Alentejo, onde nenhum dos dois estivera, mas imaginavam ser espécie de campo grande, repleto de montes ou medas de palha, ponteado de chaparros, cujo nome tinham aprendido na televisão, mas associavam a um híbrido de pinheiro e eucalipto, as únicas árvores com as quais estavam familiarizados, tal foi a propagação destas espécies no norte e centro do país, em detrimento das espécies nativas. Estavam certos não haver pinhais nessa terra onde tudo andava devagar. Pinhais, como chamavam a todas as matas.

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       Tirando as caracterizações das personagens continuas sem enredo, mas pelo menos já vi a Ana Paula e o Tomás no curso de humanísticas, a Helena também, suponho, e o Carlos Alberto e o Oliveira contigo em ciências. Tudo a seu tempo, respondeu a Margarida, na verdade preocupada com a falta de habilidade para criar enredo.  Confirmou ao cúmplice a existência de outros alunos do Liceu na narrativa, o Luís, a Lara, os inseparáveis Alexandre e Sérgio e, ao elenco de personagens, juntavam-se as irmãs Soares, alunas do curso profissional, na área da contabilidade e gestão.

       Duas raparigas distintas pela figura afilada da primogénita e miúda e frágil da mais nova, mas ambas de cabelo ondulado castanho, a Marta de olhos azuis, a Sofia de olhos chocolate. Pareciam inspirar-se nas artistas pop do momento para se vestirem. Ambas muito soltas e de andar descontraído. Filhas de casal videirinho e vivaço de retornados de Angola, de famílias oriundas de São João da Madeira, nasceram com diferença de um ano em Luanda, passando lá a primeira infância. A mãe era operadora de telefone, no tempo em que todas as ligações eram feitas através de terminais nos quais as várias telefonistas estabeleciam as ligações com fios e tomadas e, segundo os mais atentos, ouviam conversas. Devia ser verdade atento a exponencial volume de conhecimento demonstrado pela Elvira da vida pública e privada luandense. O pai e o tio donos de pequena loja de roupas confeccionadas por africanas, com tecidos de típicos motivos étnicos maioritariamente fabricados na metrópole, e exportados para as colónias. Mas também, em menor escala, tecidos em África. Viviam com conforto. As pequenas cresceram livres, passando os dias dos primeiros anos a saraquitar pela loja e no jardim de casa. Antes do agravar do conflito armado era usual vê-las brincar na rua, no alto dos quatro e cinco anos, vigiadas apenas por crianças pouco mais velhas, sob a protecção da Mamã Muxima. Ao fim de semana, iam até à Ilha ou, esporadicamente, a família e amigos faziam passeios conjuntos até ao Mussulo ou à Barra do Quanza. No período em que a capital angolana usufruía de rede de autocarros à semelhança das grandes cidades da metrópole, lá chamados de machimbombos e se podia viajar entre cidades, apesar da guerra, por estradas bem alcatroadas. Ou viajar de comboios, por caminhos-de-ferro como o que unia Luanda a Malange, passando por N’Dalatando. Mundo largo e livre o delas, virado do avesso em 1974 e 1975. O agudizar do conflito armado entre as forças portuguesas e as independentistas, apoiadas pelas duas superpotências internacionais, nesses anos turbulentos, culminou na decisão forçada de saída, com perda de tudo quando possuíam. A mãe emigrara no início dos anos cinquenta para Angola na companhia dos pais. Da metrópole tinha apenas imagem ténue de tenra infância e de duas vindas de quatro meses em visita, nos anos sessenta, para conhecer a família. E na última das quais conhecera o Adriano, seu futuro marido. Fora ela a contar-lhe os encantos e largueza de África. A sua terra era Luanda, e não São João da Madeira. Mas a vida é como é, em 1975, além de ser obrigada a sair da única terra que tinha como sua, ainda suportaria insultos por, na alegada qualidade de fascista-retornada, ter tentado refazer a vida na terra da família, candidatando-se ao posto de funcionária dos correios. Ficou no lugar um ano, sustentando a família, enquanto o marido tentava refazer-se do abalo psicológico. No ano seguinte convenceu o marido a mudarem-se para uma terra sem ligações de parentesco nem tantas invejas. Enfim, mais arejada. Fez duas candidaturas e conseguiu transferência para a estação de correios de Espinho. O marido abriria uma pequena confecção, e com a usual dedicação colocada nos negócios, viu-a crescer e a transformar-se em lucrativo negócio. As irmãs, chegadas a Espinho com oito e sete anos, estavam pela segunda vez a mudar de terra e de escola. Não parecia fazer grande mossa, face à facilidade como se integraram e fizeram amigos. Mas havia pormenores a causar tremenda confusão. A pronúncia rude dos colegas e amigos e a constante desconfiança como conversavam e brincavam. Faltava a doçura cantada do português falado em Angola e o desapego dos andarilhos. Não se tratava de desconfiarem delas, mas de desconfiarem de tudo e todos a toda a hora. África parecia ter dado a estas raparigas dose de confiança nos outros, que parecia ser bem escasso nesta terra estranha.

      Assente a poeira e assim que puderam respirar de alívio quanto às aflições financeiras, a família tentou reestabelecer os laços e refazer o estilo de vida em África. Os passeios por Portugal aos fins-de-semana e as férias de campismo tornaram-se parte das suas vidas. A escolha de férias fora um acaso no segundo ano em Portugal e passou a ser imposição das miúdas, agora já na adolescência, e vontades próprias, invariavelmente, a quererem estar com os amigos. Ora, vários colegas passavam as férias nos parques de campismo junto das famílias. Assim, entre os antigos amigos de Luanda, um pouco espalhados pelo país, e os feitos em Espinho, as relações da família foram alargando e criando raízes.

      Entre os assíduos do campismo estava a Lara, rapariga bonita, alta e magra, de feições largas quase grosseiras, cabelo sedoso e olhos verdes. E que, apesar de ter uma passada um tanto pesada, movia o corpo com graça. Nasceu em Trás-os-Montes, quando o pai Ângelo, aos vinte e dois anos, já desertara e, por causa da guerra colonial, emigrara para França, onde esteve oito anos. Ao regressar fez-se confundir com exiliado, como se a razão da deserção tivesse algum fundo político. Desertou porque legitimamente tinha medo de morrer. Não se cansava de dizer à namorada: tenho medo de morrer na terra dos pretos. Terra vista por gente sem mundo, como terra de selvagens. A única ideia de África retida era de pavor, depois de um parente regressado de cumprir o serviço militar em Angola gabar os feitos atrozes dos portugueses em vingança dos massacres infligidos sobre os colonos brancos em 1961. E emigrou por não ter perspectiva de sobrevivência financeira na aldeia onde nascera e vivera, apesar de ter aprendido a arte de serralharia numa pequena oficina do tio. Havia medo legítimo e pobreza efectiva, mas não havia subjacente motivação política nem discordância da política nacional. Marcelo Caetano, como antes Salazar, eram figuras a gerar indiferença ou até simpatia no seio da família. Para o grosso da população portuguesa doía a pobreza em que se vivia e a obrigatoriedade de combater no ultramar, e não tanto a falta de liberdade de expressão. À época, se tivessem questionado o Ângelo sobre a sugestão da palavra liberdade, falaria de tudo quando fosse diferente da vida dos pais, numa palavra, França. Mas não experimentava sentimento de revolta contra o sistema político do país, a não ser a sensação intemporal de descontentamento por não conseguir aceder à riqueza vista em poucos conterrâneos. E, naturalmente, o problema de ter de cumprir o serviço militar, desde que ultrapassado individualmente, não levantaria qualquer outra questão. Achava até louvável Portugal ser um Império. O não querer combater, não era questão de convicção, não era objecção de consciência, sucedida não se achar talhado para ajudar em tão patriótico desígnio do regime, sem questionar que outros o fizessem. Tudo mudaria quando, desde França, tomou consciência da revolução ocorrida em Portugal. E de natural alheado da política nacional, passou a fervoroso antifascista. E Portugal a terra de esperança, regressando não há terra natal, uma aldeia próxima de Mirandela, mas a Espinho, por ter conhecido em França um casal de lá originário, apaixonado e promotor da praia e do mar. Na memória, para todo sempre, França foi o expoente máximo de país desenvolvido. Nunca conheceu outro país, senão a vizinha Espanha, por a atravessar a caminho de França, durante aqueles oito anos de trabalho duro enquanto ajudante de armador de ferro, e onde a mãe da Lara se juntara, para passar o dia a trabalhar numa engomadoria de hotel. Até aos seis anos a pequena Lara manteve-se em Portugal com os avós maternos, tendo vivido no regaço dos pais, em Bordéus, apenas entre 1973 e 1975, até decidirem vir viver para Espinho.

      Anos mais tarde, já adolescente no liceu, a Lara manifestaria enorme necessidade de se afirmar pela diferença e exibi-la. Essa irreverência notava-se, desde logo, na forma de vestir. Trajava roupa arrojada, misturas da sua cabeça, inspirada nalgumas correntes alternativas. Achava piada aos punks e aos góticos, mas não aderia nem se fixava em nenhum, criando um look estranho e genuinamente seu. Quando a maioria dos colegas ouvia Xutos & Pontapés e Depeche Mode ou Madonna, ela vidrava com as músicas dos The Doors e ao mesmo tempo conseguia curtir sons do Marilyn Manson e de Edith Piaf. Se a maioria dos colegas ia ao Clube de Vídeo alugar os Salteadores da Arca Perdida e as Guerras das Estrelas, ou as pestíferas Academias de Polícia e os Rockys, ela tentava engrenar em filmes intragáveis de alguns realizadores portugueses ou no cinema francófono.  E se muitos se viciavam no banal tabaco, ela não descansava enquanto não ia mais longe no critério do alternativo.  Quando a oportunidade surgiu e pela mão do colega de turma e amigo Sérgio se deparou pela primeira vez com a barrinha cor-de-chocolate de haxixe, de imediato ajudou a desfazer pequena porção e a misturá-la no tabaco de enrolar, para partilharem o recém-concebido charro de culto da existência juvenil desta eterna miúda alucinada. Os efeitos de duas ou três passas no rolinho proporcionavam alterações de comportamento pouco distintas do normal cigarro, com agravante de poderem provocar, pelo uso continuado, transtornos a nível neurológico e cardiovascular, mas à Lara tais pormenores passavam ao lado. Ter a experiência ou aparência de estar fora de si, e sobretudo poder dizer aos outros ter gozado tal experiência, representava um marco na sua autonomia e independência. Dizia ser o seu grito de liberdade, e associava sempre o momento ao Grito do Ipiranga, porque nesse mesmo dia, na sala de aula de história, retivera apenas que o príncipe regente do Brasil, gritara “Independência ou morte” e assim se tornara em D. Pedro I, Imperador do Brasil. Esqueceu-se de aprender ter sido a ousadia da liberdade, não a do Brasil mas a nossa, a custar-lhe o coração, por si mandado entregar ao Porto. Literalmente.

       Mais tarde, enquanto adulta, confundiria abertura de espírito e deslumbre, fazendo questão de mostrar o quão mente aberta se achava. Useira e vezeira em acusar os outros de serem fechados e tacanhos, tal como a grande amiga Ana Paula, nunca reconheceu as virtudes da reserva e da discrição e, como ela, não distinguia abertura de espírito de exibicionismo nem reserva de tacanhez. Gostava de experimentar, de descobrir e não usava filtro no que trazia até ao seu mundo. Experimentar e expor as descobertas pareciam ser o lema da sua vida. Esponja, absorvia sem critério tudo quanto tivesse aparência apelativa ou marginal. Isso, naturalmente, enriquecia-a como pessoa, mas fazia soar os sinos da leviandade e da inconsistência. A paixão bateu-lhe à porta ao som de slot machines do casino de Espinho, onde o futuro marido era funcionário. Embevecida pelas centenas de histórias contadas pelo Rui, cobertas de vivacidade, sobre fortunas jogadas, ricaços faustosos, turistas generosos e enganos e desenganos matrimoniais, embalou num namoro transformado em longo casamento.

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       Os dois rapazes conheceram-se ainda em criança nos escuteiros de Espinho e, apesar de terem estudado em turmas diferentes até ao nono ano, a escolha de ciências fê-los reaproximar.  Prosseguiu a Margarida, exausta de coser texto, e agora sem o Vicente, que fora a Madrid para uma série de reuniões de trabalho. Pena não estivesse ali a ouvir a escolha do nome desta personagem. Consultou o relógio, faltava uma hora para chegar, vindo de metro do aeroporto. Facilidade a pesar na preferência pela Póvoa de Varzim para viver. Havia convénio nestas ocasiões. Uma vez chegado iriam à praia desempenar as pernas. Mas ainda faltava uma hora e tencionava tirar proveito do tempo. O Oliveira, nome de árvore milenar, era figura que conquistara a sua simpatia, escrevia Margarida, mas não querida pela Ana Paula, pelos ciúmes provocados nas muitas horas de animada cavaqueira com o Carlos Alberto.

      Filho de lavradores da Bessada, zona rural de Espinho, e não Vessada, segundo a boa ortografia, frisou a narradora face à imediata sensação de reparo do Vicente. Gente educada e trabalhadora, com outros dois filhos, o rapaz mais velho e a rapariga mais nova, com quem bulharia de forma sã a vida inteira. Cresceram a respeitar a natureza e os outros. Os avós do Oliveira eram proprietários de campos contíguos e a largueza dos oito mil metros quadrados unidos pelo casamento dos pais, fê-los sentir crescer em segurança. A união das duas regadas, a de lá, dos Oliveiras, e a de cá, dos Fernandes, deu lugar ao campo de mais de cinco mil metros quadrados, o que se mais a norte do país, é considerado um belo campo, em Espinho ainda orgulha os pequenos lavradores. Juntando a hortinha, o pequeno pomar e a leira das batatas, quase um hectare de terra e engenho. Na infância do Oliveira, o campo grande da regada, orgulho da família, era inteiramente utilizado entre Abril e Setembro para o cultivo do milho, mas chegados os incentivos e subsídios da C.E.E., na década de oitenta, passou a ser ocupado também pelo tomate e logo se seguiram, até aos primeiros anos da década de noventa, os quivis. Já na União Europeia, parte de campo foi aproveitada para mirtilos e framboesas. Variavam o que plantavam, mas não as rotinas. E porque a segurança nunca nasce do acaso, especialmente, quando se vive da terra, o Joaquim Oliveira e a Emília Fernandes todos os dias se levantavam ao nascer do dia, e antes mesmo do pequeno-almoço, principiavam por dar de comer à dúzia de galinhas e garnisés e à restante bicharada, seguindo-se dia inteiro de trabalho a amanhar a terra e demais lides do campo. A semana era quebrada à segunda-feira na ida feira, onde compravam ora um ancinho ora uma sachola e, para onde escoavam os hortícolas e muito do cultivado. Os filhos davam mão aqui outra acolá, mas nunca sofreram grande pressão para ajudar na lavoura, e diga-se em abono da verdade, também não sofreram grande pressão para estudar. Tudo decorria com naturalidade. Chegados à adolescência, o mais velho revelou grande paixão pela condução de motas e entre este devaneio e o das raparigas, logo no nono ano, após a saída das seis negativas em pauta do primeiro trimestre, demonstrou vontade de desistir do liceu. Um professor mais atento insistiu que o André acabasse o nono ano, e acabou por acontecer, arranjando depois emprego na Cooperativa Agrícola, na qual passou rapidamente de faz-tudo a funcionário de grande préstimo para os associados. A irmã Graça, mais nova, foi sempre dedicada na escola, mantendo os cadernos e a atenção impecáveis. Miúda alegre, a avidez de vida e conhecimento reflectiam no brilho dos olhos. A cada dia na escola, dentro ou fora da sala de aula, fazia descobertas e em casa desfrutava relatando tudo quando aprendia, para grande gozo dos pais e irmãos, que fingiam não achar graça à pirralha. Nos altos e baixos próprios da idade, revelar-se-ia aluna razoável no liceu, boa aluna na faculdade de direito e excelente advogada.

       Cresceram confortáveis num mundo simples e descomplexado entre os serões de policiais de Nova Iorque e as tardes dos westerns de Domingo. Mundo de bons e maus distintos entre si, hoje ridiculizado por todos os iluminados e convencidos de ter atingido o patamar sofisticado do relativismo. O certo é que a simplicidade e acerto dos acordes de piano de intróito ao mundo da esquadra nova-iorquina e aos diálogos na banheira que albergava o recto capitão Furillo e a contundente advogada, Joyce Davenport, e toda a envolvência de camaradagem e boa índole terão sido decisivos na escolha do curso pela Graça, tal como para muitos de miúdos dos anos oitenta. A Balada de Hill Street fez mais pela promoção dos cursos de direito entre os jovens estudantes do que anos de prestígio associado à profissão. Imersos na espuma da água da banheira, entre a dentada no morango e o gole de champanhe havia sempre oportunidade de confrontar as contingências do exercício de autoridade e os seus excessos. Cocktail atractivo para jovens e menos jovens idealistas, nunca esquecidos do be careful out there, do sargento Phil Esterhau.

       Hoje, o nosso Oliveira, chamado José, é homem alto, teso, de cabelo crispado, olhar penetrante e traços rijos, só suavizados pelo sorriso que o desmancha, devolvendo o arzito de coca-bichinhos de miúdo. Foi construindo vida cheia de insignificância em insignificância. Logo aos sete anos, desafiado por coleguinha mais velho da quarta-classe, com quem trocava cromos da caderneta de futebol da Panini, entrou no agrupamento de escuteiros de Espinho, começando as caminhadas, raides e aventuras. Aos dez anos já os tiques, as regras e a obrigatoriedade das boas acções o maçavam. Ainda assim aproveitou para ganhar interesse pelo que mais tarde desenvolveria, como a música e o radioamadorismo. E reforçou o respeito pela preservação do ambiente, de natureza diferente do respeito pela terra já incutido pelos pais.

       Sentiu calor nas costas, voltou-se e o Vicente sorrindo de soslaio gabou: de repente melhorou bastante. Não sei porquê, mas gosto desse Oliveira, declarou, compondo a parka azul-escura presa no braço. Cansado da viagem e de esperar que a Margarida largasse o computador e os múltiplos arranjos, acabou por voltar a vesti-la e dar sinal de ir indo. Ela preocupada: estás bem? Há novidades chatas? Não, está tudo na mesma, disse ele. Mas conversamos na praia, despacha-te, eu vou indo, rematou. Ela na corda bamba hesitava, via-o desaparecer e depois voltava-se para o monitor e nova revisão. Os hífens tramam-me. E os com, comos, ques, uns e umas. Apre. Já desço, vou só pentear-me e buscar a carteira, murmurou, pensando ao mesmo tempo no vento forte e como era indiferente a tentativa de alinho. Dentro de minutos estariam na praia, descalços a enfrentar o vento frio enquanto andavam na areia. O mar a lamber pés e tornozelos, a grande alegria da maturidade conquistada pela Margarida, apesar da resistência usual do Vicente. Ao contrário de agora, contente por estar ali, de pés relaxados e frescos enquanto desabafava sobre o tédio sentido nas deslocações corriqueiras para reuniões de trabalho.

       Voltados a casa, ela arrumou o saco das compras feitas no caminho de regresso, e estirou-se no sofá, apoiando o portátil para continuar a contar a vida do estimado Oliveira. No ciclo preparatório tivera a sorte de ter educação musical com acesso aos instrumentos e professora com real formação na área. Coisa que, à época, não era dado adquirido, tamanhas as confusões e iniquidades nas colocações dos professores. Na sala 5, do pavilhão central, junto à cantina, tocou pela primeira vez num órgão, no caso, um pequenino honer, e ajudado pela professora, aprendeu os primeiros acordes da inefável Loja do Mestre André. A mesma professora emprestou o primeiro disco de Mozart, que o Oliveira ouviu vezes sem conta antes de devolver em impecável estado de conservação no final do ano. No ano seguinte, no alto dos doze anos, já devaneava ao som do concerto nº 1 para piano de Tchaikovsky. Daí ao fagote e a integrar a banda filarmónica de Espinho, nos primórdios a Banda do Soqueiro, foi ápice só explicável pela alegria posta pelo Oliveira nos interesses. Sem se empenhar em dar na vista, cativava naturalmente os demais pelo talento. Gostava e tirava partido de tudo em que se envolvia, e tanto gozava nos dias festivos de actuação da filarmónica, quanto nos trabalhosos ensaios no salão do Bombeiros, nos quais era sistematicamente chamado à atenção por se adiantar no ritmo. A par da filarmónica, juntou-se a si e ao teclado farfisa em segunda-mão, ao guitarrista e ao baterista-vocalista, formando a banda rock que animava os saraus do Liceu e festas particulares de amigos e conhecidos em Espinho. Faziam covers dos temas mais badalados dos anos oitenta e tentavam mesmo originais, feitos de letras rudimentares do guitarrista e acordes do próprio José, chegando a mandar uma cassete para o Júlio Isidro, principal promotor de jovens talentos e nos programas de quem todos os aspirantes a músicos eram corridos aos costumeiros tens muito talento, não deixes de acreditar em ti e persegue os teus sonhos. À época, os concorrentes eram valorizados pelo chamado carisma e pelo empenho em causas. Muito longe da moda do início do século XXI de enxovalhar os pouco ou nada talentosos e enaltecer os que pelo look, telegenia e desinibição escapam ao crivo da censura humorística. O Oliveira, apesar de não ter sequer resposta do mundo profissional da música, manteve o ânimo de sempre.

       Poucos anos antes, por altura do Natal, sugeriu discretamente aos padrinhos o presente mais desejado, ainda reminiscência dos escuteiros, uns walkie-talkies. E consegui-os para gáudio dos três irmãos, que passaram dias e dias seguidos a falarem à distância, transpondo situações dos filmes e da vida corrente para as brincadeiras. Algum tempo volvido, já o André e a Graça se tinham esquecido dos ditos rádios, ainda andava o José à volta de revistas de electrónica, a tentar perceber melhor como poderia dominar as conversas do além das quais se foi dando conta pelo uso do brinquedo. E daí até arranjar as peças que permitissem criar um rádio comunicador, foi um pulo. O mais difícil de arranjar, por custar dinheiro, foi próprio aparelho emissor-receptor de rádio, conseguido em segunda mão na loja de electrodomésticos. Depois a fonte de alimentação aproveitada do carregador de baterias das motas do irmão e ainda a antena feita de fio de cobre, estendida entre o limoeiro, encostado à parede do quarto, e o poste de telefone. Por fim, restos de cabo de televisão para ligarem o aparelho à antena. Feita a engenhoca, toca a comunicar com mundo, assim ampliado exponencialmente, ao ponto de o Oliveira ter levado para o quarto uma corticite de planisfério colado, na qual pregava os pioneses coloridos nos lugares onde chegava.

       Certo dia, a mãe entrou no quarto e deu com ele a perguntar a outro radioamador como estavam as condições de propagação, seguindo a resposta que a espantou o resto da vida. O filho ia conseguir falar para a terra dos cangurus, do outro lado do mundo. Hoje chegas à Austrália, ouviu roufenho do outro lado dos aparelhos que o filho ainda não dominava. Mesmo o atirado José estranhou a resposta e retorquiu: recebido, mas o meu rádio não tem potência, como chego tão longe? Com a voz quebrada, o velho e experiente amigo foi respondendo: roger, escuto, então, é a mesma coisa que descobriste nas tuas conversas do além nos walkie-talkies, da mesma forma a luz entra em tua casa, e propaga, reflectindo-se nas paredes e objectos do interior, assim são as ondas de rádio, vão-se reflectindo nas camadas superiores da atmosfera. Chegas aos ziguezagues à Austrália. Recebido, aos saltinhos, tipo canguru, concluiu o Oliveira a rir, enquanto via a mãe sair do quarto a abanar a cabeça e a dizer em voz alta: o que eles inventam. O rapaz não sonhava ainda o quão fácil seria no futuro ligar-se ao mundo em rede. Nem a compra do primeiro computador, o zxspectrum, com dinheiro dos biscates, nas reparações dos electrodomésticos das redondezas, teve essa noção. Não concebia inteiramente o impacto da introdução dos satélites artificiais para propagação nas comunicações. Aprendera no radioamadorismo a vantagem de pôr as antenas em locais altos, mas não tinha noção da revolução iniciada antes mesmo de ter nascido, com a colocação em órbita dos primeiros satélites russos e americanos. Desta forma, começou a ser possível estabelecer ligações entre pessoas e a partilha de informação. Na mesma altura, percebeu também as virtudes da conversão do sinal analógico em sinal digital e vice-versa. No pequeno computador percebeu a existência da convenção dos 8 bits, que permitem a contagem entre 0 e 255, a premissa da evolução da informática. Como explicava à irmã, que via todas estas engenhocas com estranheza, imagina-te a dizer esta frase: bom dia. Se for pela via de som, vais ter uma onda de som, ou seja, uma variação da pressão do ar que te rodeia durante dois segundos, e permite sejas ouvida pelo outro; se for via telefone, vais converter essa variação do ar numa variação da intensidade eléctrica, com a duração do som, i. é, os mesmos dois segundos, mas transmitido a longa distância o ruído da linha durante o percurso torna difícil perceberem-te. Ora, agora, se a conversa for digital, essa onda de som ou variação é cortada em pequenas fatias representadas por um número entre 0 e 255, e ao enviares um desses números, consegues obter no destino, a descodificação, sinal muito fiel ao sinal original. Ou seja, rapariga, o teu bom dia chega muito perfeito. Sim, respondia a irmã, tentando vislumbrar como se cortava o som às fatias. Outra coisa, lembras-te dos stencils da tua professora de português? Pois, ao fim de vinte cópias aquilo está uma porcaria, mas imagina, agora, isso em texto de computador e imagina um aparelho onde se põe papel e repete tantas vezes quantas as quiseres o texto gravado. A Graça arregalou os olhos, ela estava habituada a fazer trabalhos escolares na velha máquina de escrever da madrinha e, distraída, farta de desbaratar papel por causa dos erros. Por esta altura, nos oitenta, o José e a irmã começaram a entender a rápida mudança do mundo. O computador não era para os Oliveiras mero entretém de joguinhos. Nele o José deu os primeiros passos na programação, auxiliar sempre presente ao longo do percurso profissional e a Graça estreou-se a apresentar trabalhos impressos em estreito papel térmico, saídos da pequena impressora zxprinter; coisa nunca vista no Liceu de Espinho até então.

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       Já a Ana Paula sempre tivera a posse da corda que imprime força no badalo da vida, sem nunca prescindir da coragem para a segurar. O primeiro amor, Carlos Alberto, era filho da terra. Os pais nascidos em Espinho, viviam de pequena mercearia, cujas prateleiras albergavam pouco mais de farinha e fermento, arroz, feijão e grão, açúcar, enlatados, e biscoitos de limão. As preocupações centravam-se na mercearia e nos dois filhos, a quem pretendiam ver singrar na vida, e desde logo, na escola. O irmão mais velho, Rui Jorge, cedo começou a ajudar os pais no negócio e a querer modernizá-lo. Não mostrou muita vontade em continuar a estudar, aumentando a pressão sobre o mais novo que haveria, à força da vontade dos pais, ser engenheiro. Habituou-se a estudar e preparar-se bem para testes e exames. Sabia haver um abalo em casa a cada nota baixa, por isso, de forma que veio a moldar o carácter, acostumou-se por temor ao conflito, a cumprir e a ser disciplinado. Seria de questionar a razão do irmão mais velho não ter percorrido o mesmo caminho, mas a resposta está, como parece estar sempre, na natureza de cada um e nas circunstâncias que a moldam. Resumia-se ao feitio mais confiante do Rui Jorge e à natural complacência perante a forma leve e descomplicada de ser. Por ser extrovertido os pais achavam seria bem-sucedido e, por isso, gozava de maior liberdade. Ao contrário, o Carlos Alberto era pouco expansivo, gostava de passar pelos pingos da chuva, salvo numa circunstância, a jogar o que fosse, mas sobretudo, a jogar futebol, desporto no qual era francamente bom na posição de extremo-esquerdo. As rápidas arrancadas e domínio de bola eram reconhecidos por todo o liceu, e o seu maior motivo de orgulho. Mais do que as boas notas; essas nunca foram razão de popularidade. Os feitos no futebol tinham o condão de o transformar no menino querido das raparigas, a quem, como não podia deixar de ser, sempre recorriam em vésperas de testes. 

       O corpo bem esculpido do Carlos Alberto, o ar precocemente másculo dado pelo peito, braços e pernas suavemente musculados, as camisas bem engomadas e o olhar dengoso atraíram a Ana Paula, que a pretexto de muito estudo em conjunto, se foi aproximando e conquistando. Entraram no início do segundo trimestre, no ano de 1982, casal de namorados, e ao fim de poucos meses, tudo neles se assemelhava a um casamento. Um casamento miniatura. Ela parecia ter nascido para o papel de companheira dedicada e zelosa. Palpitava sobre o vestuário do namorado, indicando sempre peças do último grito da moda. Cuidava das suas gripes com esmero. No intervalo iam ao bar comer o bolo e beber o sumo e olhavam enojados os colegas a saborear pão com fiambre ou queijo, cujo paladar odiavam. Sobretudo estranhavam o sabor de queijo e reclamavam do cheiro, apesar de se tratar da mais vulgar barra de flamengo. E o almoço na cantina era momento ímpar de revelação da sintonia de modos do casal. Desdenhavam de quase todas as refeições, pondo em causa a quantidade de alimentos e qualidade da confecção, apesar do esmero e arte da belíssima cozinheira da escola secundária. Pouco habituados à variedade de pratos e temperos e de paladar desconfiado, eram dos que mais criticavam a comida na escola. Entendiam-se bem, e nem os reparos dela quanto aos modos à mesa do Carlos Alberto o demoviam do assombro sentido por ela; aos olhos dele, a verdadeira princesa que o ensinaria a comportar-se como um senhor, apesar de ela não ter noção do modo de estar à mesa entre gente civilizada, a que se referiam como gente da alta. Faziam questão de deixar sempre resto de comida no prato; achavam de bom-tom.

       A cumplicidade fazia-se também da admiração mútua. O Carlos Alberto babava só de observar a exuberante namorada. E ela gabava a sua beleza e destreza no campo de futebol diante de todos, inchando-o discretamente. A namorada possuía sobretudo a arte muito própria de algumas mulheres, a da duplicidade. Conhecia bem o carácter reservado dele e a aversão aos excessos de intimidade diante dos outros, fossem colegas, amigos ou familiares. A sede de protagonismo, predispunha-a a conversas intermináveis com amigas, nas quais narrava à exaustão pormenores da vida íntima e privada do casal. Na presença dele mantinha-se imperturbável, como se houvesse cumplicidade de reserva de intimidade, tão cara ao Carlos Alberto e à maioria dos homens e mulheres providos de dois dedos de testa. Mas isso eram pormenores que passavam ao lado da Ana Paula. Achava a dissimulação vital à relação e assim se manteve durante os três anos do namoro. E assim se manteve ao longo dos dois casamentos. Sempre esteve sintonizada à apregoada emancipação feminina das revistas cor-de-rosa, que ainda aos dias de hoje, continuam a aconselhar as mulheres a partilharem segredos com as amigas e a dissimularem face aos companheiros. Muito estranho, pensava a Margarida. Se a humanidade resulta do encontro entre homem e mulher, é desejável que, esse sim, seja aberto, livre e franco. Aí estaria a emancipação, presumia a narradora, sempre espantada com a busca da abertura de espírito fora da relação. A ignorância do Carlos Alberto quanto às animadas conversas da namorada permitia que corresse tudo bem no casal. Também ele sofria de peculiaridade que escapava à namorada. Face a comentários ordinários ou acções de mau gosto comuns entre alguns rapazes, em especial dos engraçadinhos do liceu, o Alexandre e o Sérgio, nunca foi capaz de se demarcar afirmativamente. Não as tinha, mas presenciando tais atitudes nos amigos, nunca as reprovava, limitando-se a dar risadinhas por medo de rejeição pelo grupo e sobretudo por medo de ser apontado de totó, a ofensa comum aos adolescentes tímidos. À volta da mesa de bilhar, onde mais uma vez demonstrava ser exímio jogador, muitas vezes pediu a Deus abrisse buraco no chão para não ter de ser confrontado com insinuações de paneleirice, tal era a falta de jeito para referir-se às raparigas de uma forma menos delicada. Mais tarde, percebeu que tanta fanfa de alguns amigos, não passava disso mesmo. Nas palavras do Oliveira, de quem se tornou grande amigo, muita parra e pouca uva.

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       Sabes que horas são? O Vicente encostado na ombreira da porta. Sei, devem ser horas de almoçar. Não espera, de jantar, digo. Mas não tenho vontade de parar, hesitou a Margarida, sentindo o apetitoso cheiro a francesinhas à moda antiga. Estavam a tostar na prensa metálica de levar ao fogão. Diferentes das sanduiches encharcadas em molho picante, bem conhecidas, estas primavam por ser finas, torradas e temperadas com mostarda, que abria o sabor da carne fria e do queijo. Levantou-se da cadeira, indo espremer as laranjas, que acompanhariam as tostas antes do remate do café, deixando o lugar vago de modo ao Vicente ler no monitor os últimos desenvolvimentos. Chegaram à conclusão não ser conveniente adiantar muito sobre a protagonista e deixar na prateleira as outras personagens. Até agora só trouxera à luz do dia o Tomás, feito breve referência ao Luís e dado uns toques sobre as amigas da Ana Paula. O que faria sentido agora? Talvez apresentar a amiga de sempre, companheira desde a escola primária, na qual começaram a construir a ideia da nação, de frente para o previsível quadro de ardósia, sob o qual se elevava a imagem de Cristo na cruz, amparado do lado esquerdo pela fotografia do, então, presidente da república, o Almirante Américo Tomaz e do lado direito por dois grandes mapas, um dos distritos e províncias de Portugal continental e insular, outro das províncias ultramarinas, integrantes do Império.

       A amiga Helena, agora madura, baixinha de feições harmoniosas, é uma leve alourada de olhos castanhos e anda de modo delicado, quase não se ouvindo. A timidez revela-se, ainda hoje, entre outros modos, na notória dificuldade em saber onde pôr as mãos em situações de constrangimento. Veste roupas discretas, normalmente, saia ou calças e blusa, coberta de casaquinho. Filha de uma mulher conservadora e intransigente, cedo aprendeu a reprimir manifestações de sentimentos e pensamentos. Os primeiros laços estreitos foram de temor, ou pelo menos de amor tumultuoso. A mãe, Maria da Conceição, dona de casa, era casada com um professor do Liceu, cujo contributo afirmativo para a formação da Helena e do irmão mais velho, quase se resumia ao momento discreto da entrega, no início de cada mês, de metade do salário para a gestão dos gastos. As poucas ocasiões de partilha com os filhos eram as do jantar, onde o silêncio frio era interrompido pela televisão e não raras vezes por observações hostis do pai destinados aos filhos e à mulher. Em tom de comparação a gente que nada lhes dizia, classificava-os de incapazes e fisicamente destituídos de beleza e elegância. Não havia o hábito conversar com a mulher ou os filhos em molde de pertença, sequer de igual para igual. Só intervinha nas tomadas de decisão familiar consideradas de relevante importância, e as poucas decisões tomadas estavam normalmente presas a ideias feitas e ao que é dado. Aos olhos dos filhos, o desconhecido a jantar e dormir lá em casa, que aos Domingos se dignava a tomar duas refeições na companhia da família e acompanhá-la à missa no Citroën. Naturalmente, tinha o chamado arranjinho, mas não se julgue que a indisponibilidade para mulher e filhos resultava da existência desta segunda vida. Em casa da outra mulher a distância era a mesma, salvo no estritamente necessário a preservar o ego. Depois da excitação inicial, mantinha a relação por precisar de afirmar a virilidade e compensar a incapacidade de fortalecer relacionamentos próximos. Buscava a veneração, motivo comum da multiplicação de relações afectivas. De forma fácil e sedutora, a segunda companheira, mulher de baixa auto-estima, concebeu enredo de complacência, encontrando explicação para todos os dissabores familiares e sociais do Jorge. E, com desculpas confeccionadas em linguagem científico-barata, hoje facilmente identificáveis em sound bites das secções de lifestyle, antes coleccionados nas revistas femininas, nas quais tudo passa por culpar o universo das expectativas goradas de narcisistas, o par justificava o resultado da falta de noção dos limites, da falta de freio encetada logo em criança. Fora educado no mimo e na subserviência de pais orgulhosos das gracinhas e modos do menino, nunca tendo aprendido a respeitar os outros. E assim foi vida fora porque a complacência perante o ditadorzito português parece não ter fim, havendo sempre uma cavalgadura, seja primo, irmão, tia, amigo ou quejando, a justificá-lo com a enormidade: só vai procurar fora, o que não tem dentro de casa; ou outra tonteria do mesmo calibre. Nunca ocorrendo a inaptidão de muitos para lidar com as mulheres e a incapacidade de escolher. Nem a regra de gente vertical:  escolhido o caminho, outros são abdicados, e se não correu bem, encete-se novo caminho, assumindo as consequências, em vez de deixar outros enredados à índole mal resolvida. Mas foram precisos anos, até crescer o número de mulheres capazes de mostrarem não precisar de enconados para viver de forma plena.

       O conservadorismo intransigente de Maria da Conceição, nunca transposto por falta de relação afectiva afortunada ou por falta de real vontade de solidão, capaz da desejada plenitude, deixou o marido fazer dela sombra do que sonhava e achava merecer. E porque a vida e, sobretudo, as relações não decorrem de merecimentos, cedo deixou de irradiar alegria. Resignada a solidão forçada, voltou a atenção para os filhos, a quem mostrou precocemente as amarguras da vida e espartilhou, por serem o último reduto de influência.

       Assim se percebe a Helena ter crescido sem confiança em si mesma, parecendo destinada a ser dirigida pelos outros. Ao permitir, desde cedo, invasões no espaço de autonomia, convertia-se em badalo de sino nas mãos dos outros, soando conforme a intensidade do puxão que o faz chocar no bronze. Sonhadora, refugiava-se de forma consciente no mundo irreal, justo e suave. Mas não chegava e, por vezes, acreditava conseguir transpô-lo para a realidade. Lograva consegui-lo, porque aos olhos dos outros transparecia tranquilidade inabalável e, se não impunha respeito, provocava o curioso efeito de causar inveja nas inteligências menos trabalhadas. Dona, por natureza, de curiosidade imensa, vontade de quebrar amaras, corria riscos. Bravura apreciada pela Margarida, de quem se fez amiga. A reserva conservada por ambas era de tal ordem, que apesar de confidentes, nunca souberam dos detalhes dos enredos e enamoramentos da outra, até ao momento de estabilizarem na relação para a vida. E se a narradora agora conta o sucedido à Helena, é porque enviou email em Agosto de 2016 a pedir contributo para o livro que escrevia, contando um episódio de vida. E ela contou.

        O pot-pourri de educação e natureza convertera a Helena em presa fácil de si mesma e de gente menos recomendável, e em matéria de amores teria rumo perigoso. Já esquecidos os namoricos da adolescência, por altura do segundo ano de faculdade, conheceu o Vasco e a forma de se envolver, deixou a nu a sua fragilidade emocional. Desacostumada ao respeito dos outros por si, e apesar de reticente quanto ao carácter do Vasco, envolveu-se sem reservas. Romântica, estava apaixonada pelo rapaz, poucos anos mais velho. Jovem intelectual blasé, e duas ambições na vida, mostrar ser um homem superior e ascender ao poder. Entre as provas do brilhantismo, cabia dispor das mulheres e treinar os dotes de sedução. Tratava-se de praticar. E calhou fazê-lo com mulheres. Tivesse nascido vinte anos depois e usaria homens nos exercícios. Aos olhos do embusteiro a mulher coabitava o planeta para persuadir o homem a transgredir as regras da proibição e, por isso, estava sujeita a todas as desconfianças e julgamentos. Do ardil com que encarava essa coisa do amor só colhia um verdadeiro ganho, o deixar impresso nos quadros pintados aparente ciência do amor. Parecia saber tudo, ensinava tudo; a troco de falsa ideia de ternura, procurava quem pudesse convencer e converter. Anos mais tarde, a Helena pode rir a bom rir, quando viu o próprio definir-se como opositor ao moralismo vigente. O moralista mor, se o ridículo matasse, pensava. Nunca conhecera, e vivia num mundo cheio deles, impostor tão moralista. Vá, pensava, nem tudo foi mau. Aprendera a ternura mascarada. Se algum dia se voltassem a cruzar, pediria que pintasse o quadro da ternura sem corpo nem carácter e saísse da frente desse espelho para ver o resultado.

       Um sexto de século depois, tropeçou na exposição da obra desse homem. Já madura, pôde ver como a ambição exigira a criação de cuidada e imaculada imagem de homem civilizado, bon vivant e erudito. Os quadros, os pinceis, as telas, as conversas, os candeeiros, as janelas, os cinzeiros, ela, a Cristina, a Sofia, a Mónica, a Ana, a Luísa, os guardanapos, as cadeiras, e todo o rol, serviram melhor ou pior o propósito. Destinava as posições e dispunha de cada qual, quieto, obediente, pronto a estimular o génio criador do grande artista. E tudo quanto servisse para animar as cumplicidades dos múltiplos amigos que partilhavam os seus feitos. Tudo compunha a obra, conduzida a partir do seu móbil íntimo, o ressentimento de não ser quem achava merecer ser e a, consequente, necessidade de vingança de todos quantos nasceram como desejava ter nascido. Só ali percebeu ter sido o cálculo de custos e benefícios a determinar o início e o fim do Outono de engodo. Nesse mercado de valores a Helena representava zero. Vá, zero não, mas pouco além disso. Tinha o interesse de conhecer casa grande de gente faladora; achega para compor a paisagem da tela Matracas, uma das obras do Vasco. Surripiada essa paisagem, e outras que servissem de inspiração, o interesse era praticamente nulo. Se réstia houvesse, justificara apenas a tela ressabiada alusiva ao Natal nos subúrbios e tentativas posteriores de aproximação. Dissimuladas, como tudo nele. À distância de um sexto de século, a Helena imaginava apenas as flores do ramo recusado sem saber de onde provinha. Seriam as das amendoeiras do Algarve, do louro-da-montanha da Pensilvânia ou a orquídea do Rio de Janeiro?

       Há época sofreu; era inevitável. Sob o pretexto da acusação de traição, o Vasco mandou-a bugiar. Mexera-se, a atrevida. Acusava ele. Em rigor, ela nem sequer sabia do que ele estava a falar. Os intelectuais têm a particularidade de ver a realidade por canudo muito estreito. Desses dias, lembrava-se da solidão do Natal. E, sobretudo, da incompreensão do Vasco pelo significado do momento. Percebeu mais tarde a razão por trás do pretexto. E era bem mais prosaica. O grande artista estava aterrorizado pela fealdade de Espinho e pela possibilidade daquela rapariga vulgar beliscar o mundo resplandecente de erudição, beleza e arte. Território reservado à genialidade de alguns amigos eleitos. E ao cabo de tantos anos, passava os olhos pelas telas com ironia: o amor e a morte, as grandes questões da humanidade retratadas, convertiam-se em remendos de medo e de cobardia. Teria sido mais fácil para ambos se o Vasco tivesse sido franco. E se a Helena não fosse tonta e tivesse percebido mais cedo. Estariam avisados de que o Natal não se compadece de mentiras. Depois veio o novo ano e, para júbilo do Vasco, a quem nada dá mais gosto do que ter razão, ela seguiu a vida, vagueando junto do homem vaticinado. Sem nunca ter tirado a trave dos próprios olhos, as campainhas dos altos padrões de moralidade do artista soaram. Dois meses depois consumava-se o vaticínio, a Helena assumia-se como errante, os sinos desafinariam. O cisco entraria olhos dentro de quem não devia e o resto é composição do tempo.

       De tudo isto tomou consciência já madura. Naquele momento, longe da lucidez trazida pela idade, encontrou-se simplesmente em completo desânimo, sem sentido nem dignidade. Ganhou apenas em perceber cedo não ser aconselhável viver em função dos caprichos de um homem, nem dos julgamentos dos outros. E confirmou outra regra de carácter. Valemos pela solidão do que somos e não pelo conseguido à sombra ou à custa dos outros. Foi numa dessas manhãs de nevoeiro, de frio polvilhado pela morrinha, que comentários inocentes e desastrados de quem desconhecia a relação, a fizeram dar-se conta da sua credulidade. Fizera figura de urso. Queria fugir, desaparecer, mas aguentou firme, sem lágrimas, desabafos ou queixas. Sabia conseguir aguentar a mágoa sem quebrar, mas e o orgulho? Estilhaçado. Haveria de juntar as peças todas e seguir em frente, em silêncio. Como seguiu. Os primeiros dias do embate custaram a passar. Passou-os a desenhar. No fim-de-semana, veio a Espinho na esperança de desanuviar junto da conversa fiada das amigas de liceu. Combinou cafezito com a Marta e a Lara, e apareceu a Ana Paula. Enquanto esta contava episódios de cabine dos voos Porto-Lisboa, e as outras acompanhavam curiosas, Helena ia rabiscando. No fim, já as outras se tinham despedido e saído, esticou a folha e mostrou à amiga os garatujas que chamou significado da vida, redemoinho de setas dirigidas em diversas direcções, e tendência ascendente. A Ana Paula lançou olhar enfadado e criticou: não gosto muito da ligação do verde com o azul. E voltou a atenção e comentário para o que realmente a movia: já viste a saia daquela maljeitosa? Não é essa. Aquela lá fora. Parece um balão, olha. Se tivesse vergonha na cara, não mostrava aquela celulite. Ela nem é gorda, mas é mesmo malfeita, não é? Helena, estás a ouvir? Não, não estava, havia abalado, estava ao balcão a pagar o café e a perguntar-se porque ainda aturava aquilo. Quando atravessou a porta d’ O Nosso Café, para seguir em direcção da casa dos pais, pensava: grande cabra. Pelo caminho, como sempre, foi condescendendo e quando chegou a casa, já levava a certeza estar tudo no devido lugar.

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       Quando o Vicente acordou, chamou-o para dar parte do incremento na história, e em resposta, entre bocejos, teve a seguinte observação: okay, tens um primeiro retrato verossímil mas, tal como contas histórias ao jantar, esqueces-te do enredo e atiras de chofre a personagem; tens de as deixar crescer por si próprias e parar de as descrever. Além disso, despachaste quatro tios da personagem em meia-dúzia de linhas, continuo sem saber como a Ana Paula conheceu o Pedro, e mais, mantenho que sem enredo não constróis um romance. A narradora ripostou que estava destinado que ela iria conhecer um primo do Tomás, chamado Pedro, e se encantaria pelos olhos claros e cabelo loiro. Interrompida pelo franzir de sobrolho do Vicente, logo desperto para a criação atabalhoada do elo. Conhecia a Margarida e sabia da dificuldade em encurtar razões e deixar a nu enredo rectilíneo. Todas as histórias tinham atalhos e entalhos e era difícil pegar na ponta e encontrar o fio condutor. Mas ela insistia: vai ser o primeiro casamento e vai durar apenas um ano, porque a Ana Paula não é menina para se sujeitar ao jugo de um homem que não a entende, nem respeita. Pela primeira vez via a namorada a referir-se àquela divisa da modernidade de forma tão afirmativa, senão mesmo elogiosa. Prometia. Sabia levantar voo a cada passo e, a páginas tantas, já não percebia quem mandava. Isso sim, dava verdadeiro gozo ao namorado, que delirava ver a Margarida fora de si. Percebendo que ele topara o deslize na tarefa de desconstruir a Ana Paula, trouxe à baila o retrato físico, que sempre entusiasmava os homens, e o Vicente em particular, apesar de saber que ele contestaria o erro grave de servir retrato físico de supetão.

       A personagem principal é agora, ao tempo das entrevistas televisivas, mulher de meia-idade da nova era, de estatura média e corpo bem feito, de andar decidido, mas pouco gracioso, por ser brusco e ruidoso. E de rosto insosso, apesar de sempre retocado com maquilhagem e ladeado por cabelo bem alinhado, de cor variável da L’Oréal. Tais cuidados não a conseguem converter numa mulher bonita, mas dão ar vistoso e apelativo. Muito coquete, varia bastante de fatiotas caras e dentro dos padrões de moda provando a felicidade e o amor-próprio, regados desde criança pela adoração e dedicação dos pais.

       Casal humilde e pouco instruído de operários na centenária fábrica de conservas Brandão Gomes, noutros tempos fornecedora da casa real. Grande empresa alargada a outras cidades com porto de pesca. A Ana Paula crescera a ouvir histórias, que achava entediantes, do período em que as conserveiras não se limitavam à sardinha e ao atum, mas a muito outro peixe, marisco, caça ou legumes. Como dizia a mãe vezes sem conta: a nossa terra deu nome ao molho. Falava da mistura de azeite, vinagre, mostarda e pickles, a que a fábrica chamou Molho de Espinho. O casal levava quotidiano modesto e certinho e tinha grande objectivo, dar vida melhor à filha. A mãe, Armanda, não saiu de Espinho até aos anos oitenta, senão nas duas ou três excursões a Viana do Castelo e a Fátima. O pai, Casimiro, conheceu apenas Moçambique por lá ter cumprido o serviço militar entre 1964 e 1965. Apanhado logo o início do conflito armado com os independentistas, no norte de Moçambique, encarou o regresso vivo, uma bênção de Deus, não arriscando nunca voltar a por pé que fosse fora Portugal continental. Não gostava de falar desse tempo, não falava de camaradas, de tragédias, de violências, nem de aventuras. O rosto fechava-se sempre que se falava em Moçambique e quem estava junto dele, acabava por perceber. Devia mudar de assunto. Homem de bom trato, apesar de básico, a conversa em casa circunscrevia-se a pequeno leque de temas, o trabalho na fábrica de conservas, as tais referências aos velhos episódios galgados de geração em geração de funcionários, o prosaico desdém pelo espertalhaço do chefe de secção, o carro e os bens do patrão e da sua família, a comida, o futebol, os vizinhos, os conhecidos, a vida transparecida e os atritos com os familiares.

      O centro das atenções, naturalmente, a menina. Mimadíssima desde sempre, além de filha querida era o cavalo de corrida que os progenitores queriam ver vencer. A aposta da sua vida. Nada poderia faltar. Passaram os primeiros anos em cima da criança. O mais ouvido à Armanda eram os cuidados com a menina. Ai, Casimiro, agora não posso dar-te atenção, a menina está a chorar; ai, não vês que a menina tem fome; ai, Aninhas tem cuidado, podes cair; ai, gente malvada que a menina pode ficar triste.

      Sonhavam para a Aninhas a vida das meninas do senhor doutor, a Carminho e a Leonor. Duas raparigas sempre primorosamente vestidas, podiam confirmar, mas a quem estranhavam ver crostas nos joelhos das várias quedas das bicicletas ou das árvores. Ouvia-se, aliás, dizer à empregada da casa que, quando iam à quinta, era usual chorarem tempos infindos sem que os pais, os tios e os avós ligassem peva, tal o tamanho da casa onde passavam os verões, e a frieza daquela gente. Dizia a Olívia à dona Ermelinda, dona da mercearia, que as meninas estavam horas a chorar no terreiro da casa, ou numa das muitas salas, sem que a família desse por tamanha tristeza. Os desgostos infantis passavam pela injusta divisão do tempo na volta da bicicleta entre primos, pelo excesso de mimo dado à mais nova das irmãs, ou pior, a cruel vitória na corrida do primo das pernas compridas ou finalmente, o abandono em casa, pela mana e a prima, idas à loja do Belmiro comprar biscoitos. Maldades insuperáveis, que criaturas de oito ou dez anos não deviam ter de suportar. Família malvada, dizia a dona Ermelinda à boa Armanda, que sentia ainda mais compaixão pelas pobres crianças ricas.

       Aos olhos da Ana Paula e da evidência, apesar de tudo estas raparigas gozavam vida melhor do que a dela, mas sem ter aprendido magoar-se, a perder e a lidar com a frustração, achou vir a ser igual ou melhor, fosse isso o que fosse. E, por força da ambição, saberia vir a vestir como as meninas do senhor doutor, aprenderia a falar fino, empregando todas a palavras das pessoas abastadas e, também ela, viria a ser doutora. Da quinta prescindia; era uma menina da cidade, e essa coisa da terra coisa de gente antiga e tosca.

       Sem estímulos à imaginação e à criatividade a nossa Aninhas, assim lhe chamavam em pequena, foi criança crescida e doía ver como não a entretinha a beleza de desenho animado de paragens longínquas no qual prevalecesse a excentricidade e a camaradagem, por não reconhecer nem o cenário nem a linguagem da lealdade. Não se divertia no espectáculo de circo de saltimbancos, trapezistas, malabaristas, palhaços e leões, que pareciam todos ladrões sujos a viver em barracas. Mal empregue dinheiro dos bilhetes gastado pelos pais. E, vivendo junto à praia, também não gostava de rebolar na areia porque se sujava. Nem gostava de subir às árvores porque podia rasgar os vestidos.

       Mas alinhava nos joguinhos triviais e aí mandava. Armada em senhorita, o sumo das brincadeiras da pequena Aninhas, a jogar o que fosse, passava sempre pela maledicência. Na macaca, achava invariavelmente que a adversária pisava o risco e duravam dias os cochichos e acusações de batotice, e os comentários sobre a burrice ou fealdade ou outras imperfeições ocorridas à nossa miúda caprichosa. Na apanhada a coleguinha do grupo que ela ordenava ficasse na contagem contra a parede era sempre aquela a quem só ela via a professora ajudar mais, e afiançava, filha de casal de ladrões. E, no lencinho, toda a equipa devia blindar a rapariga veloz, uma sebenta fedorenta. Sabia-o porque viviam em casas contíguas e assegurava nunca ter visto roupa interior no estendal de casa. Estas pérolas de mexeriqueira de bairro valiam algum ascendente sobre as coleguinhas, que não faziam contraponto, por medo de contra elas se virar a calúnia e a má-língua fulgurante. E assim foi formando o carácter vazio, os interesses e o seu futuro.

       Na adolescência passou aos jogos de cartas, e por razões incompreensíveis, nunca foi boa jogadora, por não conseguir contar as jogadas. Longe de ser desprovida de esperteza, seria de esperar que percebesse que caso fizesse a contagem das cartas jogadas nas rodadas, saberia a melhor saída para ganhar. Mas nunca o conseguia. Talvez por distracção, talvez por maior atenção aos pormenores irrelevantes da mesa de jogo, talvez por desinteresse. Não se sabe. Na realidade, passava boas horas na conversa, a pretexto do jogo. Curiosidade deste entretém era a bulha da Marta Soares, habitué destes jogos. Logo na primeira vez em que se sentaram para jogar no canto do polivalente do liceu, perguntou, após terem escolhido o jogo: como é que vocês jogam? Com dama valete ou valete dama? E maninha ou sete? Os outros perderam-se em comentários do tipo tanto faz, e a Marta sobrepôs a voz, dizendo: as regras têm de ficar definidas logo no início do jogo para antecipar mal-entendidos. Se cada um de nós jogar com regras diferentes vai dar problema no fim, esclarecia. A Lara chamou-lhe sargenta, desconfiou da seriedade da picuinha. Achava que a chata devia querer disfarçar alguma batota. A Lara vivia no mundo das teorias da conspiração. Mais tarde viria a disfarçar tomando-se por criativa. Nunca lhe ocorreu que até as brincadeiras e os jogos têm regras. Na realidade, estava enredada em desconfianças e manias da perseguição, calculando sempre que os outros agiam com segundas e terceiras intenções.

       Usualmente jogavam à bisca e sueca. Mas quando o colega Luís alinhava no jogo, além destes, tentavam outros como o king e a canasta, passando o sete, por mais bonito seja o número, à normal posição de entremeio entre o seis e o oito, em vez da manilha. E o valete à condição de subalterno da rainha, de onde nunca deveria ter saído. Da mera acumulação de vazas, com ou sem trunfo e truques, da bisca e da sueca, passavam nestes jogos mais sofisticados, como o king, à diversidade de jogadas que incluíam festas de cada jogador, que podia decidir ir para negativos. Ou, na canasta, aberta depois de um dos jogadores baralhar e o outro partir e tirar a marota, e destinava à acumulação de cartas iguais dos dois baralhos, para formar as ditas canastas, às quais se juntavam flores. Quando eram muitos, jogavam ao eleven, no simples intuito de criar sequências ou trincas, e variações entre sete jogadas. Todos estes jogos, os habituais e os introduzidos no liceu pelo Luís, tinham o condão de ajudar os jogadores ganharem traquejo na contagem. O Tomás poucas vezes foi à mesa do jogo, logo tentou introduzir o bridge. Sem sucesso, fosse pela falta de jeito a explicar regras e objectivo do jogo, fosse pela incapacidade de alinhar nos jogos mais vulgares, que insistia em apelidar de parolices. E, claro, pela má vontade demonstrada pelos coleguinhas em aprender o que fosse vindo do presunçoso.

       Se nos jogos de cartas não saía vencedora, como estudante o caso mudava de figura. A Ana Paula era boa aluna, habituara-se a estar concentrada nas aulas e apreendia facilmente vocábulos estranhos ao seu mundo. Rapidamente os integrava no discurso, ainda que nem sempre com sentido de oportunidade. Gostava particularmente das disciplinas na área das línguas e dedicava horas a fio aos compêndios escolares. Na memória, reteve as longas discussões nas aulas de francês e inglês sobre o conflito de gerações; aulas enriquecidas com recurso a rudimentares meios audiovisuais. Por iniciativa da professora, ouvira e animadamente cantara em coro a música Father and son, de Cat Stevens, numa famosa lição de inglês, na qual se discutia a dificuldade de comunicação entre pais e filhos, educadores e estudantes, tendo ela própria testemunhado diante da turma, o quão difícil era viver com pais pouco instruídos e antiquados, fazendo-a sentir-se só e incompreendida. Tema na sequência da qual o grupo de estudo achou por bem apresentar o trabalho final de ano ao som de Another brick in the Wall, dos Pink Floyd.

       Advinha-se serem as aulas de história o calcanhar de Aquiles da Ana Paula. O passado, tudo quando estava carcomido pelo tempo, parecia distante e denso. Faltava a expectativa, as borbulhinhas da novidade e o desenlace da intriga. Tudo era nebuloso e enredado em momentos remotos, sem aparência de ter princípio nem fim. Nunca percebeu o interesse de saber como se vivia nos séculos anteriores, sequer nas décadas anteriores. Nem sabia como se vivia no tempo dos avós. Apesar de os conhecer bem, nunca lhes ouvira contar grandes coisas do passado. Reteve dois factos. Não havia electricidade em casa dos avós, quando mais novos, e os pais compraram a primeira televisão quando ela tinha cinco anos. Conservava vaga ideia desse dia. E quando confrontada com o desconhecimento em matéria de história de Portugal ou universal, atirava a banal gracinha: como havia de saber se não era nascida. Não era graça de estranhar; fartou-se de ouvir dos professores argumentos do mesmo calibre em contextos diferentes. Cresceu no tempo em que cultivar a ignorância parecia corresponder ao programa do ensino e da vida em geral. Estava habituada a ouvir dos professores de matemática não lhes ser exigível soubessem escrever, ou aos de letras não terem obrigação de fazer cálculo ou reduções, ou encontrar áreas. O argumento era o de essas coisas, de escrever ou contar, não serem da sua área de formação. Apesar da agilidade mental, das óptimas notas a matemática e boa prestação na parte lógica dos testes psicotécnicos, que valeu o conselho para escolher ciências, no décimo ano ingressou no curso de humanísticas.

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       Ao princípio da noite de Domingo, dia vinte e oito de Setembro de 2014, a Mónica Carina, vencedora da última edição do reality show de serviço, depois do decisivo contributo de perante as câmaras  ter revelado raramente usar cuecas e, a conselho da ginecologista, só a lavar com água, saía da estação segurando o cheque-prémio,  enquanto a Ana Paula esperava à porta da sala de maquilhagem, a entrada na entrevista da sua vida. Candidatou-se e foi seleccionada para o desafio do novo formato. Durante três meses estará frente às câmaras, diariamente e durante quarenta e cinco minutos, a ser entrevistada e confrontada. Terá de apelar à memória e relatar os factos da sua vida. Os que sejam relevantes para os entrevistadores e os que forem sujeitos a escrutínio dos familiares, amigos, conhecidos e público em geral. A direcção prevê grandes audiências e orgulha-se de ter encontrado solução para a cada vez maior contestação por franja da sociedade quanto ao carácter degradante deste tipo de programas. Para fazer face às constantes censuras, o canal anunciou o enquadramento crítico e pedagógico das próximas séries. As regras do jogo são simples, o entrevistado terá de prestar provas diárias, contando o passado, previamente pesquisado pela equipa de canal. Será comunicado ao entrevistado com vinte e quatro horas de antecedência o ano ou o tema da entrevista do dia seguinte. O prémio final é de cem mil euros, sem recurso a votação do público, mas em função directa das audiências acumuladas dia após dia. Acabando de escrever isto, percebeu ter-se metido em alhada trabalhosa e foi-se deitar.

      Resoluta e consistente, quando acordou na manhã seguinte, foi directa à mesa do computador, pensou uns minutos e apagou do ficheiro word o nome Entrevista, abrindo outro chamado Ana Paula, onde começou a escrevinhar a explicação que não pudera dar ao Vicente sobre a forma como protagonista havia conhecido o Pedro. Ainda não pensara nisso; lançou-se sobre o período do liceu, quando a conheceu, e também do Tomás, primo do Pedro. Alunas do Liceu em Espinho, do décimo ano, a Margarida de ciências, a Ana Paula de humanísticas, conheceram-se nesse ano de oitenta e dois, e apesar de pouca coisa as unir, a antipatia inicial ao Tomás era comum. Faziam parte da viagem de autocarro juntas. A narradora, vinda de zona mais afastada do Liceu, já costumava ir sentada. Tinha a oportunidade de ver a entrada da colega no autocarro, o modo obsequioso do motorista ao picar o bilhete e o ar decidido como se abeirava de um dos lugares da frente, que sempre arranjava e onde se sentava impante durante o curto percurso de duas paragens. Quando chegava a hora de sair, na paragem do Liceu, passava à frente fosse de quem fosse para ser a primeira. Tudo isto via a Margarida que, propositadamente, se deixava recostada no banco lá atrás, até se aproximarem os últimos. Só com a sua saída, o automático ruidoso das portas fechava.

       À mesma hora, estacionava o carro escuro e lustroso, a que a Margarida não distinguia a marca e chamava genericamente carrão. Numa dessas manhãs, a Ana Paula, vendo a colega a sorrir irónica da chegada do Tomás no carro do papá, aproximou-se dela e disse: grandes vidas, não é? A narradora concordou, reforçando o sorriso. Foi o suficiente para a outra descolar em considerações sobre a gente como o menino, com a sorte de se sentar em rovers 600 ou volvos g40. Sim, a Ana Paula sabia as marcas dos carros do pai do colega e de quase todos os automóveis que se distinguiam, sobretudo, as marcas e os modelos mais caros, sonhando ter a sorte de vir a conduzir bólide de igual calibre.

       O afortunado colega, rapaz oriundo de gente bem e quase abastada, seria sempre desdenhado, mas muito pretendido pela Ana Paula e algumas companheiras. Era comum encontrá-la junto das irmãs Soares, suas amigas, a perguntar de modo grosseiro onde parava o moço do sangue azul. Ora o rapaz não parava, estava, e sobretudo não costumava estar no mesmo sítio destas companheiras, que só o eram pela coincidência de estudarem no mesmo liceu. Os comentários e estranheza pelos modos do menino, deixavam antever misto de desdém e cobiça. O próprio ajudava ao fazer gala na diferença, ao desprezar todos quantos revelavam educação diferente. A escumalha, como catalogava mais de noventa por cento dos colegas. A Lara, amiga próxima da Ana Paula, surpreendeu-o numa dessas declarações na fila do bar do liceu quando, distraído do que o rodeava, repetia em surdina à companheira: essa gentinha põe-me doente. Na fila do bar, no intervalo grande dessa manhã de Dezembro, sussurrando à amiga que tentou catrapiscar durante dois anos sem sucesso, dizia que o liceu era povoado pela escumalha, essa gentinha que masca pastilha elástica de boca aberta, dá dois beijos e usa camisola interior. Assim mesmo. Sem rodeios. Sofria de todos os tiques de menino bem pouco inteligente. Filho do Gonçalo Levada-Seca, nascido numa família conservadora e tradicional de cinco irmãos, com dois anos de Coimbra a tentar concluir as cinco cadeiras do primeiro, até ser chamado ao serviço militar em Moçambique em 1962, de onde regressou em 1965, para poucos meses depois abandonar o curso de direito e casar com a Maria Amélia, já à espera do bebé Tomás. E sobrinho da tia Teresa, licenciada em românicas, e professora no liceu, do tio João, economista, a quem cedo calhou lugar de chefia na Salvador Caetano, conseguindo furtar-se ao serviço militar, por artes nunca explicadas, mas que passariam pelas boas relações dos pais no ministério da guerra. E dos tios mais novos Rodrigo e Bernardo, chamados à Guiné a Timor, quando deambulavam nas escolas comercial e industrial, ingressando, no retorno, no Banco Totta & Açores e no Porto de Leixões.

       O sobrinho desta geração estava convencido ter o mundo aos seus pés e o mundo rendia-se bastante contrariado. Dono de pouco caco, não conseguia ganhar o respeito dos professores. Era considerado, desde cedo, salvo pelos muito distraídos ou pouco capazes, mau aluno. Mas a vida tem curiosidades que escapam à lógica e se o estudo afincado resultava em testes e participação nas aulas a roçar o medíocre, o previsível e permanente artifício das investidas dos pais junto dos professores, transformava a mediocridade em satisfaz mais, e não em bom, porque os professores não eram tão permeáveis como os pais desejariam. Pela Maria Amélia, a nota merecida seria sempre bom ou acima disso. Não conseguia acompanhar o filho nos trabalhos de casa, mas insistia que estudasse. Já o pai ajudava ocasionalmente a preparar lições sobre temas especiais, sempre apinhado de floreados, muitas certezas ancoradas na voz corrente dos meios académicos que conhecia pela breve passagem na faculdade e pelo convívio com família e amigos. Viviam de expressões decalcadas, que os estranhos não descortinavam, mas os mais atentos percebiam ser meras larachas de circunstância, sem outro interesse que não fosse o de manter conversa em sociedade e demarcar território de gente com pergaminhos. Gente que se toma por inteligente e culta.  Para alguns meninos-bem valia o dito pelo tio bem instalado, ou primo professor universitário, juiz desembargador, médico, secretário de estado, advogado, arquitecto. Ou o alvitrado pelo amigo que ganha rios de dinheiro. Ou pelo sobrinho que está muito bem, em vias de chegar a cargo directivo na banca.  A superficialidade, daí resultante, gerava situações embaraçosas a quem não escrutinava o ouvido. Tal como o pai, o Tomás era estimulado a contestar o que escutava em função de inclinações ou aversões entranhadas na voz corrente da sua tribo; mas não habituado a confirmar informação propagada por gente rotulada de inteligente. Engrenavam em discussões aparentes, nas quais prevalece o jogo de retórica e não o confronto de ideias. O que confere algum traquejo na arte do discurso, mas pouca valia em termos de conhecimento, perpetuando indistintamente factos e falsidades.

      No caso especial do Tomás, Bizâncio será sempre pedra no sapato. No início do décimo-primeiro ano, a professora de português referiu-se à antiguidade de Portugal, nação de mais de oitocentos anos. O colega chamado Luís, que vivia no mundo bastante mais antigo e amplo, onde as várias civilizações do planeta eram pedaços de um todo de biliões de anos e o próprio planeta, pedaço de matéria a anos-luz de distância de outros planetas, estrelas e constelações, comentou: foi um instante.  Sempre ufano, o Tomás chamou-lhe calhau analfabeto e exibiu-se. Naturalmente, estampou-se. Só o Império Romano durou mais, afirmou. Perante o olhar espantado da professora continuou, muito seguro: sim, Cristo viveu na época do Império Romano e o cisma só se deu no século XI. A professora paciente e, por sorte, de calibre diferente da maioria, pensou vinte segundos sobre o ouvido e percebeu a confusão do aluno entre o fim do império romano e o cisma do oriente, a separação das igrejas católicas apostólicas entre romana e ortodoxa. Disso deu nota à turma, e aproveitou para sugerir ao menino alargasse o seu mundo a Leste. O que nem a professora sabia, é que esta ou outras confusões, comuns a quem é mais difícil desculpar a ignorância, por ter disponível os recursos para a suprir, disseminar-se-iam, como pragas de sobranceria, por toda a sociedade, impondo-se sobre o silêncio de quem ainda tem a felicidade de ter dúvidas. O episódio não teria deixado grandes marcas, caso o Luís não se tivesse saído, no fim da aula: nunca me enganaste, és um bizantino. A Ana Paula e a Lara riram a bandeiras despregadas, sem nunca terem chegado a perceber o que era um bizantino, não voltaram a referir-se de outra forma ao colega Tomás. A Lara adiantou a hipótese de ter qualquer ligação aos bísaros de Trás-os-Montes, e tamanha a ignorância, assim ficou o reco bizantino, e passou a alcunha no liceu, naturalmente, odiada pelo próprio.

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        Sentada no sofá lembrava a conversa de há dez anos com o pai, no jardim de Espinho. Surpreendera-o embrenhado no seu mundo, como muitas vezes acontecia, e espantara-o: ela já entrou? De cor eram os sapatos hoje? O João voltou-se; viu o ar de troça da filha. Já, já entrou. Estava aqui nos meus pensamentos, acho que eram verdes, respondeu bem-disposto e acrescentou: a viagem foi boa? Trazes bloco novo, florido? Mais poemas? Óptima. Vim cheia de ideias, respondeu animada. Vou fazer o que me pediram e dedicar-me à vossa musa da liberdade. Rindo abertamente declarou: como diz a mãe, tenho mais sucesso se me dedicar às Anas Paulas deste mundo do que à poesia. Ora, nem mais, o João, esticando o molho de chaves do apartamento na Constituição. Ela despediu-se, afastou-se até ao estacionamento e arrancou no Fiat Punto em direcção ao Porto, a saborear a ideia de rever a casa recém-comprada, o lugar ideal para recomeçar a vida e a escrita.

       A mesma alegria sentida agora, dez anos volvidos, ao mudar-se para a Póvoa de Varzim, e cumprir o hábito da pequena viagem logo depois de mobiliar a casa. Espécie de baptismo da mudança, para que tudo fosse perfeito. Desta vez, o destino foi o barlavento algarvio. Quis voltar a espraiar os olhos e as narinas na despojada Costa Vicentina, tocar a miscelânea de maresia, esteva e urze, alumiadas ao sol amortecido pelo vento frio. Escolheu o Outono, já depois da debandada dos turistas gourmet. Estava encostada à meia-parede do alpendre da casinha caiada, de duas assoalhadas, arrendada para a sua semana, quando o telemóvel tocou. O Vicente, a saber das férias da amada. A conversa durou pouco mais de vinte minutos. O tempo preciso para a Margarida comentar as horas de maré cheia e maré vaza, a temperatura da água do mar, na praia do Castelejo, onde não resistia a chapinhar os pés mesmo em Outubro, apesar do vento norte a driblar a valésia. Dizer estar contente, por este ano não ter apanhado o vento levante, que baralha as temperaturas e as ideias. Acrescentar ter visto o voo rasante da última libelinha a riscar as águas paradas da lagoa. E perguntar pelo que se passava no mundo, além dos jornais vergados à propaganda das agências noticiosas e das vagas de desvarios gerados nas redes sociais. Como muitas vezes acontecia, deram conta não ter novidades, senão o politicamente correcto e as balelas destinadas a provocar a indignação, o riso ou o desdém. A propósito, o Vicente contou que um carro tinha entrado uma vez mais na linha do metro na ponte D. Luís. Soube-o através do recepcionista da empresa onde trabalhava. Até ver, com a entrada das novas chefias espanholas, as trapalhadas passaram a mais do que muitas e não sabia se ia aguentar muito tempo nas vénias aos nuestros hernanos. Ah, é verdade, conheci o Pedro Cabaço. Encontrei-o na Bertrand; levava um Hermano Saraiva na mão, disse. Sério? E esgueirando o sorriso que a tornava mais parecida com a mãe, acrescentou: ele agora lê esse perigoso adulterador da história de Portugal? Pensei ainda estar proscrito em almas de esquerda tão ilustradas. Muito me contas, terminou em gesto de gozo. Pensou na figura tola que ali fazia, sozinha no meio do nada, a falar ao telefone e a abanar a cabeça. Sabia que ias gostar, confirmou o Vicente. Mas olha, estivemos a conversar uma boa meia hora e não me pareceu tonto de todo. Nunca disse que era tonto, apenas incongruente. Mas conta, de que falaram? Inquiriu ela. Nada de especial, da decadência das livrarias, reduzidas às modas e destinadas a vender porcarias. Demos uma olhadela e comentamos as celebridades que dão dicas sobre a vida saudável, ou revelam ao mundo a sua extraordinária história de vida. Sim, e mais? Interveio ela só para que soubesse que ainda ali estava, e para dar um ar verossímil ao diálogo. Ou de superação à doença, ao desgosto amoroso, ou aos invejosos que não sabem apreciar a exibição das misérias e glórias, continuou ele. Como nós, mas isso agora não interessa nada. E mais? Voltou a insistir ela. Brincamos com os quase tão célebres jornalistas, blogueres, humoristas e coachees, que explicam como se viaja, come, lê e escreve. E como se veste, se poupa, se ama. A Margarida riu alto e comentou: têm a sua utilidade. Claro que têm, respondeu ele. Li dois ou três desses livros só para tentar ver como funcionas e sinto que continuo a precisar de ajuda para te aturar. Parvo, lançou ela. Ele continuou: disse ao Cabaça que vivia contigo e ele respondeu que sentia muito. Parvo, voltou a dizer a Margarida, cada vez mais saudosa do namorado. Combinara gozar todos os anos pelo menos uma semana de férias sozinha. A explicação oficial era a de precisar de espaço. Na verdade, precisava de sentir saudades do seu amor.

       Ao pousar o telemóvel na pilheira dos cântaros, pensou na conversa sobre o Cabaça e retrocedeu ao período do liceu, voltando a recordar-se da Ana Paula, com quem ele casara em finais dos anos oitenta. Há dez anos, após a última mudança de casa, e o primeiro anúncio familiar das sempre vivas e inadiáveis determinações, escrevinhara sobre as impressões do tempo da sua meninice e do liceu, e a figura da antiga colega sempre tesa e vaporosa e nunca bela, era incontornável para quem gosta de desmontar o boneco humano. Tudo nela parecia encaixe de precisão. A compor o ramalhete, surgia na memória da Margarida conjunto de raparigas e rapazes comuns mortais a gravitar em torno da protagonista. Anunciara aos pais que iria escrever sobre esses tempos e o percurso dessa gente, de quem ia sabendo, anualmente, nos jantares de reencontro. Mas a resolução inadiável convertera-se em banho-maria de dez anos.

       Agora, a passarinhar à porta da casa algarvia, decidiu ter chegado a hora de realizar os seus intentos. Por isso, passou o resto da semana a montar mentalmente o romance da Ana Paula e a esboça-lo no quase imaculado bloco florido. Saciadas as vontades do Sul, regressou ao Norte, onde sabia pertencer. Ao chegar, pousou as malas e reparou na caixa do pequeno presépio, esquecido na mudança em cima do aparador da entrada. Abriu. Tirou a peça única em prata e deixou-se confundir por momentos. Em que mês estávamos? Era a época de ter o presépio na mesinha cabeceira ou na sala? Fazia diferença. Quando o Natal se aproximava, saía do abrigo costumeiro, na intimidade do quarto, para a estada na mesa apoio ao sofá na sala, onde arejava ideias junto do Buda de argila cor de bronze, sentado de cotovelo apoiado no joelho e costas da mão a fazer de cama da cara. Mas ainda era cedo para o encontro universal; até ao início de Dezembro, a Sagrada Família ficaria recolhida no quarto. Lá a deixou.

       Voltou à sala e sorriu abertamente. Estava tudo no sítio, ainda que este ano fosse outro. A alegria de mudar de lugar, sem mudar muito de si mesma. Dar a tal volta de trezentos e sessenta graus sobre si própria e chegar sempre ao ponto de partida. A vida da Margarida tinha laivos de monopólio e não se importava muito quando era mandada para a casa de partida; em bom rigor tirava até gozo da regressão. Lançara os dados e caíra na Póvoa de Varzim, ali logo depois dos hotéis de jogadores profissionais comprou nova casa. A quarta e quase juraria a última, até numa próxima rodada voltar a atravessar o Rossio e a Rua Augusta, e repetir para si mesma, ali não. Tanta luz e fausto não condizem com recato e ponderação. E logo apanhar comboio até Campanhã, para perceber que as antigas casas na Boavista e na Constituição, onde vivera quando trabalhou como enfermeira, nos hospitais de Santo António e de São João, eram passado, menos longínquo do que Espinho, mas ainda assim passado.

       Recostada no sofá bege claro, olhou à volta, reviu os tons terra. Estava definitivamente em casa. Desde a imagem da sala dos cortinados esvoaçantes do África Minha, e do eterno desejado globo de viajantes em tons de sépia harmonia, idealizava sala assim. Imaginou, como o espaço se preencheria horas depois, quando o Vicente chegasse e se sentassem à mesa. Pegariam no copo de vinho e qual Karen Blixen, começaria a contar aquela história guardada no fundo da garrafa do futuro para ser bebericada nos dias correntes. Enquanto dava uns retoques nos quadros da casa e nas poucas peças que a ornamentavam, ia cogitando no capítulo de logo mais à noite. E no que diria a Ana Paula, quando o Pedro entrasse de rompante a participar que os pais passariam o fim-de-semana lá em casa, por causa da inundação da casa na rua da Bela, na Foz Velha. Naturalmente, a protagonista entraria em absoluto stress perante todo o cerimonial da família do Pedro. Os lugares marcados à mesa, pela idade, sexo e grau de respeito. A espera para as senhoras se sentarem e pela colher dentro do prato da sopa da senhora de maior respeito. O tratamento na terceira pessoa do singular, a proscrição dos vocês e senhoras e donas, substituídos por tio ou tia, ou pelo formal senhor seguido de nome e apelido, e senhora dona seguido de nome. O tabu de palavras como esposa, funeral ou sanita, que magoam, nunca aleijando o ouvido sensível de gente civilizada, que morrendo se nega a falecer. Estes, e muitos outros tiques perpetuados por gente bem, eram código de honra e enlouqueciam a Ana Paula, fazendo-a perder o pé no mar de certezas no qual costumava nadar.

       Ao jantar dessa noite, a Margarida subornou o Vicente com Ameijoas à Bulhão Pato e alinhavou a história. A soar a mescla de azeite, vinho, alho, coentros e Dave Brubeck, começou a pincelar os traços de personalidade da Ana Paula. Anos de considerações desarrumadas nos milhares de gavetas da memória, saíam em ideias cortantes e baralhadas. A flutuar no bálsamo Take Five e outras mais suaves, lá conseguiu ordenar o discurso. O difícil cúmplice foi ouvindo e, impaciente como era, quando a namorada terminou, já a acabar os morangos ao Porto, guardou as facas de sobremesa na gaveta do aparador e, ao encaminhar-se para a cozinha, soltou: tem cuidado para não transformares a história em tratado. Conheço defeitos suficientes das tuas personagens e nem sequer sei como se conheceram. Ainda a matutar no enorme crime nutricional cometido, uma hora antes, ao cortar os morangos em quatro e regá-los com a Três Velhotes reservada à culinária, uso proscrito pela ditadura do novo estilo de vida e que, também por isso, fazia questão de manter, a Margarida continuava a criar o enredo do romance ou novela que um dia reduziria a escrito, para registo das suas impressões do mundo. Enquanto o namorado lavava a loiça, ela devaneava sobre o esboço do livro. Nas poucas ocasiões gastas a ordenar o pensamento, tal a liberdade da divagação, imaginava o princípio da história. Não se queria estrear a publicar contos e sabendo ter o cérebro moldado aos retratos e ao discorrer de ideias emaranhadas em si mesma, tinha consciência que para criar coisa digna de ser lida, teria de aprender a saltar fora do enredo e a olhar como forasteira. Toda a vida se comportara como tal, resguardando as histórias na reserva do íntimo e do pessoal. Dar o salto e sair do seu mundo, para o dar a conhecer aos outros visto de fora, o mais difícil. E o início o primeiro desafio.

       Aproximou-se do Vicente, entregando a xícara de café, assente no pires onde pousava a colher e o pacote de açúcar; uma modernice. Esperou que acabasse de mexer e, como era hábito, pediu a colher. Sovina, acusou ele. Quem lava a loiça sou eu. Não percebo porque poupas tanto. Ela sorriu distraída, enquanto envolvia o café. Já estava noutra. Abrindo as gavetas da memória reouve os caprichos. Mais nova, fantasiara as grandes viagens e modelara o mundo mentalmente. Das escolhas trazidas no peito, com as quais corrigiria as desgraças dos países malgovernados, tirava menos gozo ao vergar corruptos e gananciosos, do que ao gizar planos simples de construção da comunidade justa. Começar pelos alicerces, pela garantia de subsistência dada pela distribuição da terra e por acesso a casa. Sonhava um país onde pudesse abrir trilho do zero, e esse seria o país onde nascera. Trazendo à memória o galinheiro no fundo do quintal do maravilhoso mundo imaginado constatou pela enésima vez como é insólito o julgamento do tempo e a razão ou a bondade, ao contrário do que se diz, podem estar do lado errado da história.

       Noutra gaveta encontrou a heroína condenada por crime que não cometera, antes sim, evitara ao abandonar família, amigos e o país. Acto de coragem, o de permitir que todos a considerassem responsável pela calamidade que se avizinhava, e se evaporaria com o seu silêncio. Pôs de lado a ideia, supondo que se algum dia quisesse escrever um policial, teria início de conversa.

       Se pretendesse um romance que contasse uma história de amor, poderia escolher os mil e um devaneios da rapariga poética que idealizava homens maciços, sábios o suficiente para a cativar e resgatar da solidão dos incompreendidos. E se transformariam no único, o companheiro de viagens até aos confins do mundo.

       Mas não tinha intenção de se debruçar sobre o que vai além das fronteiras. Ainda não se refizera do impacto da badalada globalização nem do apelo e elogio à saída do país, vendo que vidas supostamente pródigas da chamada diáspora são em muitos casos tão banais quanto difíceis. Assim como não era sua intenção mergulhar no antigo mundo das viagens e das histórias saídas do baú a cair bem no cenário do globo sépia e das cortinas esvoaçantes. Apesar do prazer da juventude ter sido o das viagens, e com orgulho envergonhado poder dizer que aos vinte e oito já cruzara cinco continentes, aos cinquenta percebeu que precisava terminar o primeiro balanço e interessava mais o comezinho da vida em Espinho, onde viveu até à vida adulta, e a vida nos últimos trinta anos. Queria também enquadrar o cenário na época sem pretensões intelectuais. Para isso, faltava vida mais rica ou a leitura de todos os livros que ficaram na prateleira, por falta de oportunidade e pachorra ou excesso de preguiça.  E os concertos, os filmes e as exposições onde não chegou a ir.  Teria de ter conhecido os muitos sábios que vivem entre nós, e nos chegam sob as mais diversas vestes, como a cozinheira que amassava, benzia e levava o pão a cozer no forno a lenha, apartava os cogumelos venenosos, conhecia os efeitos medicinais das ervas nativas, sobretudo, os mentrastos, e acumulava os tachos, os jardins e a horta, com a distribuição do pão pela aldeia, enquanto fazia os seus bruxedos para compor e descompor as vidas das gentes da terra. Precisava de mais. Se escavasse na mioleira, encontraria matéria interessante como aquela, mas parecia sempre pouco, até ao momento em que se impôs dar forma ao tal balanço encetado aos quarenta. Decidira tão só transpor a escrito os retratos mentais que a ocupam em algumas horas vagas e percebeu serem o que de melhor terá para mostrar. Talvez aos oitenta e dois anos, por altura do que aspirava ser o segundo balanço de vida, voltasse a acender o cigarro, cujo sabor interrompera por quarenta para permitir ter esperança de lá chegar, e escrevesse sobre o excitante mundo das viagens. Agora, tinha outras prioridades, até porque chegava sempre à surpreendente conclusão de que, por mais prazer tivesse na viagem, todos os outros viajantes demonstravam mais gozo, mais conhecimento e mais memória do destino. Além disso, o café na Praça de São Marcos, a road trip americana e direito a cumprimentar um Apache, o arremedo de Paris-Dakar original ou na Terra do Fogo ou no Peru, o mergulho nos recifes australianos, o ínfimo avo de subida aos Himalaias, o safari no parque natural do Quénia, passaram a actos corriqueiros, planeados e escarafunchados por magotes de panfletos publicitários. Façanhas descritas à chegada com minúcia estonteante e claro como experiências únicas e exclusivas, o grande anseio dos novos visitantes dos cantos do mundo, que esvaziam a viagem à custa da bazófia. A Margarida perguntava-se o que trariam de novo estas visitas disfarçadas de experiências sem-par, mas quase sempre artificiais. Os sonhos de ontem, nascidos à sombra das lombadas de Júlio Verne, perderam a beleza inocente do mistério, da surpresa e da aventura. A viagem tornou-se banal, a quem não ocorre que o centro do mundo está no lugar onde o mapa é cartografado e não apenas no quiosque à porta de casa onde é vendido.

      Absorta no emaranhado de ideias pensou no que teria mudado nas últimas décadas. Retrocedeu um sexto de século e focou-se na viragem de milénio, na noite de trinta e um de Dezembro, e na recordação de ter a televisão ligada para ver a era desfazer-se no reality show do momento. O conceito era desconhecido até há pouco da Margarida. Havia seguido vários episódios com ingenuidade, e pôde perceber o estilo de linguagem e interesses revelado nos diálogos dos concorrentes e apresentadores, destinados a saciar público ávido de intriga rasca. Com o nome retirado da obra de George Orwell, o programa era o espelho do sórdido. Popular, entranhou-se, entrando em casa de todos. No hospital, onde trabalhava, a colega enfermeira e boa observadora Maria João imitava não só os participantes, mas também as personagens criadas por humoristas, que passavam boa parte do tempo de antena a recriar o programa nas rábulas. Mais do que caricaturar, reviviam o enredo. Até os eruditos apelavam ao universo da Grécia Antiga para justificarem terem consumido parte dos anos seguintes em frente à televisão a confirmar que o formato vingou, atestando que ele disse que ela não o come de cebolada, porque sabe que é uma interesseira que só está com o cota por causa do dinheiro, o tal que não limpa as casas de banho e fede dos pés, e que o ex-namorado era mau a pinar, mas agora anda a comer a rameira que se tinha metido com  namorado da outra, o tal que uns anos mais tarde viria a mudar o estado do facebook para fingir estar numa relação e assim fazer ciúmes à garina que começou a morder, uma sonsa que andou a dizer bué de mal pelas costas da miga muita linda, que a meteu no bolso quando lhe disse na cara que era uma bruaca e o outro que finalmente mostrou que era gajo altamente, quando empurrou o namorado chunga da sonsa contra a parede, outro tanso que só por inveja podia ter inventado que ela roubou o carro da velha do namorado e ou outras preciosidades deste gueto ordinário.

       A cultura do lixo é intemporal, mas até então não produzia a ressonância universal do formato criado por holandês e propagado à escala planetária. Fixa neste pensamento sentou-se na mesa do escritório, e principiou a escrever a primeira entrevista. Já deixara de antever, agora tratava-se de constatar a transformação de Portugal e do mundo em enorme cenário do big brother, onde sobressai lancinante, a ferida da falta de inteligência e de sensibilidade.

       Posto o ponto final na sensibilidade ou na falta dela, a Margarida carregou no ícone da disquete, gravando o segundo início do livro, deu dois enter e escreveu capítulo II, voltou várias páginas atrás, trocou capítulo I por Prólogo, esgaçando sorriso malévolo; custou, mas aprendeu a achar graça aos arcaísmos que trazia agarrados à pele. Antes de chegar o momento de entregar o livro ao editor, teria de os substituir por formas mais arejadas; cairia a numeração romana, para entrar a árabe, sem referência a capítulos, prólogo ou epílogo. Mas não dispensava a utilização do pretérito mais-que-perfeito; quanto mais consciência do desuso, mais vontade em usá-lo. Nunca prescindira de ser alvo do gozo fácil da mole bem-pensante que grassa, mas não medra mundo fora, em eterna adolescência. A mesma que brada de dedo em riste contra os pleonasmos do índex do português estéril. Lá chegaria, por enquanto deixou espaço em branco e escreveu capítulo I, agora terminado. Ficou a congeminar o sentido de haver prólogo. Logo se veria. Se o livro chegasse a bom porto, o editor diria se haveria necessidade de correcções. Afinal o trabalho dos revisores de texto é essencial. Não fazia ideia da estrutura do livro. Em bom rigor, tudo isto era atrevimento, consciente dos erros ortográficos, de sintaxe e na enormíssima dificuldade em criar intriga. Mas estava decidida. Não ia continuar a deixar escorrer o tempo, sem experimentar compor um livro. Assim, com lata e sem pejo. Estava em causa compor um livro, mais do que escrever romance ou novela. A verdadeira pretensão.

       O primeiro livro da Margarida abria com a elevação e a subtileza que mais caracterizam este novo milénio. A contar o dia de estreia da Ana Paula na Entrevista. O novo programa televisivo da TVI.

Parque da Cidade - Porto

      Parque da Cidade - Porto, 2011

 

 

À memória de Deonilde Firme Ribeiro, da Eca.

 

 

       Desataram o sorriso cúmplice à saída da livraria. Não olhes para mim, não disse nada, limitei-me a ouvir. A Constança abrindo a cara e toda a luz de criatura clarividente. És péssima, alinhou o João. Enrolado na forte gargalhada, chamou a atenção da mulher para o movimento da livreira. Lá dentro, Maria das Neves expunha o mais recente fascículo das Comezinhas. Editavam há mais de cinquenta anos. O caderno sobre as mil e uma preocupações da vinda ao mundo do bebé inaugurou a tarefa da vida inteira. Assim celebraram o primeiro aniversário da filha. Ao longo das décadas, dedicaram-se a tudo quanto mexe e merece relevo, por mais ínfimo possa parecer. Insignificâncias que sempre tiveram lugar na pequena editora e livreira Maria das Neves. Ao lado da Pérola, das várias revisões da Constituição de 1976, do Dom Quixote, da Odisseia. Da poesia de Fernando Pessoa, da Fanny Owen, do Coração das Trevas. Esteve sempre lá. Fazia parte da mobília. De início, em fascículos de capas de grafismo ingénuo, de cores primárias e formas geométricas, passando nos oitentas aos desenhos abstractos e indecisos, para nos últimos tempos acompanharem as imagens estilizadas do blogue, que passou a coexistir, adoptando o mesmo nome da publicação.

       Criavam saber comezinho há meio século. Discreto. Às belas ilustrações do João, a Constança juntava o texto de mais ou menos cento e cinquenta palavras, ensinando coisas práticas e conceitos. Desde a limpeza de sifões a circuitos eléctricos, a programação informática, passando por burocracias, noções de política, até o sentido das várias religiões ou correntes filosóficas. Dentro da livraria, na papelaria anexa, o casal tinha acabado de ouvir comentar o bom resultado da Ana Paula nas eleições. O velho marido da livreira separava o pedido da agora eleita, que uma vez por mês vinha rever Espinho, e lembrava os anos a fio de encomendas, primeiro da TV Guia, depois da Nova Gente, as únicas leituras regulares da nova deputada da nação. Estranhava que mesmo após ter entrado na faculdade de psicologia, tivesse acrescentado apenas meia dúzia de livros técnicos à habitual encomenda. E a Comezinha de 1991, lembrou a Maria das Neves. Recordação que uniu os dois casais em uníssono sorriso malicioso.

       A libertar-se do pequeno instante de má-língua, o João observava a mulher, ainda derretida a espiar a última criação. Estendeu o braço comprido, procurou a mão gorducha da Constança e seguiram juntos para casa. Tinham tarefa importante. Em cima da mesa da sala de jantar a Entrevista, escrita pela Margarida, aguardava leitura crítica. A filha decidira escrever uma história. A comunicação teve pompa e circunstância. O assunto foi tratado à mesa. Nesse Sábado, pediu à mãe contasse consigo para o lanche. Quando chegou, encontrou-a na cozinha a pôr as folhas de chá preto na bola de prata perfurada, que cairia no fundo do bule de faiança amarelecido de tão chalado e de bico esbotenado. Sorriu quando viu a mãe verter a pequena porção de água a ferver para abrir o chá. Naquela casa, felizmente, havia mais do que peneirices. Cheirava à massa adocicada do bolo de maça, o preferido da Margarida. Ao fim-de-semana havia sempre bolo, fosse de maçã, de mármore ou de laranja. Abriu o frigorífico, tirou a manteiga, o fiambre e o queijo, enquanto o pai partia a regueifa em fatias generosas, e juntaram-se à mesa. Quando ia começar a dizer ao que vinha, o João pediu mais um instante e foi buscar a compota de amora à despensa; era o guloso da família. Já acomodados, as atenções centraram-se na Margarida. Já comecei a escrever e desta vez é a sério, vou levar até ao fim, declarou. Mas duvido que gostem. Aliás, duvido que haja quem goste. E continuou a explicar o que ia na alma. Deixou carta dentro de envelope aos pais; aí resumia as intenções quanto ao livro. O envelope estava em cima da pouco mais de centena e meia de páginas copiadas e presas em espiral vendida na loja de cópias. A única versão em papel do esboço do livro estava ali, sobre a mesa da sala da casa dos pais. E a carta dizia:

       Meus Queridos Pais,

      Vou aproveitar a tal história sobre Ana Paula, a vossa cara e coroa da liberdade, para dar uma pincelada sobre os últimos cinquenta anos. Crítica. Interessa-me o carácter das pessoas e o que vi. São coisas pequenas, que ficaram por dizer e fazem toda a diferença.

      Sim, sei. Cada qual vê o mundo como vê e há guerras que não devemos comprar. Mas vou comprar. Corro riscos. Exponho-me ao ridículo. Faço o que pode ser considerado medíocre tratado de menoridades e moralidades. Longe de liberdades fingidas e do humor doutrinal; longe da cartilha do nosso tempo. Sem sofisticação. Nada recomendável, portanto. Escrevo do lado de fora; o da liberdade, propriamente dita. Sem pedir consentimento, despejo um chorrilho de considerações sobre miudezas que não move o curso do tempo nem comove quem se interessa pelo destino do mundo e pelas grandes questões da humanidade. Disparo conclusões em vez de perguntas. Crio uma mancha de tinta cheia de imperfeições, e um elenco de personagens que não despegam de imputações escusadas e ilações contestáveis. Sem cunho literário e os seus tiques. Sem as longas descrições sobre a beleza da paisagem, a fealdade da sala, da parede. Sem a subtileza de saber dizer sem dizer. Pouco no livro se intui. Digo, escrevo. É cru. Não será belo, não será arte, mas é o que preciso dizer, agora. Exponho-me por pouco, é verdade.

     Pela liberdade, nada a fazer. Vivo-a sem remorsos em vez de a pregar. Já a arte me deixa a mágoa de não ser capaz. Aspiro a dias melhores e faço a tentativa de romance ou novela com a matéria-prima à minha mão, e por mais trivial que seja não posso nem quero ignorar. Poderá ser falhada, por falta de sabedoria em libertar as personagens, mas será acabada. Desta vez, chegarei ao fim. Garanto.

    Beijo

    Margarida

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