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Fui à farmácia tentar arranjar máscaras para me prevenir, mas estão esgotadas. Será que o bando socialista ainda tem a fábrica das golas?
Nos polígrafos fico a saber o que por aí se diz. Bastante mais informada, é verdade. Resta a dúvida se não se trata do megafone de rumor versus politicamente correcto em vez de detector de mentiras. Em todo o caso, puro entretenimento. That's all folks.
*
Acontece, às vezes,
enquanto a água corre
ter ideias felizes
(bem sei que soa a conhecido
e parece batota, mas não é).
Repiso, duas ou três vezes,
a ideia na desordem do vapor,
na esperança de a suster
e dela lucrar pensamento.
Mas, o mais das vezes,
foge lesta com a água
e desfaz-se em fantasia,
ou pior, desata e nada.
Apetece, às vezes,
agarrar na cana de bambu,
fazer o isco no ralo entrar
e pescar a ideia foragida.
E, por última vez,
mergulhar no tempo
tão só para ressuscitar
a memória feliz
da ideia libertada.
*
A manhã doce entre a sornice
e o pós segunda grande guerra
do livro entre os lençóis,
o almoço e no jornal da tarde
nada que não preveja.
O guarda-chuva aberto
por pouco tempo
no giro às redondezas mais afastadas,
a premonição do carro estacionado
para trás sobre nós a descair,
como sobre a prima pianista.
Três casas recuadas
com jardim na frente,
uma decrépita, outra habitada,
a última nem coisa nem outra,
o ângulo-morto do guarda-chuva,
a visão do carro em marcha-atrás,
o embate lento e suave,
o berro firme e másculo de aviso,
tudo bem
no aperto de mão
entre dois homens educados,
nenhuma mazela
só o tremor feminino
tocado pelo dedo que adivinha
e continuamos caminho.
Na esplanada
quatro mesas vermelho Buondi
quatro vasos de plástico coloridos
e gola rendada,
o nosso amarelo espantado,
entremeado com o verde imaginário,
depois do lilás do laço no rapaz baratinado,
e antes do azul do balneário,
as flores rosa e para sempre viçosas,
dezasseis cadeiras brancas,
dois cafés, uma água castelo
e uma casa demasiado grande
junto ao xis do mapa do tesouro
do roteiro Porto 2001.
De regresso
à cada vez mais
merecida e nossa casa,
nova, querida e esticada preguiça
antes do preparo do quase nortenho rancho
quase do sul jantar de grãos,
a batotice no abreviado arranjo
nem saiu nada mal
e ainda sobrou almoço
para amainar o corropio de amanhã.
Escolha de Domingo do Vicente e da Margarida.
Escolha de Domingo do Vicente e da Margarida.
Há anos ouvi um humorista ironizar sobre o assumir de defeitos de cada um. Dizia que quando se trata de afirmar que somos imperfeitos, todos ilustram a ideia com a teimosia. Pudera, ninguém se insurge furioso contra um teimoso. É daquelas pechas que não aflige consciências. Quem vai pôr o dedo em riste e gritar? És um teimoso, um grande teimoso. Não te perdoo, está tudo acabado entre nós. Ninguém. É daquelas coisas que só se lança com um misto de ternura, do género: grande teimoso me saíste. Seguido de um encolher de ombros e passagem rápida ao assunto seguinte.
Do outro lado da linha da tolerância está a desonestidade. Está para aparecer quem diga: sabes, sou um trafulha, roubei isto ao meu irmão ou à minha amiga. O grau de consciência da gravidade do defeito, faz com que aqueles que se dizem muito, mesmo muito teimosos, jamais se declarem ladrões. Apesar de poderem ser biltres nada teimosos.
A balança
Vem isto a propósito das acusações de racismo e xenofobia, misoginia e homofobia. Longe das modas identitárias e do agitar inconsequente de bandeirinhas, para aferir do grau de consciência da gravidade da falha convém colocá-los nessa mesma balança, que alça a leve teimosia e afunda o chumbo da desonestidade. Talvez assim possamos aferir da sua real gravidade e grau de censurabilidade.
Será que o insulto racista, xenófobo, misógino ou homofóbico é tido como algo verdadeiramente errado, injurioso e perverso? Ou nem por isso. Dá-se pouco ou muito valor? Reage-se com indiferença ou visceralmente quando se ouve? Responder intimamente a esta questão talvez sirva de bússola aos próprios actos e pensamento.
O que não se diz
Se a resposta à pergunta anterior for uma reacção visceral, convém ainda perceber se tem cabimento. Quando o insulto ou discriminação são patentes, gratuitos e injustificáveis poucos toleram. É pacífico. Ou quase, porque há sempre margem de gente que pensa com os pés. Mas, e quando estão em causa situações ou opiniões em que é muito ténue a linha que separa a discriminação da constatação defensável de factos? Entramos no campo do que não se diz por pudor ou, pior, por hipocrisia. E, como se sabe, a falsidade é uma incubadora de equívocos e reacções radicais.
Caso se levante uma voz a dizer que determinada etnia não atribui a mesma carga de censurabilidade à honestidade, tratando-a com a leveza da teimosia, quase virtuosa, logo um coro de indignação surge contra o racismo. Invertendo a razão, como se a realidade meramente retratada fosse falsa. Quando o erro está no ficcionar realidades inverosímeis, tratando como igual o que não é e, pior, isentando de responsabilidade quem a tem.
Se alguém se atreve a dizer que determinada mulher é fútil ou que um grupo de mulheres se comporta de modo fútil, logo será acusado de misoginia, apesar dessa mulher perder muito do seu tempo a comentar levianamente o que outra mulher traz vestido, a cor do verniz ou quantos foram os seus namorados. Não parece aberrante dizer que no caso de certas mulheres não há quotas que valham.
Se um indivíduo com experiência na vida nocturna em bares gay disser que alguns frequentadores têm práticas que vão além das liberdades comummente tidas como aceites e que, não raro as relações com menores foram permitidas sem juízo de censurabilidade por parte significativa dos assíduos dessas casas, logo será acusado não só de homofobia como da mais repugnante cretinice. Quando os factos dizem o contrário, que a prática de sexo com menores foi tida como normal.
É verdade que entre heterossexuais também existem comportamentos desviantes e criminosos, é certo que a maioria das mulheres são lúcidas e capazes e que cada etnia tem as suas idiossincrasias (nunca imaginei escrever esta palavra sem ironia, mas faço-o desta vez), mas estes factos não podem justificar o permanente ficcionar do mundo perfeito, sem diferenças, vícios e defeitos. Não podem ser pretexto para a criação de uma redoma que albergue os puros, uma classe de pessoas intocáveis a quem é preciso defender das agressões do mundo exterior, real e injusto.
Numa primeira fase, se o discurso dominante assentar numa realidade inverosímil, o silêncio vai impor-se. Mas o que não se diz, o que se cala, mais tarde irá degenerar em reacção desmedida. Os calados, ao constatar incongruências, começarão a cultivar a intolerância, que resultará em raiva. As realidades alternativas originam fundamentalismos vingativos.
A bitola
A questão que sobra é: para quê tudo isto? A quem serve o ódio pelo outro ou a defesa insensata e cega de quem têm reais responsabilidades. Para além de todas as razões biológicas e de luta pelo poder, que a ciência demonstra, serve sobretudo à nossa vaidade. É a conclusão possível. Da mesma forma que alguém acusa de corrupção o político que legislou a troco de um benefício financeiro próprio ou o dirigente desportivo que comprou árbitros, ao mesmo tempo que declara valor inferior na venda da sua casa para fugir aos impostos ou forja prejuízos para serem cobertos pela seguradora, outro alguém acusa de racismo e xenofobia, de misoginia e de homofobia gente tão responsável como outra, que passa impune por supostamente ter sido ungida pela pureza e perfeição. Gente tão vaidosa da sua superioridade como os racistas, xenófobos, misóginos e homofóbicos. A vaidade que impede o assumir da desonestidade, considerada defeito grave, faz com que se achem superiores, portadores da razão e da verdade, incapazes de usar a mesma bitola em causa própria.
Nota final
Não escrevi nada de novo. A tentação de escrever tudo quanto se quer é isso mesmo, tentação. Nunca se escreve tudo quanto se quer, nem exactamente o que se pretende. Há sempre pontos mal alinhavados, pano que fica por unir, restos de ideias. Mas não há como tentar, correndo riscos, sendo o menor deles trocar alhos por bugalhos.
Não discutas com gente que expele bílis em vez usar a cabeça ou o coração. Vão distribuir insultos gratuitos, inverter a razão, mentir, apelar à falsa moral, deturpar tudo quanto possas dizer de razoável e nada disso te diz respeito. A fúria deles é com a sua própria natureza. É ranço.
Parece-me um erro achar que tudo está nas mãos do homem ou que, superiormente inspirado, pode sempre salvar o mundo. Não podemos salvar o homem do fim, mas podemos - a seu pedido - livrá-lo do último sofrimento sem cura.
Testemunho de Carmen Garcia, enfermeira.
*
Há ideias que se entendem melhor quando se presenciou uma morte humana. E quando se tentou salvar um cão, tratando o corpo em putrefacção, cheio de larvas. Não estou a misturar valores; conheço as hierarquias, mas também conheço o olhar da última súplica.
Falho quanto baste ao escrever, desde erros gramaticais à má acentuação e pontuação, passando pela sintaxe. Escrevo sempre na corda-bamba, cheia de dúvidas e medos. Assumo-o sem pudores por ser estúpido disfarçar. Mas isso não me inibe de notar alguns tiques e manias.
Acho piada à adesão em força a algumas verdades na escrita. A despropósito, na faculdade, vi suceder o ridículo acerca de centuriões e legionários. Já não me lembro bem – aqui é que tinha graça -, mas aconteceu qualquer coisa como isto: um aluno escreveu mal uma palavra – creio que legionário – e eis que numa dúzia de outros exames surge o mesmo erro. Ao reparar nos ditames da escrita veio-me à memória o episódio das cópias.
Se o linguista chama a atenção para um erro, aconselhando palavra alternativa àquela cujo sentido dado estava errado, não se deve assumir que só essa palavra sugerida é válida, usando-o doravante sempre que haja pretexto. Com toda a certeza existe o sem-número de sinónimos para melhor uso.
Se o linguista sugere o minimalismo, não passemos a achar que tudo quanto é singelo é arte e todo o rococó uma aberração. A simplicidade despida de delicadeza ou força será só sensaboria. Mesmo que não se apreciem os torcidos e retorcidos há alguns que fazem sentido e, se bem conseguidos, são arte. O sal e o mel da escrita estão além da técnica.
O que procuro fazer é ouvir e ler quem tenha traquejo na língua e sobretudo, na medida do possível, seguir a máxima da minha avó: para tudo é preciso inteligência. Acrescento: e sensibilidade.
Bem sei que não é exercício novo, mas que tal experimentar imaginar declarações deste calibre num presidente de câmara do PSD ou num membro do governo liderado por Passos Coelho.
Ando com vontade de escrever sobre o politicamente correcto há dois ou três dias. Sobre dissimulações, ismos de natureza vária e outras chocadeiras de fanáticos. Mas a empreitada pressupõe juízo e bom senso nos píncaros, coisa com que não acordo todos os dias, a menos que tenha nascido ensinada e não tenha dado por isso, o que é pouco provável.
Em vez do longo articulado sobre tonterias - adiado para dia mais inspirado -, dou-me ao luxo de desabar um desgosto. Trago a pena de não ter vivido fora de Portugal por minha conta e risco e por tempo suficiente para me pôr à prova. Sempre achei que estar fora nos enrijecia como gente, além de nos fazer bem às ideias. É certo que nasci em Angola, mas vim para cá com pouco mais do que um ano. É certo que lá voltei há quinze anos com ideia de ficar a trabalhar, mas decidi regressar em semanas. E que estive um mês e picos nos Estados Unidos, mas em férias, tal como os dois meses na Austrália. Porém, estes e outros arejos, pouco mais do que turísticos, por simpáticos que tenham sido não permitiram fazer aquilo que acho ser obrigação de um bom português: desenrascar-se (o texto inicial tinha um verbo mais incisivo) em terra estranha.
É possível que se tivesse vivido por minha conta e risco a lavar janelas em Nova Iorque, a limpar rabos num lar de idosos algures na Cornualha ou na construção civil em Berlim, gozasse de opinião mais bem formada, por exemplo, sobre racismo e xenofobia.
(Imagem da Ikea)
Chiu. Pára tudo. Silêncio. Nada pode estragar o momento de estrear o sofá novo. Ele há grandes dias e grandes noites e esta é, entre as pequenas felicidades, uma das maiores.
O Nuno também gosta da nova aquisição; diz que cheira a carro novo e que, desse ponto de vista, nos ficou barato. Não sei se arranje um daqueles volantes brinquedo, com que as crianças antigamente se divertiam a fingir que guiavam e ligue a aparelhagem a fazer as vezes de auto-rádio. Dou à ignição da telha, depois da smooth fm e aí vou eu, vrumm, sem destino, refastelada no sofá novo, sentindo desafios que nunca ninguém sentiu (acrescento final do Nuno, como não podia deixar de ser).
Estás a dormir? Ouvi o teu pai, todo ele cautelas. Não, ainda não. Estou a compor os sonhos. Respondi, nessa noite, na véspera do exílio de Custóias, onde me esperava este ano e meio de pena. Nunca imaginei que esta frase da tua avó tivesse tanto impacto na minha vida. Compor os sonhos foi a fuga de sempre e o refúgio nestes tempos difíceis. Acho mais piada ao exagero do exílio, disse a Quinta em tom de troça. Sabes que não gosto de poupar nas palavras, elas existem para ser usadas, mesmo exageradas, com sentidos trocados. As palavras tanto servem para serem respeitadas como abusadas, defendi-me, pensando com os meus botões nos exílios dourados de meia dúzia de charlatães, elevados a grandes senhores do país.
Íamos a meados do século XX quando, na Rua das Valas, hoje chamada Rua Nossa Senhora de Fátima, perto lá de casa, dois cavalheiros pretendentes da mesma dama se travaram de razões à porta da Igreja. O burguês emproado e acabado de formar, que com ela veio a casar, abeirou-se do aristocrata de linhagem tão antiga como a fundação e, logo, tentou exibir eloquência de jerico. O senhor desconhece a minha posição, encetou o palavreado, empertigando-se, mas não a tempo de consumar a ideia. Ligeiro o outro ripostou: sei pois, a sua posição era vertical e, agora, desferindo um soco, passou a horizontal.
A tua avó contou-me vezes sem conta esta cena. Ainda na semana passada rimos a bom rir quando me disse: bem, ele teve melhor sorte que o azarado repórter da sua história, teve nove filhos, pelo que continuou a fruir.
Hoje alguém me escreveu a dizer que faria certa coisa até ao final desde período mensal. Agarrei-me ao telemóvel a cismar: mas porque carga de água se complica o simples.
Elogio a coragem do acto em tempos da moda de vitimização.
Faz toda a diferença.
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