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The Palace of Fine Arts - San Francisco, Agosto de 1998.
Pois, lá está. Não sabes, mas eu explico: ela vai morrer. Não a podes deixar tantos dias sem água. Tudo na vida tem que ser cuidado e tens que tratar da planta se queres que cresça. Tudo na vida dá trabalho, minha querida. Devias ter optado pela buganvília, quase não requer água, perorava a Gabriela. Enquanto a Natividade se erguia do sofá com dificuldade para fechar as cortinas da varanda da sala onde a nespereira se ressentia do sol abrasador dos últimos dias. Só a regava uma vez por semana. Dava de beber à jovem árvore companheira e ficava a hora seguinte atenta a vê-la reerguer-se folha por folha. Sete anos antes confiara dois caroços de nêspera à terra do vaso e assim despontara o milagre de duplo mastro. Toda a natureza é feita de milagre, usava pensar. Como de costume decidiu não reagir. Sabia que inspirava nos outros o tom professoral e sobranceiro. Já a rego, disse secamente. Ai, Natividade, que tom desanimado. Tens que arrebitar. Nós, as mulheres, somos fortes. Isso das pieguices é com os homens. Vai à pê que te pê, não vales um cê e estás aí com sentenças, pensou a dona da casa para consigo. Mas disse apenas: se não te importas tenho coisas para tratar, falamos noutro dia. Estás a despachar-me? Perguntou a Gabriela, indignada. É isso, rematou a Natividade, com um sorriso bem-disposto e apaziguador na voz, acompanhando-a à porta.
(Setembro de 2018)
Vamos a Ponte de Lima?
Foram os imbecis, tresloucados, alucinados que há quase vinte anos alertaram para os crimes cometidos na Casa Pia, contra quem dizia: não, não, credo. Que horror. Vão-se tratar. Quando muito há miúdos mentirosos de vida sebenta que a troco de dinheiro denunciam abusos sexuais que imaginam. Com certeza os juízes que julgaram e condenaram os denunciados são todos tresloucados também. Devem fazer parte da cabala contra o partido.
Foram os tresloucados que há quase vinte anos começaram a alertar para as negociatas obscuras do Banco Espírito Santo. Devem ser alucinados que defendem as teorias de Terra Plana os que chamavam a atenção para facto do banco estar envolvido em toda a trafulhice possível, nomeadamente, em negócios com o Estado. Contra todos os que bradavam: é uma cabala de invejosos e gente esquisita com conversa de café.
Foram os alucinados que chamaram a atenção para o caminho sujo de corrupção em corrupção de José Sócrates e seus apaniguados. Para o endividamento desmedido e para o descalabro do País. Mais uma vez. Não, não, as vozes sensatas só viam horríveis julgamentos em praça pública.
São os alucinados do costume que chamam a atenção para o absurdo das negociatas da EDP com o Estado e para a soberba insultuosa do seu presidente. Malucos, só podem. É apenas o mercado a funcionar dizem os sensatos.
São os loucos do costume que estão a chamar a atenção para o excesso de autoridade venha de que quadrante ideológico vier. Já os sensatos só admitem se virem autoritarismo de um lado. É uma questão de perspectiva muito selectiva.
São os doidos que chamam a atenção para o lamaçal avassalador de informação e o sensacionalismo que empola a realidade e faz tábua rasa de todas as explicações lógicas para a realidade. Mas os sensatos não vêem sensacionalismos, só vêem realidade aterradora e recusam e ridiculizam qualquer explicação razoável para os diversos fenómenos.
Os sensatos foram bafejados pela sorte. A sorte da cegueira voluntária, de se manterem muito confortáveis a boiar na calmaria do mar sereno. A sorte de nunca verem nada do que se passa à sua volta, senão passados anos. E nessa altura são bem capazes de dizer: bem me parecia, bem que desconfiava, mas não me queria misturar com essa gentalha esquisita dos alucinados.
Como alguém me dizia outro dia, não vale a pena metermo-nos em frente ao comboio em andamento, é deixá-lo abrandar e ir calma e moderadamente chamando a atenção para os absurdos. Mas com franqueza, estou um pouco farta de levar com os insultos dos sensatos da treta que cobardemente continuam a preferir não ver a realidade.
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Comentário do Nuno: se vais por aí vais perder likes. ;)
Come-se muito mal nesta casa. Um fastio, não queiram saber. Esta é a meia-dose de Rojões da Churrasqueira Portuguesa do Amial, vinda de bicicleta Uber (pergunto-me sempre como atravessam a VCI). Dá para almoço e jantar de duas pessoas e ainda deve sobrar para um arranjo qualquer para outro dia.
A caminho de San Francisco, Agosto de 1998.
Um apontamento a propósito de anedotas e de várias reacções negativas ao humor. É desolador acabar de contar uma anedota e vir alguém enfadado e muito lesto dizer: ah, essa é conhecida, é antiga, até é assim ou assado. Ai, minha gente, será mesmo preciso dizer que todos conhecemos e refazemos as mesmas anedotas há séculos e o que conta é brincar e descontrair? E mais estranho ainda é levarmo-nos muito a sério e não consentirmos que outros se divirtam. Vejo por mim, sempre que sinto que todas graças alheias me irritam e são perfeitamente imbecis chego à conclusão que o mal é meu, que acordei para o lado errado nesse dia. E mais, reconheço a menoridade de contar anedotas e sei que a ironia a bate aos pontos, só que tudo isso são convenções e o que interessa mesmo é safarmo-nos de bem connosco e com os outros. É preciso ser muito afortunado para prescindir do humor. Eu cá preciso dele como do pão para a boca. Do meu e do dos outros.
A associação que faço ao tema é da reacção negativa às sms de votos de Feliz Natal. Só os afortunados que recebem dezenas e dezenas de mensagens dessas é que se podem dar ao luxo de as ridiculizar. Quando há milhares de pessoas que davam tudo por receber uma única sms com os votos de Feliz Natal, uma que fosse. É a fartura minha gente. A fartura faz como que não se perceba o essencial.
Boa tarde. :)
Na semana passada cancelei a assinatura digital do Correio da Manhã. A partir do início de Maio entra a Calamidade (imagino sempre um precipício quando leio a palavra) e deixo de ter acesso. Na verdade até ao fim de Maio ainda tenho acesso a todos por outras vias, mas façamos de conta que não. Já não me lembro bem quando subscrevi o CM. Julgo que foi após o Verão de 2016, mas não estou certa. Pronto, sei. Com esta revelação acabei de perder metade da mão-cheia de generosos frequentadores desta casa. Agora coloca-se outra questão: que jornal subscrever? Ando indecisa entre o Público e o Observador. No Público levam as coisas mais a sério e dão-se ao trabalho de pensar e tudo, mas são uns chatos, cada vez mais chatos e dogmáticos. No Observador há um punhado de gente com graça e uma profusão de engraçadinhos esforçados sem um pingo de piada, e uma ou outra avis rara culta e educada, mas o certo é que está cheio de questiúnculas, infantilismo e ressabiamento.
Enfim, quero aprender qualquer coisa e fico como o tolo em cima da ponte: ou aturo o tédio do Público ou a mesquinhez do Observador. E estamos nisto. Nesta encruzilhada, só para escolher os três ou quatro artigos ou crónicas que leio por dia. Uma canseira. Ele há vidas difíceis.
Os tempos da pneumónica, de António Araújo no Malomil.
Naquela pequena aldeia perdida do universo todos acreditavam que a pedra caída do céu era amaldiçoada. Desde que irrompera da abóbada celeste, rasgando a atmosfera e enterrando-se a meia altura no solo com estrondo ensurdecedor, era tomada por todos como causa única dos problemas dos aldeões. Todos, desde os grandes dramas aos mais pequenos dissabores. A rocha não fizera mais do que existir, como todas as outras pedras ao longo dos milhões de anos do universo: existir e despegar-se do resto da matéria, o que aligeirando as coisas é criar vida. Calhou ser ali e calhou ser um calhau. Só que os aldeões não viram ali vida, mas morte. A morte das batatas. O início de toda a tragédia. O facto é que os reais estragos foram pouco além da mata fanada de pinheiros e eucaliptos, da leira de batatas e da horta do tio Venceslau. O pedregulho, a que ele chamava casa da música, por ser a coisa mais parecida que viu numa ida ao Porto com o absurdo que caíra na horta, tinha a dimensão da dita e o mais que criara, além de todo o alvoroço, fora a impossibilidade de acesso às batatas. E ao cebolinho, e à alface, ao feijão-verde, às cenouras. Enfim, uma infinidade de coisas que o mundo para lá da tabuleta que diz Lama não vê senão no supermercado, na despensa ou no frigorífico.
Mas se o problema não era de grande monta senão para o tio Venceslau que ficou sem rendimento, o caso agravou-se quando a Julinha, que distribuía o pão pelas aldeias em redor, espalhou a notícia da maldição da Lama. Dada às bruxarias, a Julinha asseverava que numa noite de nevoeiro foram avistadas almas penadas em redor da pedra e que na manhã seguinte a terra que a rodeava começou a amarelar, transformando-se em areia, como aquela que o tio Venceslau tinha visto na Foz do Douro. E que a Julinha em nova também vira nessa coisa das praias. Nas quais, apesar de não viver assim tão longe mar, há anos não botava os pés. Ainda assim estranhava que ali, logo naquela terra tão farta em água que todos queriam drenar e afastada do mar salgado secasse de forma tão repentina. De tal forma que, algumas noites depois, vira peles das cobras largadas na superfície da pedra. Elas conhecem o seu senhor, dizia a Julinha. As serpentes rendem-se sempre ao diabo.
Começando a correr o boato que a terra da Lama era seca e fora amaldiçoada desde que lá caíra o pedregulho, as aldeias vizinhas começaram a cavar um fosso nos seus limites. Um sem-número de questiúnculas sobre a propriedade dos terrenos e as marcações do território da freguesia foram levantadas, ao ponto do Casimiro abrir a cabeça com a sachola à tia Jacinta, por lhe roubar três metros de terra para fazer o fosso. E foram elevadas a grandes questões de discussão outro sem-fim de bagatelas sobre os melhores métodos de construção e financiamento da vala. Assim ficou cercada a Lama apenas unida ao resto do universo por uma ponte dissimulada por uma benemérita da aldeia contígua para que levassem gasóleo até à Lama ou de lá saísse algum aldeão doente para o hospital. Sucede que a artimanha da benemérita Ana, uma espécie de ponte levadiça feita de um reboque de tractor que se estendia até à outra margem, foi denunciada por zelosos vizinhos e logo incinerada em sinal de total repulsa pelo crime lesa-majestade de pôr em risco o resto do universo.
De imediato alguém propôs levar a questão ao tribunal da cidade. Decorria o julgamento e já a acusação contra a Ana era a de ter trazido para o lado de cá do universo a secura amarela da terra. Fotografias fizeram prova. Imagens de areia nos campos da Ana, junto ao local onde estacionara o tractor com o reboque. Vejam, ainda há marcas dos rodados. Vejam, vejam, aqui estão as marcas do ultrajante tractor, perorava o advogado das vítimas, que se tinham constituído como assistentes depois de formarem a associação dos lesados da Ana. Do outro lado, o estagiário defensor oficioso da benemérita trouxe dezenas de fotografias que provavam cabalmente que toda a terra do concelho se tinha amarelado e feito areia em data muito anterior ao engendrar da ponte encoberta e até do próprio fosso. Mas a prova foi considerada nula por não haver registo de autorização das imagens por parte dos proprietários das terras fotografadas. Ora é sabido que isto das leis é assunto muito sério e há valores intransponíveis como o direito à imagem das terras.
A dactilografar os testemunhos das longas sessões de julgamento estava a Joana que era prima da cunhada de um repórter da televisão. Ao contar-lhe a história, logo o dito achou que tinha encontrado o filão da sua vida. E tinha. No dia seguinte, o jornal do canal de televisão para que trabalhava abriu com a fronha ainda espantada da Ana acompanhada pela leitura sibilada do pivot: mulher de cinquenta e quatro anos acusada de propagar a desertificação do concelho de Ribeira da Fraga aguarda sentença. E lá estava o repórter a entrevistar toda a vizinhança da famigerada benemérita malfeitora, incluindo o primo da Julinha, que era nascido e criado na Lama, mas para aqui tinha vindo viver por casamento. O ambicioso repórter quis saber mais sobre a pedra amaldiçoada. Pediu ao primo que ligasse à Julinha e lhe passasse o telefone. E assim foi.
Sucede que a Julinha, tal como parte substancial dos aldeões da Lama, tinha ensandecido com o correr dos meses, farta do estafermo do fosso e de ninguém se dignar sequer a telefonar mesmo quando nasciam ou morriam na Lama familiares e amigos de gentes de outras aldeias. E começou então alucinada a contar ao repórter que se abrira um buraco na terra duas vezes o tamanho da casa da música do tio Venceslau e que o diabo espichava serpentes e lama de fogo como um vulcão daqueles que a gente vê na televisão. A lava principiou a alastrar poucos metros à volta da pedra, mas dia após dia ia um pouco mais além. O jornalista, que tinha deixado de tomar os antidepressivos por não assumir a doença, começou a ver fumo branco a surgir do lado das terras da Lama e com a excitação caiu redondo num sono de vários dias. Não sem antes enviar uma mensagem à namorada por whatsapp: avisa o chefe que vem aí o fim do mundo: depois de amarelar e se tornar areia, a terra vai arder. No dia seguinte o jornal da noite abria com a imagem da divertida fronha benemérita, que já estava por tudo, e o pivot a anunciar que o estado iria exigir em tribunal uma indeminização à causadora de tão grave crise ambiental.
A caminho de Las Vegas, Agosto 1998.
e toca o mesmo: a soberba.
Vamos a Vila Real?
(em fotografia.)
Anteontem enviaram por WhatsApp o vídeo que me fez soltar umas das gargalhadas mais sonoras deste fim-de-semana. Não o posso exibir, mas conto acaso não conheçam. É um alegado comunicado dos psiquiatras alemães e reza assim: como estamos a ser inundados de telefonemas queremos comunicar que em tempo de quarentena é perfeitamente normal os senhores falarem com as paredes, as flores e outros objectos…
...por favor só nos telefonem se eles responderem.
Foto de Miguel Silva.
«Estão a decretar a sentença de morte aos maiores de setenta.», a entrevista a Maria do Rosário Gama, no Sol.
(a descoberta do dia; noruegueses.)
(ainda havemos de lá ir.)
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