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Acordaste a divagar sobre as expectativas dos outros. Durante as três horas que entretanto decorreram, dezenas de pequenos apontamentos despontaram no pensamento em forma de instantâneos que reflectem sentimentos tão díspares como mágoas, fúrias, alegrias ou gratidões. Tudo entrecortado por conversa de bom dia, chuveiro, iogurte e café para quem fica, autocarro resvés, fila para comprar o passe do dito, contas-corrente, café sem o qual não sobrevives, mensagens, emails e telefonemas, registo e trocas de informação e pontos de situação. E por isto que se faz sem quase notar que se fez, em vez de três horas já passam três e meia, e ainda falta o iogurte para quem veio. Hoje é de pêssego, calha bem. E vem-te à memória o comentário desatento de que o grosso disto será automatizado para que o foco esteja no essencial. O sorriso malicioso enche-te a cara - por mania insistes na preferência da palavra cara. Não o vês mas sentes as maçãs do rosto e dos olhos retesarem: é o sorriso de quem já viu o suficiente para adivinhar que por cada automatização de tarefa com vista à rentabilização, duas outras ou mais tarefas manuais nascerão. Se é saudável almejar o lucro e até profícuo, é preciso que se saiba que a complexidade de daí decorre é exponencial. Às vezes diverte-te constatar como se tenta, na ilusão de simplificar o mundo, esvaziar o mar a balde. Mais um punhado de telefonemas e emails, e quatro horas depois de acordar, assinas o recibo do salário. É fim do mês e tudo te faz igual a uma multidão anónima de gente que deambula pelo mundo e tão simplesmente: precisa. Há quem diga que isto não é vida. Que é mera sobrevivência. Há quem defenda e sonhe com unhas e dentes grandes vidas carregadas de sentidos profundos e universais. Quando o sentido da vida pode estar numa conta-corrente ou num iogurte de pêssego comido numa manhã em que se acorda pronta a dizer que não se é, não se pode ser, nem se quer ser uma sombra da projecção dos anseios dos outros. E sem ter planeado dá por si a fazer o diário de um dia banal, de modo espontâneo, deixando que a realidade transcorra, pronta a ser pintada.
Afinal qual era a imagem logo cedo? Talvez o desenho de uma caminheira de varapau ao ombro, na ponta do qual o saco de sarapilheira - ou de linho, talvez de linho -, traz tudo quanto é preciso, para além do caminho e da vontade de caminhar. Era mais ou menos esta a ideia e logo decidiste que não a ias elaborar mas tão só mencionar. Se fosses mais capaz, farias uma metáfora em forma de fábula. Mostrarias a vagabunda, quase sempre só, percorrendo vales, rios e montanhas, e as conversas ao longo do périplo. À cabeça há sempre quem te diga que jamais conseguirás transpor a montanha ou cruzar o rio. Pois que essa história é reservada a predestinados. Devias contentar-te com as doçuras calmas do vale. E deixar esses devaneios destinados a almas mais bafejadas pelo talento, inteligência e coragem. Entretanto chega email da empresa de condomínio e a notícia de que o total da conta extraordinária será dividida em doze parcelas. Tanto melhor, concordas. Voltas à penúltima frase. Esses ditos da vida inteira - que visam proteger-te e por isso mesmo e apesar de te zangares, agradeces -, já infiltrados na carne e no miolo ajudam a fazer duvidar a cada instante do que és e do que és capaz. E no vale deixas-te dormir; também é preciso descanso. Até pegar no varapau e na trouxa para novamente percorrer mais umas léguas. Passas mais um ou outro rio e uma montanha e perdes a noção de quantos já foram sem que no vale reparem que há muito deixaste aquelas paragens – se é que alguma vez lá estiveste inteira – onde sempre voltas em sono sonâmbulo de modo a que não dêem pela tua falta. É preciso criar a ilusão de normalidade, é preciso um módico de apego, até na andarilha de pensamento. Agora passaram cinco horas e é preciso voltar a casa para almoçar. No regresso, mais expectativas virão.
Foste a casa e no caminho voltaste a ler o email do condomínio. Reparaste que aos nomes dos condóminos se seguia um parêntesis com o chamadoiro, dividido entre sr(a) e dr(a); a ti calhou o sra. Sorriste uma vez mais enquanto calcorreavas o caminho e congeminavas que o ar de gorda desligada, de jeans e sapatilhas quase 365 dias por ano tem os seus custos reputacionais. Já muito perto de casa, entraste na padaria e ao teu boa tarde, respondem-te com o habitual e simpático cumprimento, mas seguido de: desculpe, trabalha no hospital Santo António? Não te ocorreu responder na qualidade de Margarida e dizer que talvez sim. À tua resposta negativa, acrescentaram: é que fui lá na semana passada e há uma doutora que é mesmo muito parecida consigo. Reafirmaste que não eras tu e pensaste: lá se foi a tese das sapatilhas por água abaixo – além do que ainda dá uma camoeca a algum possidónio da exclusividade dos ténis. E afinal, na empresa de condomínio nunca te viram a fuça, talvez aqueles sejam parêntesis a pedido. Ris e constatas que se é certo que dispensas o dra, não desmentes que preferirias o senhora dona; o peso das ironias familiares não deixa de se abater sobre ti. E volvidas estas menoridades que não se confessam senão na intimidade e por isso exibes no blog, eis que preparas o almoço entre um chorrilho de palavrões, por qualquer coisa não ter funcionado. Dás por ti a pensar na repulsa que sentes por gente que contigo se cruza na rua a praguejar em vernáculo. Vês-te nesses preparos no meio da cozinha e entre muitos cês, pês e efes, olhas para os teus braços para confirmar se não tens tatuadas cobras, borboletas e nomes de entes queridos, nem chanatos de enfiar o dedo nos pés. Certificas-te que estás limpa de tais adereços e pedes desculpa a quem ouve os destemperos com generosa e divertida compreensão. Almoças com ele e decidem antecipar um encargo mensal que se iria prolongar por mais um ano, para poder fazer face ao novo encargo. O lema é sempre: se é para doer, que doa já, e o desafogo virá depois.
Voltas ao local de trabalho e pelo caminho confirmas no telemóvel que a palavra de conforto enviada ontem a quem perdeu alguém próximo chegou aos destinatários. Dás uma vista de olhos pelos blogs habituais, hoje sem particular atenção. Não chegas a ler os jornais. Voltas à metáfora para notar que há quem pelo caminho fale de gentes, pedras e paus para lá dos outros vales, montanhas e rios. Explicam-te como são belas ou feias, malignas ou benignas e dizem-te que devias escutá-las e com elas aprender a ser gente também. Acenas que sim, e perguntas-te presunçosa - mas apenas em pensamento, não vás ofender alguém -, se estarão a referir-se às pessoas, pedras e paus com quem treinas o jogo do galo desde criança. Em cada poiso, em cada degrau, tiras o varapau do ombro e, enquanto dás dois dedos de conversa, com ele riscas no chão dois traços na vertical, dois na horizontal, e independentemente de quem comece, quase sempre ganhas em perder antes de seguir caminho. E esse vício entranhado cobre-te da invicta carapaça da derrota. Talvez por isso, de quando a quando, apareça no caminho quem estranhando o paradoxo, não enjeite os teus sonhos, antes pelo contrário, os incentive. Sucede que não raro, o encantamento pouco dura. Na maioria das vezes não por responsabilidade de quem te motiva – e a quem és grata – mas por não saberes ceder ao natural desejo de te encaixarem num qualquer modelo de comportamento expectável. Advinhas sugestões sensatas e reprovações legítimas, mas encontras sempre um sem-número de equívocos que esbarram na ideia basilar de por vontade e natureza nunca serás aquilo que os outros de si em ti projectam. Nunca ficarás aquém nem além do que és.
Com tudo isto passaram dez horas desde que acordaste e falta uma para voltares a casa. Reparas que o rádio esteve ligado todo o dia ou não se tratasse de uma jornada normal. A meio da tarde um café descontraído de dez minutos, e uma conversa que envolve pequenas fantasias feitas realidade menos idílica de limoeiro, erva, relva e gadanha. Palratório que só entende quem contigo convive desde que nasceste. É sexta-feira e felizmente na tarde deste dia há menos gente a querer resolver assuntos inadiáveis. O telefone esteve mais sossegado, o que permitiu acabar de escrever este texto, que vais deixar para corrigir e publicar depois de jantar. É fim-de-semana e isso é o que mais interessa.
Não sei se me comova com a excitação que certamente despontará (já vi laivos) nas redes sociais com a frase de Rui Rio sobre a eventual convergência do PSD e do Chega. Para quem percebeu há trinta anos que vive num País com uma população de vigorosa maioria formatada no ideário socialista quando não comunista, ainda que por distracção ou conveniência vote em partidos como o PSD ou o CDS, esta exaltação não espanta. Resta saber se a lengalenga que resulta da lavagem cerebral feita nas últimas décadas aos portugueses vai continuar ou parte deles terão a coragem de mostrar o reverso da medalha sem pudores – e sem falsidades, porque o que mais há é reaccionários disfarçados de democratas -, que servem sobretudo os interesses instalados.
Para não me repetir, deixo em seguida texto escrito no mês passado.
Nenhuma simpatia me anima na figura de André Ventura e no Chega, mas não posso deixar de ver a sua existência e quiçá o crescimento como uma espécie de desforra da agenda dominante da elite política nacional e da comunicação social. Dos quarenta e seis anos de discurso benevolente com o marxismo-leninismo do Partido Comunista e vinte anos de apoio descarado ao ideário marxista-trotskista do Bloco de Esquerda.
Nas últimas décadas raramente o discurso preponderante nos jornais e na intelectualidade pôs em causa o extremismo ou radicalismo destes partidos. O facto do PCP recusar sistematicamente a demarcar-se dos regimes opressivos da Coreia do Norte, de Cuba ou da Venezuela foi visto como faits divers para preencher espaços humorísticos ou de curiosidades dos jornais. Nem o acesso privilegiado - o lobby - de militantes e simpatizantes do PCP a lugares e cargos na função pública alguma vez foi escrutinado. Pelo contrário, era promovido e amiúde elogiado, sobretudo nos meios culturais. Vícios que o Bloco de Esquerda também aprendeu a enfermar ou a matriz não estivesse tão próxima, apesar das pirraças e derivações ideológicas. Realidades nunca expostas na prosa dominante da comunicação social. A mesma que também não consegue perceber e denunciar a leviandade com que o Bloco de Esquerda aborda a economia, desprezando os seus principais agentes – trabalhadores, empresários e empresas – reduzindo-a à figura paternal do Estado Providência que amealha e distribui rendimento - dinheiro, essa massa abstracta e etérea que ora nasce na árvore das patacas ora tem origem na malvadez de medonhos capitalistas – e dos cidadãos beneficiários de protecção.
Ainda bem que esta afinidade - da comunicação social e dos meios intelectuais e académicos com voz no País -, aos partidos mais à esquerda tornou a coabitação em democracia possível. Distanciou-os da imagem original de radicais esquerdistas, elevando-os à categoria de partidos do sistema, até ao ponto de, em 2015, passarem a fazer parte da solução governativa – com um pé dentro e outro fora, no melhor dos mundos.
Agora não estrebuchem quando da outra ponta do arco político aparece um partido radical de direita. É a vida. Para uma acção há sempre uma reacção. E o Chega, mais do que uma manifestação tardia da onda das novas direitas radicais europeias, é uma reacção ao desequilíbrio existente no País há quarenta e seis anos, que (apenas) se tornou evidente em 2015.
Os últimos cinco anos impuseram uma mudança. A partir do momento em que a esquerda radical deixou de apenas pesar na sociedade civil, passando a ter peso na acção legislativa e nas decisões governativas, impondo uma agenda identitária e de maior centralização dos poderes do estado, deixou de ser possível à direita fazer de conta que não via, como fez nas últimas décadas.
Mesmo os jornais conotados com a direita – e não me venham com a treta que não existe esquerda ou direita ou que é esta é uma visão redutora, porque se há coisa que os últimos meses têm mostrado à saciedade é que a dicotomia não é uma abstracção e que o excesso de preciosismo terminológico e semântico tem como efeito útil único não se dizer o essencial e o inteligível para a maioria das pessoas – como, no passado, n' O Independente entretiveram-se sempre mais a destruir a direita do que a denunciar os vícios da esquerda. Uma espécie de temor reverencial às conquistas de Abril e o medo de ser rotulado de salazarista ou fascista fez com que muitos seres pensantes do burgo fechassem os olhos ao laxismo, à incompetência e a amiguismo socialista, ao mesmo tempo que não perdoavam qualquer demonstração de falta de estofo intelectual e ou de etiqueta a Cavaco Silva. Nem, claro, de qualquer erro na acção governativa. Tivéssemos nós uma imprensa com o mesmo vigor e rigor ao questionar a acção dos governos socialistas e das iniciativas dos partidos mais à esquerda e estaria bastante mais sossegada.
Não questiono a necessidade de investigação de todo o acto governativo, das suas razões e das suas consequências. Este escrutínio faz parte dos alicerces da nossa democracia. É sempre saudável ver uma comunicação social atenta à corrupção, aos erros e incongruências na governação. O que não posso aceitar nem justificar é que essa especial atenção seja muito mais branda e cúmplice quando vai na direcção dos partidos mais à esquerda, que haja maior pudor quando os visados são socialistas, comunistas e bloquistas (e queridos animalistas, claro).
Por tudo isto não deixa de ser com ironia que leio a doce entrevista sobre o Chega a Riccardo Marchi, publicada no Observador. Uma entrevista na qual o autor demarca o partido da velha direita radical ideológica – dos fantasmas do fascismo e do nacionalismo - e na qual refuta quase todas as críticas pesadas que são feitas ao Chega. Mas, sobretudo, em que define o novo partido como um partido reformista e perfeitamente enquadrável no regime democrático. Nem por encomenda André Ventura podia pedir mais. Os ventos, por agora, sopram favoráveis. Imagino quanto espuma a esquerda ao ler uma entrevista assim.
Seria bom que no PSD lessem a dita entrevista e começassem a dar corda aos sapatos, que se faz tarde. Digo isto com a maior das franquezas, até porque gostaria muito de ter razões para votar no PSD nas próximas eleições legislativas.
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«O civismo é simplesmente o medo agudo da opinião dos outros.» Fernando Pessoa.
Chego ao trabalho, abro a persiana e dou com estes dois pirralhos enevoados. Ainda outro dia nasceram e já estão no varandim armados em gaivotos adultos. E é isto ano após ano.
Bom dia.
Tentei um postal sobre árvores de fruto, mas está difícil conseguir um todo coeso e minimamente aceitável. Estou perra. A ver vamos quando sai.
E mais um vez: não esqueci a promessa da cronologia da Covid-19. Nem a ficção a invocar malucos radicais. O que vale é que há sempre coisas na calha; de engenho é que estou falha.
Hoje pela fresca tinha planeado escrever sobre o efeito anestésico da Covid-19 no mundo presente. Por sentir que os conflitos armados, as migrações, a seca, a fome e demais questões de relevo humanitário saíram do radar dos sound bites ou realidade paralela em que vivemos, comecei por procurar informação sobre os conflitos armados em curso. Não é fácil. Se fossemos avaliar a existência destas realidades pelo peso que lhes é dado, diríamos que o vírus as debelou. Ou pelo menos parece que o tempo presente ficou suspenso com a pandemia.
Em vez de horas a fio de dissecação sobre os estados de espírito de Trump e dos seus apoiantes, quem repara nas bandas de Caxemira, onde ao fim de quarenta anos de conflito e reivindicações territoriais entre a China e a Índia sem registo de mortos, na Linha do Controlo Real, há pouco mais de um mês havia combate corpo a corpo com mortos, no vale de Galwan, em Ladakh?
Em vez das extenuantes horas dedicadas à contabilização do número de bifes que deixam de pastar na areia das praias portuguesas e espanholas, quantos pensam no terror que se vive no Norte de Moçambique, onde os terroristas islâmicos continuam a executar e decapitar populares dos territórios que vão ocupando? Os ataques não ocorreram há anos, estão a decorrer nos últimos meses.
Ao invés da nova modalidade desportiva que consiste em ilustrar demorada, minuciosa e diariamente a patente debilidade de Bolsonaro, quem dá atenção à militarização do Mar do Sul da China; à exibição de poderio militar e medir de forças entre Estados Unidos e China?
Ia passar ao tema das migrações, mas recebi emails da empresa que faz a gestão de condomínio do prédio onde vivo: 3.050,33 euros de despesas extras com reparação do elevador e obras gerais. Ponho logo os patas no chão, ciente que esta é que é a minha guerra. Lá para Setembro, quando tiver férias, terei muito tempo para voltar a debruçar sobre as desgraças do mundo, já que agora é certo que nada de veleidades com viagens ou mesmo escapadelas de três ou quatro dias. Vou ter imenso tempo nas duas magníficas semanas de repouso no resort cá de casa, com banhos de sol na pequena varanda e mergulhos no jacuzzi natural proporcionado pelas fissuras das bichas do chuveiro do chinês de primorosa qualidade (da próxima tenho que voltar a uma tradicional drogaria, caso contrário continuarei a trocá-las à média de duas por ano). E, claro, vou ter a oportunidade recreativa de constatar que todas as poupanças do ano foram à viola. E ainda dar largas à criatividade para ver como reponho o rombo. Só vantagens como se pode imaginar.
Tudo isto acontece três dias depois de ter posto em consideração uma oportunidade profissional (real e palpável, ao contrário das habituais), que implicaria mudar de cidade, tendo decidido manter tudo como está face à constatação de que um pouco mais do dobro do meu salário actual não compensaria a mudança. Nem a paz que o Porto me dá, apesar dos pesares.
Vamos ao Cuíto?
Entre os 13 e os 14 anos tinha três posters colados nas portas do guarda-fatos do quarto: Bruce Springsteen, Tina Turner e Sting.
Ainda na rubrica das coisas que bolem com o sistema nervoso de possidónia, não pode escapar o ‘deve de ser’. E ‘deve de ser’ por isso que cada vez menos apetece ver televisão. Só não sei se irrita mais quando dito por apresentadores de televisão se por actores e actrizes de telenovelas e séries quando sentados à mesa de jantar gesticulam efusivamente o talher, no qual pegam de punho cerrado como segurassem numa pá de cimento. Deixa de ser irritante para ser especialmente divertido quando estão a tentar interpretar papéis de gente supostamente educada.
Mesmo que tenham passado 40 anos sobre o crime, e duas horas volvidas sobre o despertar, o estômago ainda revolve com um caso destes. Evito 90% das vezes os casos de faca e alguidar, mas hoje deu-me para começar a ler o jornal por aqui. Imagino que a leitura de um artigo destes por um literato seja feita desapaixonadamente da análise de intenções, jogos mentais, avaliações de carácter e probabilidades, ou até de apelo artístico da coisa. Mas a mim, como à populaça, resta apenas perplexidade e repulsa. Assalta-me de imediato a dúvida se já me cruzei na vida com alguma criatura ao menos em latência tão horripilante como esta terapeuta de saúde mental, e chocam-me mais os termos da proposta de affair, o papelito dos prós e contras na parede e as regras do jogo do que os 41 golpes de machado. Mas isto é o que menos interessa: dêem-se vivas ao reality show do crime. As audiências ficam em frenicoques e isso rende, que é o que mais interessa.
Fui baptizada, a 6/1/1974, na Gabela.
Quanto vale um ramo de violetas?
A propósito de devaneios, passos arriscados e asneiras, deixo um trecho (e anotações) do Auto de Mofina Mendes.
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Aqui têm este link brasileiro para o texto integral do Auto. Por preguiça não procurei uma edição portuguesa, mas podem sempre tentar numa biblioteca digital.
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Do almoço de Sábado relevou sobretudo a referência da minha mãe à Mofina Mendes. E como as conversas e a leitura são como as cerejas, concluo que tendo ao que parece sangue judeu q.b., não há como não reconhecer a semelhança com os ciganos. Heresia, heresia. Dirão os puros e os sofisticados.
Aproveito para contar uma anedota do habitual repertório cá de casa.
A mulher cigana chega a casa vinda da praça e conta ao marido: ai, Lelo. Encontrei uma cautela na rua. Diz logo ele: se sair a sorte grande, compro uma carrinha. O filho mais velho: eu vou à frente ao lado do pai. O filho do meio: não, não, quem vai à frente sou eu. O mais novo: não, eu é que sou o mais novo. Vou eu, vocês vão na bagageira. A mãe: não, meus filhos, eu vou à frente com o pai. Vocês vão todos na bagageira. Vira-se o cigano muito zangado: estou farto disto. Todos para fora do carro, já.
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O meu pai veio tomar café ao final da tarde e pôs-me fora do carro. Deixou-me K.O.
Como nas crianças o silêncio de algumas horas é sinal de perigo: estou a ganhar coragem para fazer asneiras. Depois de treze anos de (relativa) calmaria - de vida organizada e previsível -, deu-me para voltar a abanar o destino. Espero não me esbardalhar com o balanço.
Houve tempos em que a vida coube num quarto. A mesinha cabeceira, o guarda-vestidos e o baú de plástico, repleto de papéis escritos, debaixo da cama. De repente, o caos. Vinte anos de desabafos em tiras finas saídas da tesoura para o contentor do lixo. Sem arrependimento. É preciso tão pouco para viver. E com pouco apeteceu recomeçar.
Mais uns tantos decorreram e na vida mais cheia, se ainda vale o alívio de retomar, nunca falha o eterno cansaço da falta. Nunca nada é suficiente. Nada é bom o suficiente. E nunca o bom chegará. Nada vale a pena e a mão que escreve, senão ao sentir a tentação recorrente do peso da renúncia.
22/07/20
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