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Por hoje nada mais a dizer, senão obrigada e que estou feliz na véspera do aniversário da Restauração da Independência e antevéspera do primeiro de três dias de férias. Dois factos praticamente ao mesmo nível de importância para a nossa Pátria. Talvez aproveite para referir que este é o postal 1000 e que amanhã trarei – se cumprir o que agora me proponho -, uma selecção de (?) 20 entradas das Comezinhas do último ano, incluindo algumas a pés juntos.
à SapoBlogs e a quem visita e lê as Comezinhas.
Senti-me de tal modo inspirada pelo exemplo deste camarada ao longo do dia de trabalho de hoje – ponte para muitos –, que ao jantar vou encomendar pela ubereats um double cheeseburger e loucura das loucuras, uma caixa de chicken nuggets. Só estou indecisa entre a água suja do imperialismo e a Fanta laranja.
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Sim, sim, sei. Típico post de rede social. Oiçam, é o que apetece hoje. Não quero saber.
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E por falar em automóveis, fio da meada e novelas que ficam a meio, retomando agora os postais bem-dispostos sobre patetices que me foram acontecendo ao longo da vida e dão alegria, lembrei-me de uma maldade que fiz quando adolescente. Uma retaliação, ou talvez fosse mesmo uma atitude em legítima defesa.
Cresci numa família onde predominavam os homens em número. E mais do que sobre futebol, entre tios, primos e irmãos o tema carros dava azo a intermináveis conversas, das que me faziam sentir do lado de fora. Nas reuniões familiares havia sempre longos e chatos colóquios sobre o desempenho e a mecânica dos bólides. E para ser rigorosa, havia também carros desmontados em peças e muita ferramenta associada. Um mundo à parte do meu e das coisas que me interessavam.
Ora, no Liceu pensei estar a salvo destas manias familiares, eu que nem marcas distinguia, quanto mais modelos de carros. E tudo quanto me teria interessado em criança era que não me fizessem passar vergonhas junto da escola e pegassem de manhã, coisa que em Valinhas raramente acontecia com os do meu pai, sobretudo no Inverno por causa do gelo. E lá seguiam os meus irmãos estremunhados para a grande saga do ‘empurranço’ - saga que se prolongou por vários anos. Valiam-nos os primores, os carros a funcionar - apesar de também velhos -, e a boa condução da minha mãe. Ao longo da vida, por mais do que uma vez passei a vergonha de não distinguir o automóvel onde já tinha andado. Sim, sou daquelas pessoas a quem é trágico dizer: vai indo ter ao carro, que eu demoro mais um pouco. O que me vai salvando às vezes é fixar a matrícula. Consegui aliás a proeza de, trabalhando há vários anos para conhecida marca automóvel, desconhecer por completo a famosa designação de um dos modelos, chegando ao insólito de conversar meses a fio com um amigo na internet que usava essa designação como pseudónimo, nunca me ocorrendo perguntar o que significava.
Pelo que, e voltando ao Liceu e à parte que teria graça, quando o P., amigo do Liceu, aliás, do Glass, o café lá perto, me vinha chatear com a conversa sobre o Honda Civic que tinha comprado ou guiava ou o diabo a quatro, eu desesperava. Um belo dia, sentada à mesa com a E., grande amiga de então, vejo-o desaustinado pela esplanada fora em direcção à porta do Glass, e pensei: pronto, estou desgraçada. Dito e feito, entrou. Vem direito à nossa mesa e ainda meio a pé meio sentado, atira qualquer coisa como: é que não estás a ver, Isabel. Aquele menino tem 16 válvulas. Dei um pequeno pontapé por baixo da mesa à E., pus o ar mais espantado que consegui e disse: a sério? Julguei que os carros só podiam ter 4 válvulas. Ele: 4? E eu com o ar mais estúpido à face da terra: sim, uma em cada pneu. Ah, 5 com o suplente.
Escusado será dizer que morreu ali mesmo uma linda e promissora amizade; o amor do P. aos automóveis e a necessidade de conversão das raparigas aos encantos da condução não era compatível com tamanha burrice feminina.
Sobre automóveis tenho pano para mangas para mais postais. E isto apesar de ser uma desencartada. Sim, nunca tirei carta de condução; apesar de me ter inscrito três vezes nunca passei da terceira ou quarta aula de código, quase tantas quantas as que assisti em todo o curso de Direito - pronto, este é franco exagero, mas achei que dava um efeito giro à frase final.
Apesar deste historial gosto imenso de ver carros antigos, sim.
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Tirada Sexta-feira à hora do almoço, no mesmo sítio onde já apanhei a 4L que aqui também postei. O bom de me ter mudado para uma zona mais popular da cidade, é que quase todos os dias dou com coisinhas destas. Além de mais, tenho o Clube Português De Automóveis Antigos muito perto.
Bem prega Frei Tomás, olha para o que ele diz, não olhes para o que ele faz.
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Ao que parece deixei uma 'fotonovela' - com primeiro e segundo episódio -, em aberto e convém dar seguimento com mais um episódio. Curtinho, como se houvesse futebol a seguir. Sim, no Verão optei por mandar estofar o cadeirão do escritório que tive entre 2001 e 2003. É banalíssimo, mas simpatizo com ele. Nova espuma e o forro pele de pêssego verde passou a azul rugoso. Já não se sente a trave frontal do assento que incomodava bastante quem lá se sentasse. Era tão inconfortável como estar permanentemente a ver os dois lados de uma qualquer questão. Li algures - creio que ontem -, qualquer coisa semelhante a isto: ser moderado não é valorizar de igual modo dois lados opostos, mas escolher e defender o lado que nos parece mais razoável. É-me quase sempre impossível. Habituei-me a ver sempre os dois ângulos de uma questão e, apesar de consciente dos dissabores que isso me traz, designadamente o de parecer inconsistente e inconsequente, não creio que algum dia vá mudar.
Quanto ao orelhas ontem comprámos um, mas vai para a casa onde é mais preciso.
Clarinho como a água, o artigo de opinião de João Miguel Tavares no Público. Quem não percebe o que é dito, das duas uma: ou é adepto da extrema esquerda, professando declarada ou encapotadamente o seu ideário, ou tolera em democracia a sobrevivência de partidos que não condenam desvarios totalitários e ofensas grosseiras à liberdade individual, ao mesmo tempo que não tolera radicalismos de outra estirpe. Esta é a fina flor da intelectualidade portuguesa, que nos tem mantido neste atraso de vida. Neste anacronismo de fundo numa sociedade aparentemente moderna e tecnológica, mas de facto funcionando como clube tradicional da bolinha preta de esquerda.
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Recapitulando, aqui estão três textos do Comezinhas sobre o mesmo assunto. Afinal descobri mais este. E há por aí outros, mas garanto que me daria muita alegria deixar de escrever sobre este tema, seria sinal que já tínhamos passado a fase dos joguinhos infantis.
Que não vos falte nada. Mas...
bem vistas as coisas, estão um pouco ressessas estas batatas em ‘istranjeiro’.
Ontem ao fim da tarde fui à Bertrand. Entre outros trouxe Contos, de Vergílio Ferreira. Chegada a casa e enquanto os bifes frigiam na sertã e o arroz aquecia no microondas, li dois contos. Ao final da manhã de hoje este que agora fotografei. Deliciada com a riqueza e felicidade do arranjo das frases e rendida à severidade das palavras e ideias. Bafos da Serra, com certeza. Não seduz pela facilidade, prende antes pela seriedade e contraste das ironias subtis em toda a sua crueza.
Nota: para conseguir ler o conto aqui preciso do zoom a 125%. A opção por colocar duas a duas páginas, para que não fique tão pesado, impede-me de aproximar mais a imagem na origem, como fiz no passado com outros livros.
Jardins do Palácio, 4 de Novembro 2020.
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Confesso os momentos em que deixei correr as lágrimas só por me aproximar do Porto. Foram muitos. Chegada a casa de carro, autocarro, comboio ou avião, ao sentir o aconchego da cidade comovo-me. Creio que que metade da minha vontade de viajar – e céus, é muita apesar de pouco o fazer nos últimos anos –, é desejo de regressar. Sinto-me afortunada por viver neste chão que não é meu de nascença. Sou filha de pai gaiense e mãe portuense, e creio ter tomado posse do Porto, não só por herança como por usucapião. Chamam-lhe bairrismo. Orgulho tonto. Será. Mas é absolutamente sentido. Nestes dias difíceis em que tropeço nos que choram de preocupação e medo de perder os seus, vale-me o exemplo desta terra de fibra. Bonita, digna e de valentes corações.
Quem ri por último ri melhor.
Não tive oportunidade de ver o que se passou na Assembleia da República ontem. Chegaram-me apenas ecos. Assim, não adianta dizer nada de especial. Verifico que muitos lestos já tomaram posição sobre os votos na questão das injecções de capital no Novo Banco. Apesar de acompanhar esta matéria com alguma atenção – e ter uma vaga noção do que são bancos e obrigações contratuais -, ainda não percebi o alcance das posições tomadas, designadamente pelo PSD. No fim-de-semana talvez me dedique a leituras sobre o assunto para ver se entendo.
Uma coisa é certa: estranho muito a rapidez com que se toma posição nesta matéria. Ou talvez não me admire. Escrever e falar a eito é facílimo, sobretudo quando o que interessa é tomar partido por facções e marcar pontos na folha de serviços a apresentar na dança das cadeiras do poder.
Não me refiro a quem legitimamente mostrou perplexidade, atitude que por si só revela não só inteligência como bondade. Coisas em desuso.
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O melhor deste pequeno postal é que escrevi ‘a eito’. Não imaginam o gozo que me dá usar estas expressões. Já agora um dia terei que tomar posição sobre a conjugação verbal na segunda pessoa do plural: deveria ter escrito ‘não imaginais’, mas será que quero?
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Como muitos em miúda tentei versejar. Tudo quanto saía era de tal modo medíocre que à época não insisti. Tive mais juízo do que vinte ou trinta anos depois, ao tentar de novo juntar palavras em forma de verso. Dizem os músicos que há a música boa…e a outra. É o que sinto na poesia. Tenho a presunção de saber o que é, e sei que não chego lá. Mas é uma tentação. Tenho saudade do ímpeto de compôr uns versos. Quando se tem a perfeita noção que se é muito fraco nalguma área e se têm este apelo deve ser porque ao menos há amor à arte, o tal que que nos impele a fazer figuras ridículas. Mas há momentos em que percebo que é o amor à arte que me faz abster de produzir lixo. Hoje é para aqui que estou inclinada: se sei que é mau o resultado e quero ser coerente (às vezes lá acontece) devo estar quieta, por respeito à poesia.
São inquietações como outras quaisquer. Sem dramas, até por me sobrar o vasto campo da prosa. E aqui há tanto a fazer, céus. Palavras a aprender a grafar, acentos e vírgulas a saber colocar, tempos verbais a saber conjugar e, com propósito, desconjugar – como é bom fugir às convenções e brincar às variações de tonalidade e às dissonâncias não combinando tempos verbais. Vergonha das vergonhas: aprender a distinguir instintivamente a forma pronominal dos verbos do pretérito perfeito, evitando usar hífens indevidamente. Alegria das alegrias: ver a coisa fluir sem consciência, correr atrás do teclado, como antigamente corria atrás da esferográfica. O frenesim de dizer tudo quanto ocorre no pensamento, sem medo do impacto. A ânsia de não perder aquela ideia que espreitou atrás do neurónio preguiçoso e nele se escondeu de novo, envergonhada. Ir buscá-la, trazê-la à luz, desenhando as palavras adequadas, para que não se sinta nem desrespeitada nem agressora. Pode ser magia. É magia.
Apesar de saber que não trago nada de novo, estando esta sensação descrita um sem-número de vezes por outras pessoas que escrevem com regularidade, apetece-me contar que, há meia-dúzia de anos enquanto escrevia a Ana Paula, tive consciência de qualquer coisa excepcional. Nunca me queixei especialmente de solidão. Quase sempre a minha vida se desenrolou no meio de muita gente, e quando assim não foi – houve anos de muito isolamento -, os meus sonhos (dos verdadeiros, a dormir mesmo) eram tão povoados como as telas de Bruegel. A solidão física não foi, senão muito pontualmente, um peso na minha vida. Já a outra solidão, a da incompreensão, a de não ser capaz de chegar a mim e ao outro, foi severa. Há meia-dúzia de anos senti – apesar de estar a compôr essencialmente para mim própria - que recomeçando a escrever e ao fazê-lo de forma mais regular, não mais me sentiria sozinha. E isso é uma maravilha.
Hoje sonhei com uma vinha que conheci bem de olhos abertos e um tesouro nela contido meu conhecido de antigos sonhos a dormir. Conjugação perfeita feita metáfora e o melhor dos augúrios.
Parabéns. Um ano feliz.
Cheio de alegrias e mudanças de tonalidade.
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Eis a explicação para o nome deste blogue. Lado a lado com a Mafalda de Quino e as Redacções da Guidinha de Sttau Monteiro, a poesia de Fernando Pessoa, José Gomes Ferreira, Jorge de Sena, Miguel Torga, Sofia Mello Breyner Andresen e Eugénio de Andrade. Com o existencialismo e crueza de Simone de Beauvoir e Sartre, as crónicas de Miguel Esteves Cardoso e Vasco Pulido Valente, os romances de Agustina Bessa-Luís, o esoterismo de Isabel Allende, as narrativas de Collen McCullough e outras páginas que não me ocorreram agora. Com as Histórias da Filosofia de Abbagnano e de Marías, textos de Agostinho da Silva, o Paradigma Perdido de Edgar Morin, o Papalagui de um senhor cujo nome nunca soube pronunciar. Com os dicionários da Porto Editora e Larousse, com os indispensáveis da Reader’s Digest, como o Atlas e Enciclopédia Geográfica e a Enciclopédia Médica, e todas a bulas dos medicamento das casas onde vivi, frascos de detergentes, produtos de higiene, grafitos e autocolantes, papéis caídos nos passeios da rua e o diabo a quatro, na meninice devorei o livro que faz a diferença: Como Fazer Quase Tudo.
Fui educada a considerar importante não só as tarefas comuns e rotineiras, como os trabalhos manuais. Ainda que sem qualquer jeito para muitos deles (como para quase tudo o resto, diga-se), aprendi a dar valor ao que é desprezado por quem tem voz. A valorizar o trabalho considerado menor. E faço disso uma vaidade num tempo em que se considera estupidificante todo o tipo de acção que não passa por grandes doutrinas e intelectualizações. Num tempo em que a rotina de trabalho é ultrajada, salvo ao tratar-se de qualquer tendência moderninha como a cozinha ou o exercício físico. Numa época em que todo o gato-pingado se acha apto a desenvolver complexo trabalho mental. E mais, apto a orientar e comandar os outros. Convencido da sua competência, apesar da inaptidão para as múltiplas tarefas. Certo do seu valor, mesmo quando este se traduz apenas na aptidão para levantar a voz mais alto ou mover melhor influências. Num tempo em que ter perfil para determinada função significa tantas vezes e tão só dar ar de. Dar imagem de qualquer coisa, sem necessidade de correspondência com o real. O real passa a irrelevante. O mundo deixou de ter trabalhadores para ter perfis de líder em cada ser humano. Está cheio de pretensos sábios prontos a ensinar, converter e comandar. Pena que haja cada vez menos gente a querer e saber desempenhar tarefas comuns. As tais que nos permitem sobreviver e ter a sã sensação de dever cumprido.
Quantos de nós, apesar de não o dizer em voz alta, pensam que esta treta da génese dos contágios ser a família é apenas uma decorrência lógica da estrutura da sociedade. Não vivemos em comunas ou seitas. Vivemos em família pelo que, independentemente do local onde tenhamos sido contagiados, vamos muito provavelmente infectar um familiar com quem coabitamos ou estamos regularmente. Estranho seria se 80% das contaminações se dessem entre monges ascetas. Parece uma banalidade. Mas talvez falte dizer o evidente.
Será que a solução para debelar a pandemia passa por desfazer a estrutura da sociedade?
Quantos de nós, apesar de não o dizer em voz alta, pensam que o Governo poderia ter decidido pelo teletrabalho nos dias 30 de Novembro e 7 de Dezembro, em vez de cavar ainda mais o fosso entre trabalhadores do sector público e privado? Será que a objecção é a de nem todos poderem fazer o trabalho a partir de casa? Muito bem. Seria injusto, de facto. Mas não é injusto premiar - como é tradição -, o sector público? É mais fácil sugerir a tolerância de ponto no privado: as empresas pagam a factura. Já a tolerância de ponto no público pagam os contribuintes. Perfeita noção de economia do nosso Governo: empresários e trabalhadores do privado contribuem para o todo. Trabalhadores do público são a base eleitoral dos sucessivos governos.
Não vos parece a receita mágica para perpectuar a injustiça?
(peço encarecidamente: não me recordem que os trabalhadores do público também pagam impostos; só para não ficar muito condoída.)
Não. Esse não é o teu mundo. Nunca te reconhecerias nele. Toca a desandar. Trata da tua vida. Do que é. Do que existe. Do que és. Deixa as vitrines de virtudes para os modelos que nele gostam de pousar (sim, pousar; além de posar). O teu espelho é narciso quanto baste, mas tosco. E real.
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