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É inevitável. Por muito gosto que se tenha no contraditório e no debate, é impossível não perceber que há momentos e circunstâncias em que dizer ou acrescentar o quer que seja sobre um tema é absolutamente escusado. Ao histerismo cheio de sapiência (e céus, com pseudo-erudição de chorar a rir), não vale a pena responder com o entendimento. A inversão e distorção total da razão não estão ao alcance de pessoas vulgares. Só dos iluminados. É deixá-los brilhar e ofuscarem-se entre si. Dentro de pouco tempo o motivo da verdade histérica será outro e a verdade de hoje (que se desmanchará em seguida) será ignorada ou lembrada em tons sépia e cores amenas para que não se perceba o engodo.
Acaso amanhã não tenham programa para a tarde e queiram arejar os ouvidos, a Casa da Música tem proposta aliciante com transmissão online: Mozart - Concerto para piano e orquestra n.º 20 em Ré menor, K. 466, pela Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música e David Fray ao piano e na direcção musical.
Já aqui havia mencionado o pianista francês David Fray. Podem ouvi-lo falar da peça que vai apresentar amanhã, aqui.
O espaço asséptico inspira-te dúvida e desconfiança. És capaz de perceber o gosto pela luminosidade, linhas rectas e ambiente minimalista, mas pressentes de imediato que o espírito despojado não é real, não tem sintonia com a razão e o sentimento. Sorris e adivinhas que se corre atrás do 'conceito', quem sabe do 'paradigma'. A simplicidade artificial, muito trabalhada no intuito de dar imagem de, afugenta-te. O imaculado carece de nódoa, falta a sombra e imperfeição ao belo. Falha humanidade.
Cada dia que passa e quanto mais escrevo, mais certa estou do peso das palavras e da necessidade imperiosa de guardar as mais valiosas. As palavras depois de ditas e escritas têm peso próprio, materializam razões e sentimentos que não podem ser resgatados e negados, sob pena de caírem no alçapão não só da imprudência, como do próprio desinteresse.
Ao longo do percurso estudantil tive três professores Júlios. Em rigor, uma Maria Júlia e dois Júlios. De nenhum recordo o apelido, apesar de à época sempre me referir aos ditos pelo nome e apelido (assim é a minha maldita memória, não há o que lhe fazer). Da irmã Maria Júlia guardo o riso tímido e fino no rosto de anjo papudo, pele muito alva e rosada nas bochechas, o nosso gosto pelas contas, a sua paciência pelos meus erros e enorme doçura e tolerância. Tenho esperança que o facto de ter feito a escola primária numa misericórdia de irmãs Vicentinas (longe do pedrigree das Doroteias, onde temia ir parar como aluna) me tenha dado alguma sensibilidade para os menos bafejados pela sorte. Não tenho dúvida que o feitio benevolente das irmãs de São Vicente de Paulo, muito especialmente da irmã Maria Júlia, me fez ter relação pacífica com o lado espiritual. Ainda que durante muitos anos me tenha dito ateia, por preguiça de perceber o que era ser agnóstico, em momento algum senti necessidade de guerrear Deus e igreja. A educação em casa, intencionalmente pouco rigorosa em termos espirituais, permitia-me perceber como os homens e instituições são falíveis. A educação naquela escola permitiu-me entender que devemos ser atentos e cuidadosos com os outros. Não tive o mais pequeno trauma pelos rigores da religião tão apregoados na minha geração e nas gerações imediatamente anteriores. O afastamento e regresso à fé foi um movimento íntimo que nada teve a ver com descrença ou mágoa nas pessoas e instituição. A igreja é para mim um espaço longínquo de que guardo sobretudo boas memórias e ao qual não quero voltar para que assim se preservem.
Tendemos sempre a admirar para lá dos que têm bom ar, os que usam e abusam do sentido de humor e da ironia, quando não do sarcasmo ou pura maldade. Também eu tinha – e vou tendo - como eleitos os que me instruíam com recurso à graça e ironia. Mas talvez poucos tenham educado melhor do que o professor de Filosofia do Direito, Júlio, de fraca figura e presença. Não fui a muitas aulas, mas admirei-o pelo modo generoso como chegava aos alunos. Lembro a forma despojada como refazia as perguntas sempre mal formuladas pelos alunos. A cada questão levantada, dava-se ao trabalho de traduzir para português correcto dando corpo às ideias mal-amanhadas com que a plateia o ia brindando, devolvendo a cada interlocutor antes da resposta, uma questão lisa, bem colocada e plena de sentido. Só depois vinha a resposta. Ali não havia lugar a grande fogo-de-artifício nem pasmo de admiração, nem riso desenfreado, apenas inteligência e bondade.
Mais tarde, numa pós-graduação, tropecei no último Júlio. Lá do cimo da sua boa altura e cabelo crespo muito negro, também ele falava português escorreito, ao contrário de muitos dos seus colegas. Creio que tive duas ou três aulas. O suficiente para concordarmos que pouco estraga tanto este país como a incontinência legislativa e as reformas dos diversos códigos. Tremo sempre quando oiço alguém dizer: esta situação não está contemplada na lei, esta realidade é nova, é preciso legislar. Tomara soubessem ler e interpretar o que lêem, como os Júlios. Tomara conhecessem a lei e o sentido das palavras.
Desde miúda tive a prova. Para além da normal dislexia (e trapalhice), o acumular de erros e gralhas deve-se não raro a cansaço e noites mal dormidas. É um sinal do corpo, dizendo que precisa descansar.
Se entre aquilo que se diz e ouve presencialmente existe margem para a dúvida, imagine-se a distância entre aquilo que se escreve e lê ao longe. É muito bonita a afirmação da liberdade de interpretação e o assumir da alienação da propriedade das palavras a partir do momento em que são publicadas, desde que as palavras sirvam para nada ou muito pouco. Se tiverem valor, cada equívoco pode doer. Escrever é um risco. E viver, um risco de erros sucessivos.
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Tanto medo, mas
devorada na voragem
não largas o passo.
Indo e vindo, sempre.
A tremer, a gemer.
Ciente do perigo,
não falhas
eterno destino –
reverso da desdita.
Mal seguras o corpo,
de mãos lassas
desenfreias imortal
galope do peito.
A minha companhia de hoje para trabalhar.
Anton Tchekhov, 1860; Ernest Hemingway, 1899; Albert Camus, 1913; Jack Kerouac, 1922; Paul Newman, 1925; Sidney Poitier, 1927; Sean Connery, 1930; Clint Eastwood,1930; Robert Redford, 1936; Paul Auster, 1947; Jeremy Irons, 1948; Pierce Brosnan, 1953; Denzel Washington, 1954; Antonio Banderas, 1960; George Clooney, 1961; Chris Cornell, 1964; Paulo Pires, 1967; Karl Ove Knausgård, 1968; Matt Damon, 1970; Bradley Cooper, 1975; Carlão, 1975; Matt Bomer, 1977; Jerónimo Albano, 1979; Iker Casillas, 1981; Feliciano López, 1981; Henry Cavill, de 1983; Theo James, 1984 e Michele Morrone, 1990.
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O bom de passar um par de horas a fazer um álbum sobre beleza, é que durante esse tempo é impossível não ter um sorriso na cara. Pura alegria e boa disposição pelo simples regalo dos olhos, longe das palermices do quem é que é que usa quem, quem é que atirou a primeira pedra, esquerdas e direitas, racismos e 'slonganzinhos', feminismos e misogenias que enchem cabecinhas azedas ou evangelizadoras.
Espero que a inclusão de Karl Ove Knausgård tenha agradado na Noruega.
Para o ano há mais.
Bom dia.
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Durante quinze pasmados anos, com algumas ausências temporárias nos quatro primeiros, apanhei autocarro na paragem do Bessa. Como companhia tinha, sobretudo, empregadas domésticas e alunos da Clara de Resende e da Fontes Pereira de Melo. Das conversas das primeiras ficava a saber da intimidade das casas onde trabalhavam, espécie de vingança das cavaqueiras tidas pelas ‘minha patroa’ e 'ela'- variações por que são conhecidas as donas das casas em ambiente STCP -, as quais quando mais velhas também se locomovem de autocarro. Muito polidas demonstram prazer imenso em zurzir na burrice e incompetência do pessoal que as serve, não em público mas no regaço do seu lar, minuciosamente exposto pelas servas quando não distraídas a rebentar balões nos telemóveis. A justiça divina fazia-se ali mesmo e uma coisa é certa: a luta de classes vivia apartada e distante da realidade alternativa dos crianços (adolescentes, em rigor) que coabitavam o transporte público.
Dos mais novos espantava-me sobretudo a total indiferença de substância entre realidade e ficção. Diariamente me debatia em silêncio atenta a miúdos que tinham várias vidas, forças invisíveis, likes, poderes naturais e sobre-humanos indistintos dos sumos que bebiam, das bolachas que mordiam, das biqueiras, das palmadas nas costas, dos kisses e amassos. Várias vezes dei por mim baralhada, tal era a indistinção vocabular empregue nas diversas situações, ficando na dúvida se aquela paixão e enredo de que falavam rapazes e raparigas era referente a algum colega ausente ou mesmo um deles, se a personagem de animação, protagonista de algum jogo virtual, ou músico de banda eleita. Se aquele motivo de irritação e guerra declarada era fruto de alguma zanga física e palpável ou decorrente de uma congénere caça ao Pokémon. À distância já vejo a amálgama do discurso - quanto mais palavrosa e alheada mais enaltecida por alguns pais e professores vergados às correntes de pedagogia que enaltecem o mundo fora dos modelos convencionais – um traço distintivo dos meninos de hoje portadores de generosas doses de criatividade e riquíssimo vocabulário facebookiónamo, ao contrário dos miúdos dos tempos bafientos de outrora, pobres coitados de parco vocabulário, chamando os bois pelos nomes ou usando gíria anacrónica. O que vi foi a mescla sempre conforme à norma virtual de tolerância pela diferença e de cenário, acções e sentimentos efabulados. O arrazoado rápido e fluente de miúdos maioritariamente mais desinibidos do que os das gerações precedentes, porque cheios de repentes informativos e improvisos simplificadores que desenham num ápice tudo quanto precisam saber para se desenrascarem não só enquanto estudantes, mas enquanto miúdos saídos há pouco da puberdade. Massa indistinta de informação com imaginário muito longínquo do que outrora irmanava as estirpes juvenis privilegiadas – proveniente dos livros, das viagens, do cinema, da pintura, do rádio, da música e, finalmente, da televisão. O espectro do mundo da fantasia metamorfoseou-se numa coisa distante: os livros, as viagens etc, depois de se democratizarem, caíram no sofá do IKEA e passaram a servir de objecto banal de culto, tal qual as sapatilhas (ténis para os possidónios) Adidas, e a fantasia passou para o plano puramente virtual e alternativo. O desconhecimento dos diferentes cantos do planeta e o exotismo deixaram de existir com a massificação das viagens. Na aparência, mas isso hoje pouco interessa. O desconhecido, a fantasia, o mistério, que sempre há-de atrair as camadas juvenis, está hoje acessível no digital. É lá que o real se desenrola.
A mim, que passei a vida toda a devanear o impossível e melhor ou pior integrei o mundo da imaginação e fantasia nos meus dias, espanta-me mais ainda a falta de perplexidade com que reagem os muitos filhos da televisão, adolescentes dos idos anos 70 e 80, que sonharam essencialmente fazer dinheiro, ter uma casa xpto, casar e ter filhos. E que para isso trabalharam de modo pragmático, obtendo natural e merecida recompensa. Admira-me que não se espantem ao deparar-se com esta nova geração – a dos seus filhos. Daqui do alheamento da idade da pedra onde vivo, fico a imaginar que linguagem se fala entre pais e filhos. E chego à conclusão que a ponte se estabelece, por exemplo, via HBO e Netflix, das quais tenho eco mas não subscrevo e suponho enormes legendas ou elos intergeracionais.
O mundo efabulado passou a ser o real. Vale apenas a mãe natureza, indiferente aos delírios da humanidade e pronta a lembrar que para a sobrevivência e perpectuação da espécie humana precisamos de abrigo, dormir, comer e acasalar. E é isso que mais fará mover os mais novos, como fez mover as gerações precedentes. O que nos vale é que o universo é uma engrenagem muito bem feita e, até ver, à prova de muitos dos desvarios humanos.
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Só para avisar passantes não avessos à leitura em suportes digitais, que a Imprensa Nacional continua a disponibilizar em pdf livros 'fundamentais da literatura portuguesa'.
Neste intervalo pós almoço já lancei o anzol a oito Camilos espadartes e outro pescado. Vale a pena.
Adenda para efeito de recontagem: dezasseis Camilos espadartes. Bom, agora tenho que ir trabalhar.
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E achava eu a gravata um dos últimos artefactos de tortura do homem, do qual as mulheres felizmente estavam livres e como tal serviria de reduto de vingança pela efectiva desigualdade de oportunidades. Afinal não, no parlamento neozelandês a coisa discute-se porque Today it remains one of the enduring symbols of white male supremacy, silently serving to maintain white male values and standards as the norm.
Não aprendeste tanto assim da vida, mas algumas (poucas) coisas já tens como certas. O ser humano tem tendência a valorizar as falhas e acusar os outros de defeitos que ele próprio possui. É muito comum o ladrão acusar outro de ladroagem, o mentiroso denunciar outro por mentir e o traidor culpar outro de traição. Não sabes se o motivo estará na velha estratégia da melhor defesa ser o ataque, ou se tratará simplesmente do horror a se ver no espelho.
Vem isto a propósito de dares por ti a pensar no que se evitará com atitudes dúplices e o que se conseguirá com grandes estratagemas defesa? Evitar desgostos provocados por traições e deslealdades? Só rindo. Ninguém trai e é tão desleal, como aquele que cisma sistematicamente ter sido, ser e vir a ser vítima de traição.
Há realidades e sentimentos muito difíceis de fazer perceber e é espantosa a admiração que provoca a sinceridade ou franqueza. Quem sempre desconfia e guarda cartas na manga, não vá o diabo tecê-las, nunca poderá entender quem não esconde sentimentos, ideias ou intenções, ainda que os tenha visto aproveitados e usados ao longo dos anos por outros.
Franqueza a mais é falta de educação, sem sombra de dúvida. E a menos, falta de carácter.
Quantas vezes os crápulas se escondem atrás de afirmações sensatas e inofensivas na aparência, mas nada mais do que tiradas superficiais. São tão angelicais os canalhitas dos tempos modernos. Uns doces de mindinho no ar adulados por crédulos.
E tão felizes, crápulas e os aduladores, feitores do país deste tempo, que fingem desprezar, quando mais não são do que os seus reis e senhores. Clap, clap, clap.
Um pouco de fel por dia, dá saúde e alegria.
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