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A começar a trabalhar na promessa de Abril do ano passado. O problema das promessas quando não se cumprem logo é que se vão avolumando até serem realizadas, num duelo eterno entre a preguiça e a teimosia.
Teimosa como uma mula, dizia a Eca.
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Acordei, abri o estore e vi a luz inundar e doirar o quarto. Senti o calor e brilho do sol na roupa da cama e nos pés ao pisar o chão da cozinha. Aproveitei a bênção luminosa, o cheiro a roupa lavada e o paladar do caldo-verde ao almoço. Depois de semanas quase enclausurada, sem as usuais andanças pelos quarteirões circundantes, fui indo e andando sem destino com a conta da água da carteira, não fosse ter que dar justificações. Vi as obras paradas do conjunto de casas da mansarda. Segui na treta boa e no riso do auricular e enquanto a caminhada desenrolava, decidi ir a casa da minha mãe. Já que lá estava, aproveitámos para pegar na tesoura: mãos de filha deram menos três centímetros de cabelo de mãe, mãos de mãe deram menos cinco centímetros de cabelo de filha. Negócio fechadíssimo. Vim radiante para casa, sem metade do mau ar que para lá levava. À chegada a geringonça electrónica anunciou o que há muito não acontecia: percorri os desejáveis 10.000 passos diários. Foi um dia bom.
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Voltando ao Oriente, foi por lá que me deixei estar esta manhã para dar conta que em Hong Kong uma coruja perversa converte crianças pequenas à lei de segurança nacional. Ainda no The Guardian fiquei a saber ontem como são tratadas as detidas de etnias muçulmanas, em Xinjiang. Ontem ainda passei pelo Shine News e reparei no pouco agrado à passagem de navio norte-americano no Estreito de Taiwan. E ainda tive tempo para ver que a Austrália tem aumentado a compra carros chineses.
A abanar os ombros na janela única sobre a praça por desenhar, capital do país por inventar, emerge. Acima do parapeito, o improvável rendilhado de madeira pintado de verde-escuro. Lá dentro pousado no soalho de madeira carcomida e há décadas sem o sustento da cera com que outrora era esfregado duas vezes ao ano, o abrigo feito de cama, três cadeiras, a de fórmica a fazer de apoio ao travesseiro, a de madeira de cabeceira aleatória na mesa de contraplacado redonda e manca, na qual jaz o prato de comida ressequida do jantar de ontem e talheres a darem as seis e meia. A única veleidade de pretensão naquela casa. Não quis ficar pela regra das três e um quarto em que bem foi educada e num espasmo de piroseira ainda aos vinte achou-se vedeta da etiqueta do mau gosto. Na perna mais curta da mesa um maço de tabaco português suave bem dobrado. O calço de quarenta anos. Ao lado da terceira cadeira, de praia, o antigo Grundig pousado na estante baixa e larga, junto do telefone de baquelite creme, que há décadas deixou de tocar, sobre as páginas amarelas de 1988, soa a razão única do sacudir de corpo.
Além da que dá para os três lanços de escadas, duas portas: a da casa de banho com toda a canalização à vista, o chuveiro sobre a base de cimento vermelho e a cortina translucida agarrada com um atilho pela cintura, e a outra para o cubículo interior, no qual a placa de dois bicos faz as vezes de fogão e a torneira sobre a bacia de plástico azul, de lava-loiça. Em cima a prateleira alberga dois copos, uma caneca, dois pires mais pequenos, descasados de almoçadeira e xícara de café, encastelados num prato igual ao da mesa, ainda mais esbotenado. Tudo do chinês. Ao alto um espeto onde repousa o papel de cozinha que faz as vezes de guardanapo. De resto, pouco mais do que sal, óleo e açúcar. Em cima o tacho pequeno, a sertã e a chaleira eléctrica.
Na praça há muito nada se passa. Mas a dona dos ombros meneados bate o pé e cumprimenta todos os que não existem logo pela manhã. Quer saber dos últimos reveses e alegrias, antes mesmo do almoço. Desce uma vez por semana, percorre quatrocentos metros solitários para entrar na mercearia, despida de donos e clientes. Ninguém. Paga com dinheiro que não tem. E no regresso enfia no saco plástico os resquícios ressequidos dos dias seguintes e dá razão ao luxo de ser dona de uma janela e duas portas, além da que dá para as escadas.
Hoje fiz a ronda da manhã, mas não tive tempo de a converter num texto tragável. Fica apenas a pequena nota sobre o número de utilizadores de internet chineses e o seu crescimento. São quase mil milhões. À americana, é um bilião. Se pensarmos que a Índia vai pelo mesmo caminho, vemos que os dois países têm um peso avassalador no tráfego online mundial. Se repararmos que em África os utilizadores não chegam a 30% da população, percebemos o quão distorcido e desnivelado está planeta, como sempre tem estado. Se lhe juntarmos o mapa da pobreza vemos como a relação dela com o menor acesso ao digital nem sempre é evidente.
Os dados da Wikipedia, que não é vergonha consultar a não ser por pedantismo, ajudam a compreender o mundo de hoje. E sempre podemos ter uma ideia sobre os dispositivos digitais usados e os hábitos no acesso.
Ontem andava à procura de tema e escrevi: não, não é isto que quero publicar (referia-me a um qualquer aglomerado de palavras à volta do umbigo). Voltar a falar sobre vacinas nem pensar, sendo portuguesa só quero um pano para tapar a cara de vergonha pelo que vejo passar-se em todo o país. Falar sobre o quê? Incompetência? Não vale a pena, estamos todos fartos de saber. Não vou acrescentar nada digno de ser lido. Política internacional? Tema a que presto atenção desde miúda, mas sinto precisar continuar a ouvir, ler e estudar eternamente. Fica para os fins-de-semana. Mortes? O silêncio de respeito, olhos bem abertos para perceber como estamos entregues mais às leis da natureza (entre elas a humana) do que à eficiência humana, e palavras medidas para não cair nem na letargia nem no pânico. Escrever sobre o futuro. Não tem interesse: virá amainar a tempestade e com ele virá a dor de perceber que os vícios permanecem e que daqui a dez ou vinte anos continuaremos a falar disso, com a única diferença de sermos menos. E contra isso não posso nada.
Como tal, passo para o plano do que posso fazer. Mal, muito possivelmente, mas posso. E se de repente à moda de Camilo me sentasse e escrevesse por dias ininterruptos. Já o fiz em 2007; nem causa nem resultado foram brilhantes. Era patente o desajuste a ser corrigido, pelo que o resultado não poderia ser outro senão ser muito bem enfiado no contentor do lixo em finas tiras. Seria fantástico se tivesse talento para criar personagens credíveis e enredo cativante. Não tenho. Por enquanto? A amostra Ana Paula saiu pobre. Mas suponhamos que o voltaria a fazer e a tentação é grande. Folha branca e escrever sem rumo, sem intenções de criticar fulana ou sicrano, sem vontade de defender qualquer causa ou ideia, sem pejo em melindrar quem está do outro lado. Pondo de lado a sensibilidade bloqueadora, que ao pressentir cada reacção, cada dano, cada benfeitoria na pele dos outros, me impede de avançar. Seria bom. Antes de mais, a ideia de ter dias seguidos para me espraiar, depois a disciplina para me obrigar a não largar as teclas nas páginas certas.
Resta agora a dúvida se devo usar o ímpeto na Quinta, ou abrir novo rumo, já que parece enguiçada. Se a lógica for a do bom senso: primeiro trataria do que já está começado e dá mais trabalho, depois viriam os rompantes. Aliás, razões práticas aconselhariam a não adiá-la por muito mais tempo. Pois. Mas não sairia do umbigo. Talvez dele desenjoe com vaipes de dias ininterruptos para tentativas de contos. Não sei, logo se vê.
Ontem também as Comezinhas foram 'visitadas' pelos bots. Presumo que tenha sido geral. Nas estatítiscas, tive as normais visitas portuguesas e um rol imenso de acesso supostamente a partir de países estrangeiros, que costumam ser pontuais, salvo uma que conheço e prezo a identidade da leitora.
É certo que a maioria do mundo foi varrido por este pesadelo da fragilização da democracia e que era previsível descida de categoria quanto ao carácter mais ou menos democrático do nosso País em função das medidas restritivas que vão sendo tomadas, mas era escusado termos acrescentado a redução dos debates parlamentares e o rocambolesco processo da nomeação do presidente do Tribunal de Contas. Como fomos dando nota nas Comezinhas em devida altura, aqui e aqui.
Infelizmente, nestas duas últimas matérias, Rui Rio teve um papel (negativo) importante. Eu que temo o regresso não de Passos Coelho, mas da entourage que o cerca, não posso deixar de lastimar que Rui Rio, a pessoa em quem tencionava votar nas próximas eleições legislativas, esteja a contribuir para cavar tamanho fosso na nossa democracia.
Do Governo, do seu desnorte autoritário, e da falta de oposição à esquerda já nem falo. São de tal modo evidentes os tiques totalitários que qualquer português que não ande a dormir dará por eles com toda a certeza.
Muito obrigada a quem me chamou a atenção para a notícia de hoje.
Bom, o facto do Presidente da Assembleia da República precisar de um grupo de trabalho para coordenar a vacinação no parlamento num universo de 230 deputados (não entro em linha de conta com funcionários e outros), leva-me a reclamar um gabinete de crise cá em casa para decidir o que é o almoço de amanhã. Quiça sujeitar a questão a um tribunal de arbitragem para dirimir conflitos insanáveis sobre a quantidade de sal na comida.
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Mais um texto sem predefinições. E o entremeio? As viagens não foram assim tantas, nem por sombras. Por cá as lutas normais. Trabalho essencialmente. Os primeiros 10 anos foram de inconstância, a saltar de poiso em poiso. A ver como funcionava mal o país. Inconformada, nos primeiros anos, batia a porta. Depois já não era inconformada, já saía abalada como um autómato adoentado. Em vez de eternas injustiças com que oiço tantos encherem a boca para se dizerem prejudicados, melhores ou mais capazes, vi sobretudo incompreensão. Falta de solidariedade entre parceiros. Falta de brio no trabalhar para um resultado comum. Brio, essa palavra tida como uma menoridade num país de chico-espertos. O país que se diz solidário e capaz de grandes gestos de vizinhança e apto de criar uma rede informal de generosidade com quem mais precisa, quando chega o momento de trabalhar é incapaz de perceber que faz parte da engrenagem e é preciso que conheça as regras e respeite o todo. Cada trabalhador por si, cada serviço ou departamento por si e o do lado, o outro sempre visto como fonte de todos os problemas, a menos que por razões que nada tem a ver com a racionalidade da actividade, prevaleçam afinidades ou simpatias. Desonestidade total traduzida na incapacidade de assumir os próprios erros. Sempre de dedo em riste a apontar as falhas existentes ou não do outro e dramática mão no peito com justificações miseráveis ou então puro escárnio para os próprios erros, quando era inevitável assumi-los. País onde se estranha ou se acha ingénuo uma comunicação banal com a indicação: por erro meu/nosso, tal não funcionou. Peço/pedimos desculpa. Segue correcção, seguindo a máquina oleada. Só quem não faz, não comete erros. Não, neste país, cada erro dá azo a um romance, a quezílias, ao recrudescimento de ressentimentos até à fundação. E o mais certo é que quem leia isto, diga: é tal e qual, e se lembre de meia dúzia de situações, colegas ou chefias, mas seja incapaz de se lembrar das calhandrices e pulhices com que escondeu erros que prejudicaram outros. Pode ser um dos muitos sábios que por aí perora sobre a injustiça e a mediocridade do País. É muito provável que o seja. Um desses sempre à espreita de deslizes de terceiros para poder fazer intriga. Um desses que se diz contracorrente, mas afinal capaz de fáceis juízos de valor e ideias preconcebidas. Dos que se diz descrente no homem, ao mesmo tempo que se socorre de rótulos extraídos dos títulos dos jornais e vai refazendo a história, substituindo velhos por novos lugares-comuns, mais apelativos para o restrito público eleito, que há-de propalar às gerações futuras a nova versão da realidade.
Seguiram-se 14 anos de maior paz. Ao sossegar de ânimos trazido pelo amadurecimento e natural conformismo, foi-se juntando a sorte de começar a aparecer um grupo de pessoas mais capaz de compreender que a remar para o mesmo lado se vai mais longe. Os problemas não deixam de existir mas são mais fáceis de superar. Não quer dizer que não exista ali ou acolá um exemplar com os velhos vícios. Gente normalmente pouco dotada, mas muito convencida das suas capacidades, azeda e desconfiada dos propósitos dos outros. Mas se o todo não se comportar assim, não há como medrar. As rotinas foram-se impondo naturalmente e a vida tornou-se mais fácil. A ver vamos como será o futuro.
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Volto ao exercício de escrever sem ter rigorosamente nada predefinido. Acabo de pousar os dedos no teclado num rasgo de iniciativa vago, inútil e não determinado. A ouvir River Flows in You, de Yiruma, que me faz lembrar os jardins do hotel de apoio à Disney, de Paris, e as gargalhadas soltas dos mais novos naquele ano de 2014. Ele e ela, nas idades em que ainda faz sentido rir a bandeiras despregadas com asneiras cúmplices, palermices e do formigueiro na barriga na montanha russa. Quando ainda se goza ao afinar o olho na mira da espingarda do faroeste. E se tem paciência empolgada para esperar horas na fila para o foguetão da Star Wars. De manhã e ao final do dia os sorrisos, alegrias e o piano levezinho a entoar esta e outras melodias de Yiruma, entre caminhos e o roçar assobiado do vento nos ramos das árvores. Músicas que mais tarde aprenderam no piano.
Recuo a 1998 e lembro com saudade satisfeita o dia bem passado na Disneyland, de Los Angeles, já com idade para ter juízo, mas felizmente sem ponta dele, gozando cada diversão, com gargalhadas no meio de calor abafado. Bem fazia apetecer as mui regadas montanhas russas e os aspersores de água, tão na moda à época. A desproposito cai-me na ideia a estante da casa que me albergou nesse Verão do ano de 1998; nela estava pousada uma garrafa de vinho do Porto que levara na mala junto dos pacotes do café Sical, bem essencial ao pequeno-almoço em qualquer parte do mundo, e entre outros livros na prateleira estava o Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago. Alguém o leu naqueles dias, não eu. E só vi o filme de Fernando Meirelles em Dezembro de 2019.
Parecem dois mundos: tempos e espaços distintos. Como pode ser rachado o mundo leve e descomprometido do contentamento e apartado de todas as privações e estragos humanos. Não fosse a memória e não saberíamos que as ondas do tempo desfazem e refazem momentos, como os antigos filamentos das lâmpadas, em aparente ininterrupto de corrente eléctrica, mas afinal intermitente. Será tempo e espaço inexistente? O dos risos alegres que contaminam o espírito, impedindo que jamais desanime por mais do que horas ou dias? Ou o do espelho das misérias e degradações humanas? Se já não se acredita na memória como elo de vida e sentido último, sobra acreditar em quê?
Vou ao álbum, fotografo a imagem sem qualidade do Walt Disney e remoo o desdém de muitos com estas manifestações simples e alegres da vida. Como se ser cínico ou perverso fosse o único atestado digno da inteligência e da erudição.
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