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Poema em Linha Recta
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.Álvaro de Campos
Um agradecimento pelas visitas aos pouquinhos leitores das Comezinhas e, muito em especial, um obrigada no feminino às leitoras que enviaram simpáticas mensagens a propósito do postal Sonhos.
Portugal tem um microclima muito especial, no qual as mais rasteiras ervas daninhas prosperam à conta da indiferença das pessoas de bom gosto. É confrangedor ver como matarruanos enfarpelados de verve fácil e aparentemente educada fazem o seu caminho de trepadeira social. Dizem-se muito estudados e convencem-se da sua razão e importância. Criam uma rede de relações baseada na conveniência, com um sistema de apadrinhamento mútuo. E ao desdenhar de quem algum dia teve peso na edificação do País, mostram uma dor de cotovelo indisfarçável. Às vezes, as críticas que fazem às elites de antanho até fazem sentido. Mas logo caem em saco roto, quando se percebe não passarem de vulgar cobiça. Não é a verdade, o conhecimento ou a decência que procuram, mas sim a cadeira.
A velha Nação caminha para os nove séculos e o trilho traçado pelas trepadeiras não muda. A inveja de quem esteve ou está bem instalado move nos alpinistas ódios de morte. Só os muito distraídos caem na esparrela de alinhar nos discursos de rancor dissimulado e nos jogos sujos para alcançar as cadeiras do poder e dos privilégios. Alguns, mais expeditos, confrontados com a constatação da sua pequenez, tentam inverter o tabuleiro do jogo e mostrar que a sua superioridade está no sórdido e na capacidade de subversão o sistema. Nesses casos, é ainda mais confrangedor ver ingénuos simplórios vindos das berças armados em Marquês de Sade, edição de bolso.
Desde que a pandemia tomou de assalto a realidade e se fala em livros e filmes cuja associação é inevitável - já lá vai mais de um ano -, tenho tentado lembrar-me do único romance de Camus que li. Acreditem que é difícil assumir – não pela vergonha ou constrangimento, mas sim pelo absurdo -, que a minha memória é de tal forma esdrúxula que consigo não ter recordações de livros que li e lembrar os que não li, como já aqui expliquei. Sei que em casa dos meus pais havia alguns romances de Camus. Pelo menos três: O Estrangeiro, que sei não ter lido apesar de ter começado; A Peste, que sei nem sequer ter começado e, finalmente, A Queda, que li. Caso único neste autor.
Tento reportar-me ao momento da leitura e não consigo sequer recordar se foi na adolescência, se já na casa dos vinte. Fazendo um exercício de lógica, suponho que vença a segunda hipótese, uma vez que apesar de quase não me lembrar 'da história', tenho a nítida ideia de que fiquei presa à forma de monólogo inteiro e da meia surpresa que para mim isso representou à época. Não porque não soubesse que se fizesse, mas por perceber que se podia fazer de forma tão conseguida. Ora, essas sensibilidades à forma e ao modo como os autores pegam na história creio ser coisa que só comecei a refinar depois da adolescência. De resto, lembro-me do vaguear pensativo do personagem central junto aos canais de Amesterdão, que associo à imagem de uma judia a patinar nos seus lagos gelados, desde que há dez anos li duas novelas de Manuel Teixeira Gomes.
Ler comigo é como ver novelas seguidas para aquelas senhoras que adormecem na primeira e acordam na segunda e misturam tudo: acabo a casar personagens e circunstâncias de uma das histórias com as do outro enredo. Mas o mais curioso é que o pouco que retenho do que leio raramente é a história em si ou a trama. O que tantas vezes me afasta de falar ou escrever sobre o que leio. Ligo-me a pormenores, imagens, momentos; faço associações a episódios reais ou ficcionais, a telas, a músicas, a pessoas. Enfim, uma salgalhada onde ninguém se entende, senão eu própria.
Pronto, este texto - nascido de um rascunho feito há algum tempo - continuava com mais observações que abriam com a frase: considero ler lido vergonhosamente poucos livros, mas... -, mas os considerandos seguintes eram fortemente críticos e hoje estou numa de paz e amor. Passei-os para outro rascunho e num dia em que regresse o mau feito – o que é sabido não deve demorar -, voltarei à carga sobre ler muito, pouco ou nada, vaidades e humildades.
Boa quinta-feira.
A propósito: 7 (sete) é o meu número favorito.
Também gosto do 3 (três). E do 1 (um). Bem vistas as coisas, não desgosto do 13.
Portugal é um país muito pequeno não sob o ponto de vista histórico e geográfico, mas das relações. Neste rectângulo com ilhas toda a gente trabalhou com alguém filho do dono da casa onde casou alguém que passou férias com alguém que disse mal de alguém e teve namoro com alguém que processou alguém a quem comprou alguma coisa herdada de outro alguém que encontrou no jogo de futebol com o primo de alguém que é sócio de alguém que esteve em casa de alguém que no restaurante comeu na mesa do lado de alguém que roubou alguém que encontrou no enterro de alguém onde animada e afectuosamente se beijam, abraçam e confortam todos os alguéns, antes de saírem aos pares a difamar os outros pares de alguéns que acabaram de beijar e abraçar, ao mesmo tempo que bradam contra a situação deplorável do país.
Em criança muitas vezes ouvi dizer a alguém que teria agora 105 anos que pensou escrever as memórias, mas escusou-se fazê-lo por saber que muitos se melindrariam e consigo se zangariam. Sorrio ao lembrar disto e tomo nota que a cada passo que alinho as letras umas atrás das outras, penso quantas delas seriam tomadas como ofensas se fossem ditas a direito. Mesmo como todas as cautelas e tentativas de subtileza, muitos se sentirão ofendidos.
Não sei se levada pela Lua Cheia se calhou, mas ontem dei comigo a planar em brandos pensamentos: que será feito daqui a quinze ou vinte anos das pessoas, lugares, escritas, ditos e sentidos que agora me preenchem os dias? Caminharão pelos meus sonhos? Tenho a sorte de ao fazer retrospectivas - e faço-as amiúde, apesar de não viver do passado -, dar conta que guardei sobretudo o melhor. Talvez por isso diga que os meus sonhos são tão povoados de lugares e pessoas como as telas de Bruegel – bom, apesar de tudo, os cenários são um pouco mais actuais. A dormir deambulo em constância por casas onde vivi e às vezes por casas por onde apenas passei. Além de passarinhar por espaços estranhos ou que só conheço dos sonhos, reencontro pessoas que conheci desde a infância. Na maioria vivas, algumas já desaparecidas, outras nem sei se respiram. Conheço algumas apenas dos sonhos – ah céus, sei que está longe de ser ideia nova, mas dormindo hei-de agarrar com ganas os sonhos até os confessar de modo a escrever coisa que valha a pena. Em regra, são sonhos bons ou pacíficos. Às vezes, lá sinto uma ou outra aflição nestas minhas gentes do passado vivido e sonhado. Raramente são pesadelos, apesar de ao surgirem serem de truz.
Desde há muitos anos sonho ocasionalmente estar numa divisão de uma das casas onde vivi ou por onde passei e ao atravessar a porta ou parede já me ver noutro compartimento doutra casa. À medida que o tempo passa os sonhos vão incorporando mais paredes, mais janelas, portas, ruas, campos. A vista da janela pode ser de uma cidade, mas a rua para onde dá a porta ser de outra. A maioria das vezes, esses são cenários puramente oníricos, mas há ocasiões em reconheço estar numa das casas reais por pormenores mínimos: os vidros foscos martelados de início de século da despensa ou do corredor de Valinhas - casa não especialmente bela, mas geométrica, de hera a meia haste, sem qualquer pompa e fanada de tinta nas paredes. O meu paraíso. Vou pescar as cenas dos meus sonhos às memórias, das mais recentes às mais longínquas. O jogo de cubos empilhado na caixa que faz as vezes de mesinha cabeceira. Os mosquitos mortos a chinelo na paredes do apartamento em Troia. As tábuas corridas do chão. A cadeira de escritório de napa preta de costas para a janela da avenida de Gaia e a campainha que toca. Ou o tupperware laranja guardado no segundo armário cor de salmão da cozinha. Os três lanços de escadas do apartamento em Cacilhas. O chuveiro já sem água no terraço da casa de Pedras d' El Rei. A vista do quarto para o plátano e o pátio da urbanização em Gaia. O chão de cerâmica clara por onde rolam dispersas as missangas cinza do colar partido. A ampulheta em cima da camilha redonda. O pau de giz, a chaminé a o leite do gato na velha casa transformada em centro de estudos. Duas mangas verdes na cozinha de Benfica. O menino Jesus no Natal no lugar habitual do telefone junto à pequena janela que dá para o Douro e os reclamos das Caves de Vinho do Porto. As plantas penduradas por cordas ao tecto junto às escadas e a cama que sai da parede na Covilhã. Ou o esqueleto nu das tílias trespassado pelo luar no Inverno. A janela sem cortinas em Arca d’ Água, palavras por dizer no sofá e a mini televisão de dez centímetros que acabou em Angola. Nas Antas, os decalques do quarto mais pequeno lá em cima, os sustos nas escadas da cave, o cheiro na copa vindo das gavetas com roupa de cama guardada ponteadas aqui e acolá de saquinhos de alfazema. A varanda sobre o parque de campismo em Lagos. Quatro cadeiras de ferro e a mesa com tampo de pedra manchada do ambientador vertido por descuido na casa com vista para a Segunda Circular. O cheiro a estrume nos campos - sim, nem só da maravilha de cheiro a terra molhada, eucaliptos e madressilva se faz o campo, a mata e os jardins. A nespereira a crescer no parapeito da janela dos arrabaldes de Lisboa. O velho armário com portas de correr na casa das portadas ainda perpassadas com disparos centenários do lado sul do rio. O piano na janela de João Grave. O interruptor alto e solto no átrio do mínimo apartamento em Sacavém. O cheiro a lenha queimada a crepitar na salamandra e o aroma da arrecadação comprida onde se guardavam as maças nas prateleiras e as batatas do lado de lá – a esse espaço dedicarei memória escrita na Quinta. A gaiola do hamster na lavandaria em Vila do Conde e as conversas vindas da cozinha. Ou o bruaá do estádio do Bessa. Um momento único da vida em que, talvez por esta permanente andança, me insurgi contra as mudanças de casa, afirmando que queria ficar quieta. Não foi com certeza um momento que me definisse, pois que as mais das vezes sempre tive vontade de partir ou mudar. Apesar de não partir para longe nem muitas vezes nem por muito tempo. Por vezes, sonho com os lugares e as gentes das viagens. Mas não é muito comum. Acredito que quando for mais velha, essas memórias venham em força. E também em forma de sonho.
E como é que as pessoas que conheci me chegam aos sonhos? Tão só por me lembrar delas. Guardo os rostos dos meus colegas da escola primária e das irmãs professoras. Da cozinheira, cujo nome está entre o esquecido e debaixo na língua. Sentava-se na soleira da porta ou nas escadas a descascar as favas. Era magra e vestia sempre de preto, apesar de muito nova. Enviuvou cedo. Lembro-me do sorriso do F. e das suas aflições com a asma - também o F. lá de casa as tinha -, das fúrias e das brigas com o Z.R., das cópias do caderno da I.P., com a letra muito bonita, alinhada e sem rasuras, das meias e dos chinelos da C. Lembro-me do baque e expressão na cara da F. ao ver o mar pela primeira vez na Nazaré, quando lá fomos em passeio escolar. Lembro-me dos casamentos na escadaria. Do terreiro, dos baloiços e do escorregão e da torneira da água rente à parede e do tanque. E, claro, da enfermaria e dos curativos. Da sala do jardim-de-infância e dos colchões e caminhas de grades. Das paredes da sala da quarta e segunda classe. Das prateleiras de madeira no cantinho forradas a oleado, que albergavam os livros, e que me calhavam - acho que escolhi a tarefa -, limpar o pó. Sim, heresia das heresias: na escola primária da Misericórdia de quando em vez os alunos mais velhos davam uma ajuda na limpeza. As mesas eram limpas com Vim em pó e esfregão. Tínhamos de ter cuidado de não raspar o autocolante com a imagem no canto do Papa João Paulo II, que será sempre o meu Papa - todos tempos um, suponho. Lembro-me da carinha de bebé e da bata aos quadradinhos azul e branco do B., que estava no infantário quando eu andava na quarta classe - uma das minhas batas era amarelo claro e tinha um folho no peito, e usava o estojo redondo vermelho e preto em forma de joaninha. Lembro-me de cantarmos as músicas das Doce nos recreios. Dos buxos dos jardins da frente, dos peixes, da capela, do portão e das cambalhotas dependurados nos ferros que o trancavam.
Tal como me lembro das casas que albergavam o ciclo preparatório e liceu de Felgueiras, de muitos dos meus colegas, professores – da professora Dulce Moura, uma velha senhora que sobrevivera a um cancro difícil e nos dava ciências - e funcionários - lembro-me da velha Rosinha, que parava a vassoura para me chamar e consultar de perto os pontos de tricot das camisolas que eu trazia vestidas, para tirar ideias. Recordo mais ainda dos cinco anos no liceu de Gaia. A Biblioteca Municipal e os cafés – ainda hoje não faço grande diferença entre café e biblioteca, locais onde aprendi por igual, suponho. Do Glass e as almas e as conversas que os habitavam. E depois da faculdade, que em sonhos nunca acabei: falta sempre fazer um qualquer exame ou vários. Como todos nós tenho um baú enorme de recordações. Que se estendem pela dezena de locais de trabalho por onde passei e das pessoas que os povoavam. Vivências díspares entre si. Desde a chegada no primeiro dia ao primeiro Banco, onde assim que cheguei encontrei no edifício um conhecido por piso, até à estranheza e distância total de ambiente e gente que envolvia outro qualquer emprego. E os lugares e ocasiões de convivência: as reuniões familiares alargadas, as festas, as saídas à noite, os cafés e as conversas com os amigos, os bares e discotecas, alguns concertos. As praias, sobretudo, as de Lagos e as noites nas suas ruas. Todos estes lugares e gentes, que na grande maioria não voltei a ver, visitam-me quando durmo. Em paz, gosto de os rever. Há ainda os espaços online, onde conheci gente real ou virtualmente. O facto de não haver presença física, não invalida que me entrem nos sonhos e se instalem com a maior das naturalidades. Agora, em perfeita comunhão com todo o passado e presente.
Puxando mais para ali ou acolá, tudo isto é comum a grande parte das pessoas que vivem o tempo presente. Aliás, há imensa gente com existências muito mais preenchidas e ricas, até porque na verdade sempre levei uma vida bem caseira e pacata. Nada de novo, portanto. A não ser a pretensão de achar que por ser reservada, atenta aos outros, a mim e a muito do que nos rodeia – e absolutamente distraída do tanto que me poderia conduzir a uma vida mais fácil e exemplar, mas certamente menos minha -, posso um dia vir a escrever qualquer coisa de jeito sobre aquilo que quem conheci e eu vivemos, vimos e sentimos.
O lamentável e condenável episódio da agressão ao repórter da TVI em Moreira de Cónegos vai dar azo a semanas da ladainha anti portista do costume. À usual conversa de ódio clubista. Com todas as tretas ressabiadas a que estamos habituados.
Pelo que percebi houve crime. Então, que se accione a Justiça e se processe o imbecil. Se for caso disso, que se questione a passividade do Presidente do Futebol Clube do Porto ou de outros elementos da estrutura do clube. Mas não me venham com o palavreado e historietas do costume de Calimero injustiçado.
Tanta choraminguice só devia envergonhar quem procura justificação para os próprios insucessos passados.
Onde há proa e vileza não há inteligência nem educação.
Registo a vontade e o à vontadinha com que muitos (imagino que a coçar aquilo que virtualmente fingem ter) insultam Ursula von der Leyen, sem um átomo de admiração: é só estar atenta à grosseria habitual tantas vezes camuflada de falsa civilidade.
E sim, sei que fui grosseira no parêntesis. É o mínimo que posso fazer face ao nojo que provocam alguns comentários lidos desde ontem. Além do que é a única linguagem que alguns espécimes entendem.
Já me sentia desfasada da realidade ao ouvir o discurso do medo e de denúncia permanente e persecutória dos (alegados) maus comportamentos em tempos de pandemia, mas nos últimos dias sinto-me ainda mais extraterrestre ao ler que cerca que 100 mil portugueses fizeram o auto-agendamento para vacinação logo no primeiro dia e ao ouvir nas televisões que estão muito ansiosos ou nervosos.
O ímpeto é o mesmo que leva o Governo a gabar-se de ser o mais rápido a estender a mão à Europa na pedinchice.
Estão bem uns para os outros, governados e governantes.
O que dizer do dia de hoje, na companhia de Alicia Keys? Tranquilo, salvo o episódio da corda do estendal. É impressionante como o cérebro pode embrutecer depois de uma frustração. Estava tudo encarreirado, perfeito: já no ponto final. Só faltava o nó. E eis que um mau passo, estraga tudo. Depois para refazer o processo, o corpo já não responde: os neurónios solidificam, negando-se a comunicar entre eles. Na desistência, dou meia dúzia de nós mal atados, embrulho o desarrumo e fico à espera que um módico de inteligência e serenidade volte ao espírito.
Entretanto o Portinho espalhou-se com o Moreirense. Bah.
Só valeu como segundo dia de contenção. Aí, correu tudo conforme me tinha imposto. Só faltam quatro meses.
Rua de Álvares Cabral, Campo (Praça da República), Rua da Boavista e Carvalhosa (Rua de Cedofeita).
Quando publiquei o Espanador sobre a Índia, julguei que iria escrever de enfiada os remanescentes três textos em falta. Sucede que à Índia seguia-se a China e, depois de me aventurar sobre as terras do extremo oriente, de duas horas de leitura e uma hora a tentar rabiscar qualquer coisa, cheguei à inevitável conclusão que não vou conseguir publicar novo texto no Espanador esta semana. Com tempo, ele virá.
Atravessou o jardim no passo decidido de quem tem pressa em mostrar-se triunfante, no momento em que o João, sentado no banco de jardim de perna cruzada, dobrava meticulosamente o Independente já lido, pousava-o e, reservado, levantava os olhos. Assistia ao movimento de mulher ousada. Com gestos precisos ela afastava qualquer empecilho, provando ser capaz de traçar o próprio caminho, longe de sinas de vida dura. Nada contida, de corpo elegante e bem delineado, balançava afinada os braços a cortar a brisa amena e marchava decidida, com coluna bem erguida, peito alçado e movimento de anca livre. Um manifesto de liberdade. Magnífico exemplar do 25 de Abril, concluiu João, ao acender o SG Gigante, e logo desviar o olhar para o velho e quebrado homem a invectivar o grupo de adolescentes com quem acabara de se cruzar e que, além do despropositado coro de vernáculo, audível em todo o jardim, atirara à água três ou quatro latas de refrigerantes, agora juntadas à garrafa de superbock no fundo do lago. Mais logo o Alcino limpa, pensou. Desde 1969, varria e recolhia o lixo no centro da cidade. Estreou-se ainda em ditadura e assim permaneceu, sempre. Este ano, Portugal vai à final do euro, pela primeira vez na história do futebol, e o Alcino reforma-se, divagava o João. O vermelho das latas de coca-cola, bem visível no fundo da água, na madrugada seguinte seria mais difícil de distinguir, já fora laranja das latas de sumo Kas, ou do azul dos invólucros do capri sonne. Com o passar dos anos era indiferente, só custava mais no inverno, quando a água estava mais fria e suja. Pedia ao destino não aparecessem bichos maltratados ou mortos. Era uma recolha sofrida. Revolvia as entranhas por mais madrugadas passadas. Contara isto ao João em tardes de amena cavaqueira no banco de jardim.
Depois de acenar ao Alcino, cumprimentando-o, voltou a olhar na direcção oposta, viu a Ana Paula desaparecer depois de subir os poucos degraus da câmara municipal, para cumprir o horário da tarde. Esquitécia, a palavra assomou no seu pensamento no tom morno e doce da Constança. Assim se referia a mulher à Ana Paula, quando em casa conferiam o dia. Era a única pessoa a usar o termo. Nem sequer constava do dicionário. O João matutava se teria relação com a sesquitércia da matemática. Não sabia, mas achava adequado. Ainda assim, defendia sempre a figura central: não há rã sem girino, dá-lhe tempo. Ai, não tenho dúvida, é mesmo uma questão de tempo. Tens razão, dizia a Constança. Antigamente, nós dávamos tempo, três ou quatro gerações, muita fé e paciência. Mas o mundo hoje é outro. O tempo está para gente sem dúvidas nem educação. Irá longe num ápice, os outros nem por isso, vaticinava. Estava envolvido no pensamento da mulher, quando a filha se aproximou, carregando o caderno novo de capa florida, onde esboçara o primeiro início do livro, e perguntou a cor dos sapatos da Ana Paula
(Escrito de Abril de 2015 a Abril de 2019.)
Dois anos após as almoçaradas do Outono de 2014, os habituais convivas juntaram-se na Casa Agrícola, junto ao Mercado do Bom Sucesso, para festejarem a chegada ao governo da protagonista. Tal como previsto nas estrelas, a Ana Paula fora convidada a integrar o governo como secretária de estado da administração pública. Fez o infalível trabalho de casa. Um ano após a participação na Entrevista da TVI, no final do ano de 2015, mudou-se para Lisboa. Em rigor, e como vaticinara o Luís, fixou-se no Estoril. A mudança fez-se a pretexto do convite para integrar o grupo de reflexão sobre a modernização administrativa e a reforma do estado, para o qual foram canalizados fundos suficientes a gerar sete novos postos de trabalho no ministério das finanças e da administração pública. Sete novos postos de trabalho, bem remunerados, para se reflectir a futura reforma do Estado que, eventualmente, passaria pela sua redução. Comissão da qual, no final e como seria expectável, saiu apenas um sound bite, baseado em estudo na União Europeia, o qual atesta haver menos funcionários públicos em Portugal do que a média europeia. Razão dos dois pareceres emitidos. O primeiro no sentido de reforço de pessoal em áreas específicas dos serviços do Estado, com sinais de ruptura. E o segundo a calendarizar as medidas concretas de admissão de novos funcionários para daí a quatro anos. Sobrepunha-se o mais conhecido imperativo orçamental de todos os tempos: o almanaque eleitoral. E a pretexto de tão aturadas ponderações e conclusões, a Ana Paula viu resolvida a sua particular situação material, e encetou o trilho partidário a nível nacional. Fora presença notada no congresso da Feira Internacional de Lisboa, em Novembro de 2014. Fizera parte das listas da comissão nacional, garantindo a eleição, no ano seguinte, para a Assembleia da República, como cabeça de lista pelo círculo de Aveiro. Em tempo recorde, porque já não estamos no século XX, quando tais percursos demoravam dez ou vinte anos a ser feitos, em tempo recorde, escrevia a Margarida, a protagonista palmilhou o trilho do poder, transformando-se numa figura de relevo nacional. Chegara ao poder central, de onde tudo passa a paisagem a modelar ao gosto dos caprichos de provincianos deslumbrados. Cumpria-se a história do país dos últimos séculos.
Na capital, rapidamente se adaptou à teia de relações que interessam a quem tem pretensões de poder. Tornou-se amiga chegada e pretensa discípula de figura maior do partido, uma mulher inteligente, arrivista e azeda, com preparação académica e percurso de vida que faria adivinhar melhor futuro. Nos últimos dez ou vinte anos, ao entrar na onda de ditames contra a realidade, e do novo e empolgante conceito de história e factualidade errada, fora perdendo o controlo sobre opiniões ou princípios defendidos, e traída pelo próprio azedume e ressentimento fora engolida pelos slogans apregoados. Como previsível o mundo do moderninho consumira-se a si mesmo. Por falta adesão aos factos, o politicamente correcto entrara em autocombustão.
Em pouco tempo, a Ana Paula aproximou-se, percebeu as fraquezas e, estrategicamente, deixou-se ficar como figura de segunda linha, até ter a certeza de ter aprendido a arte de fazer política. Teve de estabelecer as relações necessárias, estreitar os ódios convenientes e aprimorar o discurso de demagoga. Teve de polir todas as arestas de mulher de paixões e opiniões. Aprender a defender as que rendem likes no Facebook e seguidores no Twitter. A moderninha daria lugar à ditadorazita de Espinho. Afinal, a protagonista era uma mulher do seu tempo e tarde ou cedo mostraria ao país a razão de déspota se escrever no feminino.
A Margarida reflectiu sobre a última frase escrita e sentiu aproximar-se o final do livro. Folheou-o. Queria tranquilizar-se. Estar certa do problema não estar na ascensão ao poder por gente vinda da província, mas sim a ascensão ao poder de quem traduz cosmopolitismo pela ideia superioridade da cidade, enquanto núcleo do poder e das relações que interessam. Por espíritos provincianos, oriundos da mais recôndita aldeia do país ou de qualquer avenida lisboeta. Já nos chegava a visão estreita e pacóvia das elites das gerações anteriores, que não diferenciavam ser cosmopolita do bajular de correntes de pensamento estrangeiras e, por isso mesmo, se sentiam envergonhadas do país onde nasceram, como temos as novas gerações de deslumbrados e deseducados, a afiançarem a ideia de que ser cosmopolita, é ser moderno, urbano, abusar das novas tecnologias e defender de forma militante o apagão da história; a tal que explica o nosso estágio de civilização.
Eterna ingénua, ansiava por velhos e novos ascendidos à nata do país cientes de não haver cosmopolismo sem o respeito por quem habita o universo, venha de onde vier. Sabedores do princípio íntimo do começo do universo. Vincava a ideia da necessidade de se ter mundo. Fazer parte do universo e respeitar-se a si e ao outro é mais difícil do que parece, dispensa a sobranceria pacóvia dos velhos privilegiados e impõe o conhecimento e compreensão dos factos da história desprezado pelas novas elites. E feita esta consideração, não sem antes rir da conclusão tirada, como qualquer outra resposta descabida na literatura, foi à pasta dos meus documentos procurar o primeiro início do livro que pretendia escrever, mas ao qual não dera continuidade, por se ter perdido a contar a vida da protagonista e outras personagens. Ainda assim decidiu, tal como tinha anunciado ao Vicente, valer-se do esboço inicial e passá-lo para o epílogo. Copiou e colou o texto. Trocou o título, apagando Ana Paula e escrevendo O Livro dos três Princípios. Simplificou, limpando as considerações inúteis sobre a evolução política dos últimos cinquenta anos, e sorriu ao ver novamente da cena triunfal da Ana Paula, a atravessar o jardim, calçada de revolução. Aí estava o terceiro princípio do livro.
A decisão de participar, em 2014, na Entrevista da TVI foi de iniciativa própria e contra a opinião dos amigos de partido. Serviu de trampolim para a entrar em cena na vida pública a nível nacional. Em casa teve o apoio total do Orlando e da filha mais velha, e a desaprovação da mais nova que, desde cedo, viu a mãe e a irmã comentar os sucessivos big brother nas redes sociais, mas via com maus olhos a exposição da própria mãe, em programas odiados por pessoas de bom senso. A Mariana estava longe de ter herdado a astúcia da mãe. Com aguçado faro político, a Ana Paula sabia que ser ouvida, notada e reconhecida era essencial. Sempre fora seduzida pelo poder e sabia bem como o alcançar. E a participação no reality show A Entrevista, como para muitos outros aspirantes a políticos a aparição em debates no mundo televisivo ou virtual, foi um passo decisivo na caminhada da política da nova era.
Mas nem tudo foram flores, a nova visão ambiciosa não era comungada por muitos no partido. Tal como a Mariana, consideravam vergonhoso tomar parte desse mundo. Uma coisa seria a desejável participação em debates televisivos, outra a exibição da vida em directo. A Ana Paula contrapunha tratar-se de vozes do Velho do Restelo e que só em Portugal se pensava de forma tão senil. Custava-lhe ter uma filha antiquada aos vinte e um anos. Uns anos mais tarde, em defesa daquela participação televisiva, tentava dar exemplos de outros países, mas só ocorria o Trump e percebia não ser boa ideia trazer o personagem às discussões. Declarava-se mulher desempoeirada, sem nada a esconder. Achava perfeitamente normal mostrar-se a si e à sua vida aos portugueses para que pudessem saber o que contar. Não estamos no tempo das trevas. Já não é preciso esconder o corpo, a vida e as ideias, dizia. Vivemos num país livre e isto sim é liberdade. Devemos mostrar como somos e a forma de pensar, acrescentava.
A Mariana tremia transida com estas frases. Mais? Mostrar mais, ainda? Olhava à volta e via os colegas na faculdade a mostrarem como pensam e são, via os professores, os funcionários, as pessoas nos restaurantes, nos supermercados, nas estradas, nas praias, nas salas de cinema. Desejava tanto que reservassem um pouco o que pensam e são, e dessem espaço e oportunidade à expressão dos outros. Ou, simplesmente, houvesse algum silêncio. A direcção nacional do partido também viu, por razões diferentes das da ingénua Mariana, com maus olhos a participação de uma militante em funções autárquicas no reality show. Se antes a Ana Paula obtivera sinais a nível central de eventual lugar destacado nas listas ao próximo congresso, a direcção do partido, por altura da exibição das primeiras entrevistas na TVI, arrepiou caminho e considerou retirá-la das listas. O apoio tido de antemão estava comprometido. No partido instalou-se o medo de ser confundido com big brothers. A razão principal do volte face teve origem, sobretudo, no gozo demostrado pela elite de comentadores de Lisboa. A chacota versava sobre o provincianismo de Ana Paula, que apesar de muito tentar não conseguia disfarçar a pertença e identificação com a sua terra. Como é sabido, comentador ou político que se preze, faz questão de se mostrar cosmopolita, apesar de frequentemente não ter a mais pequena ideia do que isso seja. E uma das formas de se demarcar do passado recente é destratar o resto do país e as suas gentes, até as mesmas migrarem, como eles ou os ascendentes fizeram, e transformarem-se em prezados amigos de sempre na capital.
Na caminhada até Lisboa, a figura principal atravessou vários níveis de provincianismo. O próprio, traduzido na pequenez de espírito e na vontade de ser diferente, de se aproximar da imagem de sofisticação vista nos colegas de partido, elementos de grupos restritos de interesses. Mas também, e ainda, numa reminiscência de adolescente: a eterna vontade de se aproximar da imagem transmitida na televisão ou, nos tempos modernos, nas secções de lifestyle dos portais virtuais. E o provincianismo dos outros. Dos ascendidos ao degrau da escala dos que contam e riscam. A protagonista saloia enfrentou, então, os provincianos intelectuais já instalados. Bajuladores de universidades fora de fronteiras, onde estudaram por breve período, e onde tiveram o prazer supremo de se cruzar nos corredores com autores de livros que só conheciam das prateleiras, a quem começam a imitar os tiques. Deslumbrados a abrir fileiras de discípulos dentro do país, entre estudantes nas faculdades onde têm aulas ou apenas por cultivarem a vaidade pacóvia do clã por terem lido meia-dúzia de excertos de textos ou visto uma entrevista na televisão. O importante é cada um fazer questão de se mostrar superior ao anterior, nem que seja à custa de muito calço de intrujice. É a matrioska da vanglória. Cada degrau de vaidade faz questão de espezinhar a vaidade do degrau anterior.
A palermice não grassa só entre os intelectuais. Em regra, Portugal ainda não se libertou do medo da colagem à imagem do saloio. Tal induz os portugueses mais informados, e supostamente mais cultos, numa saloiice mais perniciosa para a afirmação do país: a bajulação do que é estrangeiro ou novo, em detrimento do português ou antigo. O cunho português ou o tradicional, salvo a excepção de ter tido elogio estrangeiro, é sempre referido em sentido pejorativo.
Daí permitir-se passar em horário nobre da televisão, sem qualquer registo de desagrado, reparo tonto de personagem de origem britânica sobre o carácter terceiro-mundista do Porto, num tempo em que ainda não havia hotéis e restaurantes padronizados ao gosto do turista plástico. E reproduzirem-se os que aderem ao novo-riquismo de quem, no modernismo endinheirado do cliché, nunca chega a conhecer a alma da terra pela qual passa, nem a sabedoria das suas gentes. Há uma expressão portuguesa antiga, a fazer cócegas na inteligência dos mensageiros da sofisticação, que a catalogam de rústica, usada restritamente para caracterizar gente parola, presente em qualquer parte do mundo, com pretensões a ser civilizada: piolho em camisa lavada.
Enfrentou sobretudo o provincianismo dos comentadores e humoristas virtuais e televisivos com audiência, que enchem o espaço da comunicação social de salmos politicamente correcto, disfarçados de mínimos civilizacionais. Como se o respeito pela vida e pelo próximo, fosse inverso a factos menos in ou menos fracturantes. No espírito destas almas educadoras do povo, na dúvida a escolha será sempre contra a realidade. Têm total desconsideração pelo tecido social português, absoluta ignorância sobre a inteligência nacional, sempre menosprezada, sempre desdenhada, ou porque é de direita, e num país de esquerda há quarenta anos, ser de direita passou a ser sinónimo de acefalia, ou é civilizada, num país em que se confunde democracia com grosseria, ou não é de Lisboa, num país de migrados, envergonhados das origens rurais e deslumbrados com a luz da grande cidade, que não os parece iluminar, ou não tem formação académica superior, no país de licenciados e mestrados analfabetos, mas cheios de si.
Ao contrário do previsto pela direcção do partido, a saloiice da Ana Paula foi sua sorte e o seu triunfo eleitoral. Os portugueses deixaram de se rever em provincianos disfarçados e enfatuados. Começam a preferir os genuínos. Afinal, para quê votar em políticos falsos, quando os originais passaram a ter condição elegível. Contra as expectativas da direcção do partido a Ana Paula ganhou os cem mil euros do concurso e passou a ter notoriedade e estatuto suficiente para ocupar o lugar de cabeça de lista pelo círculo de Aveiro. Escolha muito contestada dentro do partido, mas revelada certeira, face ao bom resultado num círculo eleitoral dominado pelo PSD.
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