Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Aos onze ou doze anos, falho sempre a memória por doze meses, tinha na mini estante vermelha que fazia a vez de mesinha cabeceira livros e cubos. No tampo um candeeiro e uma boneca pirosa de loiça, que uma amiga do ciclo me deu no aniversário. Todos devíamos ter direito a ter uma ou várias peças pirosas de estimação. Dizem-nos quem somos e a todos cedo ou tarde foge o pé para o chinelo. A avó Adelaide, que não era avó nem bisavó, mas sim tia-bisavó, confessava à sobrinha e amiga que tinha pena de não poder gostar de coisas pirosas. Era uma mulher inteligente. Dizia o Pereira, sogro do Carvalho da Lama, que encabava todos menos a senhora dona Adelaide, o homem mais difícil que conheceu em negócios. Na prateleira do meio estavam os livros, à época já espécie de memória dos primeiros tempos - é engraçado como aos onze ou doze anos já podemos ter passado, mas de facto temos. Eram os primeiros livros, onde comecei a juntar as letras, uma colecção colorida em fundo azul escuro e letras e desenhos a vermelho, amarelo, verde, branco e delineados a preto. A ideia: introduzir as crianças ao mundo. Recordo as palavras: viagem e avião. Foram as que ficaram registadas. Havia também um pequeno livro de argolas em tons de castanho, dourado e amarelo que ensinava o processo da fecundação e da multiplicação das células dentro do óvulo. Vendo agora à distância constato que foi uma bela apresentação ao mundo. Além desses lembro-me de lá repousar a Sissi, Imperatriz da Áustria, o primeiro livro que comprei com dinheiro meu, e os Bichos de Miguel Torga. Na prateleira de baixo: os cubos com as figuras tão desvanecidas que não se reconheciam os motivos. Sei que lá estavam porque na noite da morte do avô, depois do telefone tocar com a notícia, arrumei-os vezes sem conta naquela presumo meia-hora atordoadora em Valinhas. Encastelei-os e desfiz o castelo algumas vezes enquanto tentava conter as lágrimas que ainda assim corriam. Pouco depois estava no andar de cima a ajudar a Eca a arrumar o corredor e a salinha onde ficaria o avô no dia seguinte para as despedidas da família e amigos. Era preciso organizar e arranjar espaço. A minha primeira morte. Apesar dos enterros a que já tinha ido nenhum deles me fizera sentir a morte. Tinha doze anos, lembro-me agora. À altura fazia um pouco original trabalho de fósforos com a Ponte D. Luís para a disciplina de Desenho ou Trabalhos Manuais – recordo-me por ter chocado colegas de Liceu ao ter ido às aulas na manhã seguinte à morte do avô. Aquela morte sim, era verdadeira: o avô que vivera em sofrimento com enorme e bem audível dificuldade respiratória provocada por duríssima asma e nos últimos anos já padecendo de demência, fora uns dias antes para a Casa de Saúde da Boavista e lá, entubado e rodeado de familiares, sucumbiu. Desconfio que a certeza da avó de querer morrer em casa teve a ver com aquele momento. Até na morte devíamos poder ser senhores de nós mesmos, ainda que isso se consubstanciasse apenas em escolher morrer sem tubos, nem paliativos ou palpites.
Alguns verões antes, no alto dos nove anos, e aqui não erro por doze meses - sei que acabara a primária quando essas férias deram entrada -, li a colecção inteira Os Cinco de Enid Blyton. E naquele tempo assumi intimamente que mais ninguém poderia saber ser como a Zé. Com o Ritz, em vez do Tim, também houve um Tim que teve morte trágica, percorri a quinta vezes sem conta a devanear com um mundo onde imperava a independência e a aventura, fosse o que isso fosse. Podiam ser apenas três horas sem que ninguém de mim soubesse, e fossem passadas sentada num penedo no meio da mata a ouvir o rugir da casca dos eucaliptos contra o tronco, ou das lagartixas nas folhas secas, ou mesmo na expectativa e no medo de ver a cobra que tinha largado a casca na rocha do lado, ou a atravessar o campo do milho alto, que cortava a pele dos braços, ou à espera que o Ritz saísse da represa, onde nunca entrei com medo de ficar atolada na lama, que me parecia areia movediça de um qualquer filme. A bater bolas com a raqueta de ténis na parede da eira. Ou na velha casa da Agra, abandonada com a fachada cada vez mais fanada das lousas em forma de escudo e perigoso soalho, ou resto dele, tais eram as falhas das ripas. Poucos anos depois já não era possível lá ir. Mas quando ainda dava saltitava de tábua em tábua com a pequena vertigem dada pelo medo de cair no rés-do-chão, no lagar. E o terraço, com vista sobre a eira e Valinhas. Aquela casa era o fruto proibido: aquele terraço não nos pertencia, mas dele nos víamos. É sempre assim: vemo-nos melhor do terraço do vizinho. Visto à distância, o eirado equivalia às ameixas que protegíamos dos outros. O fruto do vizinho é sempre mais apetecível do que o nosso. Assim vemos as nossas pequenas fragilidades, os nossos pecadilhos.
E na mesinha cabeceira por volta dos onze ou doze anos vieram parar os Bichos e os Novos Contos da Montanha, de Miguel Torga. Ficaram instalados ali, ao lado do avião e da fecundação e da multiplicação das células do óvulo dentro do útero. Dos Bichos não ficou memória, suponho que a ligação com os ditos era tão banal e palpável que não cabia nas letras de adulto ou então, simplesmente, não percebi. É o mais provável. Mas lembro-me do susto do abafador. Acho que abri e fechei o livro várias vezes: abria, lia, relia e, logo de seguida, fechava o livro com medo de ter percebido. Ainda hoje estou para saber o que terei entendido à época. Lembro-me do medo e do fechar e abrir do livro como se tapasse os olhos numa cena mais violenta de sessão de cinema e entreabrisse os dedos em manifesta curiosidade. O Alma-Grande e Fronteira faziam parte do programa de leitura e presumo que, por isso mesmo, tivesse feito esforço maior de compreensão. Quando crianças estamos mais despertos, somos mais espertos. Pena que com a idade perdesse a vontade de aprender o que fazia parte dos programas. Da leitura do Fronteira nessa altura e da viagem ao sul de França através de Espanha e com um salto a Itália, deve ter vindo aquela certeza de que os países tinham princípio e fim, de forma que quando o professor de religião e moral perguntou à turma se era melhor um mundo com fronteiras ou sem elas, a turma inteira respondeu em uníssono sem e eu com, sozinha. Absoluta e terrivelmente só.
Os livros da Colecção Azul estavam na singela prateleira de pinho também pintada de vermelho na parede dos pés da cama, a uma altura que me fazia precisar da cadeira para subir e de esticar os braços. Dessa colecção recordo sobretudo de chorar baba e ranho com O Pequeno Lord. Dizem-me que aos seis ou sete anos me perguntaram de que cor queria decorar o quarto, e que respondi: vermelho. O que atesta o grau de mau gosto que tinha enquanto criança. Felizmente, pouco mais tarde aderi em força ao azul e amuava se o cabo da escova de dentes não fosse azul. Mas não me lembro de alguma vez ter gostado do Benfica, o que confirma que não confundia realidades nem se trataria de mau gosto total. Na dita prateleira estava o grande livro da Bíblia, uma edição juvenil ilustrada, e a Colecção Azul. Além das passagens dos Evangelhos dos meus irmãos - os pequenos livros de capa azul celeste que suponho terem-lhes sido dados por ocasião da comunhão e a que não tive direito, fui lendo os episódios daquela Bíblia com alguma curiosidade, mas não com o terror com que li numa também ilustrada que havia na Escola da Misericórdia, onde fiz a primária entregue aos bons ofícios das irmãs de São Vicente de Paulo. A mãe e a avó não as consideravam. Não eram Doroteias e como se sabe à falta do Sacré Coeur, as Doroteias são como os Jesuítas a nata intelectual da Igreja. Os educadores da família. A Bíblia ilustrada da escola tinha a imagem do quase sacrifício de Isaac e a ideia de se sacrificar um filho fosse porque razão fosse não me cabia no cérebro. Acho que aquela imagem foi a semente do meu ateísmo que durou mais de vinte anos. No resto da infância e adolescência participei em actos religiosos sempre desconfiando, mas ainda assim como se procurasse conselhos sábios, sabendo intimamente que não havia sábio-mor. Ajudou à descrença a resposta crua que a minha mãe me dera ainda na infância sobre o fim do mundo. Aos sete ou oito anos perguntei se o mundo acabava, respondeu-me: sim, acaba para cada um quando morre.
À hora de almoço tentarei tirar melhores fotografias. Boa semana.
O receio que manifestei esta tarde confirmou-se. Grande cachola é o que me define esta noite. Sinto que perdi, sinto que o país perdeu.
Se mais logo o resultado eleitoral não for no sentido daquilo que tenho vindo a apontar nas Comezinhas, assumo que ficarei com uma cachola de todo o tamanho. Mas a vida também é isto: acreditar e defender aquilo em que se acredita. Em Setembro último nas Autárquicas os resultados foram no sentido que aqui antecipei contra a voz absolutamente dominante, mas agora a poucas horas de saber o nosso futuro confesso algum receio.
Estou convencida que será um dia de mudança, um dia bom para Portugal, mas como em muitos momentos balanço e temo que o entusiasmo esbarre numa realidade que posso não ter antecipado. Terei pressentido erroneamente o sentimento de tantos portugueses desejosos de mudança e de um novo caminho? Não creio, a coisa parece-me patente e inelutável. Mas lá está: corro o risco de estar errada. A bem do país, espero que as muitas palavras que escrevi ao longos dos últimos meses não tenham sido em vão.
Tenho sono, vou dormir uma sesta e ganhar forças para mais logo.
*
Votei à hora de almoço na Rodrigues de Freitas com afluência normal de eleitores. Antes fomos à Carolina Michaëlis para o Nuno votar, aí sim estava mais gente do que habitual.
Só para dizer a eventuais leitores francamente distraídos e fora do contexto: as Comezinhas depois de profunda reflexão durante o dia de hoje decidiram que votarão amanhã no PSD e em Rui Rio.
Boa noite. Durmam bem.
Depois de uma semana atípica a deitar-me muitas vezes por volta das nove da noite, neste Sábado acordei cedo e feitas as tarefas caseiras fui para a rua: deitar lixo, entregar um par de calças para arranjo da costureira e levantar a encomenda das vitaminas na papelaria ponto de entrega dos estafetas da zona - é estranho mas agora nos hospitais receitam-se complexos vitamínicos vendidos online, indisponíveis nas farmácias tradicionais. Precisava também replicar uma chave pelo que desci ao Carvalhido (5 minutos a pé) para ir a uma boa drogaria. Azar: não fazem, só na loja que fez a original. Parti assim para a baixa e lá consegui o intento.
Era meio-dia e estava no centro do Porto, não podia deixar de aproveitar o excelente dia de Sol para mais umas fotografias - se bem que em comparação com as dos anos anteriores não ficaram grande coisa. Interessa-me pouco, mas sim a sensação que tive no regresso na paragem de autocarro em frente à Garrafeira do Carmo: dei comigo a pensar que cada recanto desta cidade me pertence, ou eu a ela, será mais certo assim. Quando se vive muito tempo no mesmo lugar ou o dito funciona como pólo catalisador de interesses e acontecidos não se sai impune: as ruas, as casas, as lojas, as árvores, começam a colar-se à pele da memória e como borrão de tinta da china não saem mais. Nada de novo: acontece a todos. Mas esta é a minha história, a minha memória comezinha.
Dei por mim na Rua do Bolhão já à chegada de Fernandes Tomás, a olhar para o Tribunal e a pensar nos vários dias de escala que lá fiz como advogada estagiária. Uns metros adiante em Sá da Bandeira dei com a Deu La Deu, hoje mudada do local original, onde me lembro de ir comer uma torrada ou um éclair depois das primeiras análises ao sangue, ainda criança - a minha mãe anunciava previamente que depois da colheita teria direito a pequeno-almoço na Deu La Deu. Na Igreja da Trindade estive numa noite a assistir à bela exibição do Coro da "seita" Arautos do Evangelho. Nos Cavalos, como é conhecida a Praça D. João I, derrubaram o edifício conexo ao Palácio Atlântico, onde funcionava o Banco Mello, no qual trabalhei no final do milénio a meias com as corridas para o escritório do patrono e os tribunais. Anos antes ainda nos 90 ali ao lado no Rivoli houve noites calmas a dois. Hoje em Sampaio Bruno entrei na confeitaria Bela Roma para trazer dois pasteis de carne - almoçava lá às vezes seja em novita quando ia às compras com a minha mãe, seja em almoços banais em dias de trabalho. Nos Aliados, o edifício onde esteve alojado o Banif, no qual também trabalhei, esteve em obras. Os Lóios eram ponto de encontro de uma turba de amigos para tomar o autocarro para os primeiros anos de faculdade. Mais acima na Cândido dos Reis permanece o Clube Portuense fundado por antepassados. Um nico mais acima a fila imagino que composta só de impenitentes leitores compulsivos à espera a vez para entrar na Lello - a moda dos livros é tão ridícula como todas as outras.
E eis que chegámos aos Leões onde duas barracas de testagem Covid nos ambientam aos dias pandémicos. Naquela praça que tanto calcorreei em criança, reuni o pagamento antecipado de um dos jantares académicos que ajudei a organizar no restaurante Papagaio, nas traseiras da Garrafeira do Carmo. Num dos jantares que organizei sozinha na Abadia ou Palmeira (já nem estou certa, ficam ambos na Rua do Ateneu Comercial), estando previsto sermos vinte pessoas, acabámos em cerca de cinquenta e comigo furiosa com a medição desenfreada entre uns e outros para ver quem se tinha excedido mais nos gastos - decidi que as sobremesas de uns valiam pelo vinho de outros, dividi o total igualmente por todos e os mais agrestes lá se calaram. Anos mais tarde, pouco depois de o conhecer, levei o Nuno ao pestífero Papagaio e dessa noite recordo o facto de estarmos de tal modo inebriados um com o outro antes mesmo de bebermos, que só ao fim do segundo copo nos apercebemos que o vinho estava intragável - em rigor, estragado. Nada a ver com as escolhas do Nuno como o cantinho junto ao forte de Leça da Palmeira - nada de coisas pífias onde eu o levava, apesar dele ainda hoje falar com saudade dos cachorros quentes das roulottes do Castelo do Queijo onde acabávamos a madrugada depois de uma saída a um qualquer barzito.
Depois de ir ao supermercado abastacer-me de mantimentos para o fim-de-semana, recolhi a casa. Hoje à tarde e ao fim de alguns meses de ausência regressou a minha mãe às leituras ao Nuno e ao fim do dia o meu pai para o cafézito. À noite espero ter direito a recreio.
Aproveitei a usual ida a casa à hora de almoço para regar as plantas.
Bom fim-de-semana.
O Livre não sai do seu nicho, dialoga com meninos universitários programáticos enquanto pedalam bicicletas equipados de certezas identitárias e cachecóis enrolados à esquerda libertária. Como não conhece o país além deste gueto insiste que os portugueses não queriam eleições e ficará surpreso depois de amanhã com o resultado da direita – mas é possível que pessoalmente se safe por haver cada vez mais tontos em Lisboa. O garboso Cotrim, também ele envolto num cachecol desta feita em cuidado estilo conservador, atrai a mocidade mais ou menos ressessa de yuppies excitados com a possibilidade de virem a riscar nos próximos anos, alçados ao Governo e ao vislumbre dos lugarzitos no mercado dos interesses dos antigos tios (e escaladores imitadores de gente bem) desertores do CDS, gente muito in que fala a metro e sem interrupções qual vendedor de meias na feira. O que restará do CDS é uma das incógnitas do próximo fim-de-semana. Sendo a maior dúvida a percentagem de votos que obterá o eufórico André, por quem temo sempre sofra uma síncope cardíaca tal o histerismo. A metro fala também Catarina que por mais que puxe dos galões de actriz colocando a voz para mostrar alegria com a presença de Ana Drago na arruada ou invocar imaginária futura maioria de esquerda já não convence, tal é o desaire que aguarda o Bloco de Esquerda. O bom avô Jerónimo - resguardado num cachecol negro para uso certo e conservador: proteger do frio e das mazelas de saúde -, aparece emocionado com as manifestações de carinho de todos, que o ajudarão a suportar mais um mau resultado. Inês surge como extraterrestre em cenários que as televisões não estão habituadas a mostrar apesar de se tratar do grosso do território português: matas, campos, terrenos de cultivo – e até em talhos consegue cordial conversa. Suja as mãos na terra como já não se usa, só por isso mereceria uma votação melhorada não fosse a tirania encapotada em tanta simpatia. Boçal na figura e atitude como só ele, o actual Primeiro-Ministro exibe o ar gingão que impede gente civilizada de o ouvir e levar a sério, mas não obsta a que perceba o paradoxo de Costa: assustado com provável derrota e aliviado pela possibilidade de se pôr ao fresco e tentar pavonear-se num cargo europeu. Rio envergando fácies e traje em franco desuso e habituado a ser destratado ensaiou pose cordata durante toda a campanha evitando confrontos, viu engrossar o número de apoiantes e votantes, crentes num caminho diferente quanto mais não seja pelo discurso menos plástico, mais colado à realidade comezinha dos portugueses.
A realidade de muitos seres humanos reduz-se a viver aquém do respeito alheio e além da compreensão, enquanto outros incham em certezas ao debitar chavões sobre humanidade, sabedoria e ética.
Sempre me foi difícil fazer passar e ideia a quem cresceu na cidade de uma melhor educação no campo. Passei os primeiros anos de vida entre o campo e a cidade. Não é fácil num mundo que traduz educação por alfabetização e acesso a canais de informação e cultura - além de uma parafernália de modas que vão do modo de vestir até aos tiques de linguagem ou hábitos de consumo -, passar a ideia que há um saber prévio a esta sofisticação, que se traduz no respeito pelo tempo e espaço. Pela natureza. Pelas plantas, animais e pessoas.
A dureza da vida rural levou a que muitos dela se afastassem, feridos pelas dificuldades e injustiças económicas e sociais que decorrem das relações de poder naturais e humanas, muito mais aguçadas do que as da cidade onde salvo o mundo marginal, as arestas foram amenizadas pelo desenvolvimento económico, o estado social e o aparente amparo de vizinhança próxima.
Falar em aceitação dos tempos da natureza, da têmpora dos animais, dos destemperos dos homens, dando-lhe nomes fáceis de entender, por corresponderem à lógica e à verdade dos factos, é remeter os citadinos para um mundo que com esforço querem esconder por vergonha das origens, por legítimo medo de regresso à crueza da vida sem subterfúgios da moderna linguagem psico-jornalística.
Como voltar a viver num mundo onde a morte é patente seja no reino vegetal seja no animal e onde se fala desabridamente dela, sem pejo? Como voltar a viver num mundo onde as palavras sobre sexo são directas e objectivas, sem meias-tintas? Como voltar a falar abertamente num mundo no qual o jornalismo e a psicologia burgueses descobriram que sempre há culpados por todas as acções que causem efeito negativo, ou menos positivo ou, até quiçá, menos desejável aos apetites da circunstância?
Aceitar as leis da natureza está para o mundo moderno, como o diabo para os medievais. A culpabilização do vizinho do lado por tudo de mal que aconteça, ainda que o responsável pelo estrago seja um raio caído do céu, é o que mais define a realidade presente. E toda a explicação de ciência que exista para descrever o fenómeno da trovoada nunca será suficiente para demover a necessidade do homem de culpar outro por todo o mal que acontece. Será outrossim distorcida até servir de prova de culpa do outro, através de elencar de factos e deduções que sempre darão aparência de grande rigor e racionalidade, a contrastar com as intuitivas leis naturais - muito pouco apelativas para os amantes e cegos devotos dos fact check, dos conceitos, paradigmas e dinâmicas, das certezas absolutas.
Com isto quero apenas dizer que não seria de todo mal pensado voltar a perceber que as relações do campo feitas de maior respeito pela natureza e pelos outros – e que, em regra, os citadinos não percebem porque confundem educação com etiqueta e hipocrisia – comportam lições importantes para este novo milénio.
É natural que Portugal contemporâneo permaneça na cauda da Europa sendo o país audível francamente provinciano e pretensioso - desdenha, maltrata e zomba do mundo rural ou tão só de tudo quanto vai além dos nichos turísticos de Lisboa, Porto e Algarve encarados como exemplos de grande sofisticação. Não vamos longe, não tendo referências de personalidades para admirar e servir de exemplo, mas antes escaladores sociais ridiculamente deseducados e ignorantes apesar do muito parlapiê. Restaria a existência de uma elite intelectual que nos salvasse - mas essa é de fancaria: a exemplo temos os humoristas do regime, os poetas do regime e os escritores do regime, sempre em bicos de pés ansiosos por um o lugarzito, sempre na miragem do amparo do sistema. E um rol imenso de académicos e gente da arte e cultura desfasados da realidade e sem um pingo de respeito pelos compatriotas e os seus reais problemas.
O excesso de sofisticação, aliás, a aparente sofisticação, alicerçada em espiral de retórica oca por já não radicar nos princípios que deveriam nortear a vida em sociedade, fazem o mundo actual distanciar-se da noção do que está certo ou errado, ou seja, daquilo que é melhor ou pior para a vida dos seres humanos e da natureza.
A aceitação das leis da natureza não na medida de uma total e acéfala resignação, mas de uma ponderação racional das medidas de força em causa poderia desenjoar-nos deste lodo de mediocridade balofa em que vivemos. Desde que posto o travão na competição e ambição desmedida, desfasadas das necessidades e capacidades humanas e naturais. Isto é, procurando um equilíbrio com a natureza.
Este rapaz já não se usa: é um doce.
O terreiro de Valinhas era rodeado por vários destes arbustos sempre floridos de cor-de-rosa no Inverno. Havia quem lhe chamasse flor de espinheiro, mas não sei o nome verdadeiro da planta - fica aqui como lembrete para ver se pesquiso o nome no Google. Uma vida não chega para o muito que quero fazer/saber.
*
Adenda. Já está: é oriental e chama-se quince ou zhou pi mugua (espero não estar a inventar).
Nota: como quase sempre para conseguir chegar às imagens e dados sobre plantas tenho que traduzir a pesquisa para inglês e assim aceder a sites com informação mais completa.
Jantar de ontem.
A gula pela maioria absoluta de António Costa, que determinou a existência destas eleições, é uma manifestação de como há males que vêm por bem. Não nos chegava a pandemia como temos uma guerra anunciada no extremo Leste da Europa com desenvolvimento e desfecho imprevisível para o mundo e, sobretudo, para o velho continente.
Neste contexto a ideia de ter um malabarista agarrado à voluntariosa esquerda radical ao leme da nação lusa seria de todo a evitar, pelo que ao que tudo indica o destino (bom, em rigor serão os portugueses) encarregar-se-á de entregar a pasta de Primeiro-Ministro a pessoa mais sóbria e sensata. No momento, é o que Portugal precisa. E ao que se adivinha terá.
As eleições não se deram ainda, nem tivemos tempo para descansar dos discursos inflamados contra o clientelismo e nepotismo socialista - da deriva radical de esquerda, do malabarismo e do facilitismo. Mas mesmo antes do PSD ganhar eleições já se adivinham as próximas excitações. As fúrias contra o autoritarismo e falta de erudição do próximo Primeiro-Ministro. A este propósito diverti-me especialmente com a demarcação do “nazizinho” por parte de António Costa e de toda a turba bem pensante nacional. Não passará um ano sem que estejam todos a fazer as vezes de Rosa Mota. Tivessem noção das muitas almas que votarão em Rui Rio habituadas a apelidá-lo carinhosamente de "ditadorzito" e perceberiam o ridículo de não compreender os políticos como homens e mulheres integrais – nas suas virtudes e defeitos. Não há esse uso por cá, onde no discurso a maioria dos comentadores se assume como um ser de irredutível inteligência e impoluta honorabilidade. Só não se dizem moralmente imaculados por estar fora de moda, senão até aí chegariam. É reparar como jamais põem em causa os sacrossantos princípios do Estado de Direito, da Democracia e da Liberdade de Expressão. Como sempre respeitam com louvável tolerância a livre opinião de todos ainda que diametralmente oposta. Esquecem-se é de reconhecer como driblam através da argumentação qualquer noção de verdade ou dignidade, distorcendo a análise dos factos conforme os interesses e corrente do momento ou da tribo que querem defender. Dissimulam o egoísmo, o fingimento e a ambição desmedida embrulhando-os em doce e atraente retórica cada dia mais polida e democrática.
À semelhança dos tempos do jornal O Independente nos anos 80/90 – que li religiosamente e com o qual muito aprendi: o mundo não é a preto e branco -, muito em breve o que prevalecerá no discurso da elite de fancaria – quanto mais sofisticada quer parecer mais lhe foge o pé para o tamanco - é a sobranceria e o desdém social pela falta de cultura democrática e erudição dos próximos governantes e casos e casinhos de descredibilização.
Discutir a necessidade de introduzir em Portugal módicos de respeito pela lei, fazer correr a mensagem genérica – e não dirigida apenas aos adversários - de que ser cumpridor não é ser estúpido, quadrado ou ingénuo e que o cumprimento das obrigações é o caminho para se conseguir desenvolver e civilizar o país e diminuir as desigualdades sociais, é uma ideia estapafúrdia para quem gosta mesmo é da chicana política e para quem esta conversa é coisa de falsa puritana. Apelar à correspondência entre aquilo que se exige do Estado ou dos outros e aquilo que se oferece não gera popularidade, logo não ocorre aos comentadores e intelectuais da nação. Tal como não está na moda desacreditar a retórica vã, auto-elogiosa e a auto-promoção. Quantos lugares, benesses e privilégios são alcançados sem outro critério de escolha que não seja o amiguismo ou a vassalagem face a auto-promoção infundada ou, em rigor, alicerçada na falsa imagem de conhecedor ou membro de gangue dos conhecedores? Num tempo em que o conhecimento está mais acessível do que nunca e em que se privilegia o replicar/despejar informação e a pseudo-erudição em vez da verdadeira reflexão que exige independência e o cumular de anos de maturação sobre as interligações do conhecimento e da realidade comezinha. Condenar socialmente a agressividade dos fala-barato que além de cometerem crimes, ilícitos ou desrespeitarem disposições contratuais, insultam quem com isso os confronta ainda que de modo educado e tolerante, não passa na cabeça dos iluminados que dominam a bem-pensância nacional que logo confunde mínimos de decência, respeito pelo outro e pelas regras de convivência com autoritarismo. Quantas loas são ouvidas a gente que nos contactos diários – na condução na estrada, nos contactos profissionais, no atendimento dos serviços públicos ou comércio, nas ligações para empresas privadas de fornecimento de serviços, nos bancos, nas redes sociais etc. - desrespeita permanente os outros, insultando-os ou desconsiderando-os por se saber a salvo num país em que levantar a voz enchendo-se de falsas razões ou mesmo berrar costuma trazer vantagens ilegítimas? Vivemos num espaço (ou tempo?) onde ser agressivo ou usar a táctica do ataque como melhor defesa é salvo-conduto para o esquecimento de todas as aleivosias cometidas, que além de perdoadas acabam mesmo em elogio e redenção do autor. Vivemos num país onde não há real censura sobre os que desrespeitam os outros.
A bem-pensância só se ocupa destes assuntos se for para denegrir algum inimigo a abater ou adversário político ou intelectual – só se disso tirar vantagem ou gozo egoísta. Já ao deparar-se nestas circunstâncias com alguém de quem obtenha proveito ou um amigalhaço toca de dar duas palmadas nas costas e dar aquele abraço de grande cumplicidade. Lisura é palavra remota entre os iluminados portugueses. Essa coisa da honra é boa de apregoar mas lá no fundo não traz popularidade, apenas dissabores e solidão. Não é pois digna destes mensageiros da agudeza mental, sempre seguidos por inúmeros amigos de oportunidade.
Vivemos num país em que o incumprimento das obrigações, a fanfarronice, a manipulação da realidade, o usar, calcar e desconsiderar pessoas válidas - ainda que de modo dissimulado - parece condição imprescindível para a escalada e sucesso social e profissional. E isto inquina qualquer sociedade que se queira civilizada e solidária.
Mas este tipo de conversa interessa pouco a quem diz pensar o país. Preferem a cada instante zelar pela sua popularidade, dizer-se muito democratas, preocupados com a liberdade, preocupados com a falta de erudição dos concidadãos, muito respeitadores da opinião alheia, alarmados com a vinda do autoritarismo ainda que sejam coniventes quando não mesmo os autores da tirania da falsidade – aquela que pela forma mina e subverte a substância: a defesa da Democracia e da Liberdade. Dizem que a forma é fundamental, esquecendo-se de notar que é um instrumento – usado para construir algo de positivo ou para destruí-lo. Preferem criticar os governantes que vão passando pelo acessório e considerar este tipo de conversa trivialidades, constatações do óbvio e do irreversível – é a vida, dizia o outro tão apreciado na nação. Para quê mudar para melhor? Se os reizinhos da retórica vã não podiam estar melhor à custa da passividade alheia.
Seria espantoso se não fosse previsível assistir às voltas de cobra e contorcionismo argumentativo do último mês. Uns debruçam-se sobre as trocas de galhardetes entre amigos e conhecidos das redes sociais como se fossem a base ou espelho do entendimento do país (o umbigo das relações). Outros excitam-se com a possibilidade de dar entrada às inebriantes ideias liberais na economia. Continuam é a esquecer-se de perceber o país em que vivem. Das favas contadas da permanência dos socialistas no Governo e da total inabilidade da direcção do PSD que bem podia arrumar as botas, estamos agora noutro estágio: o do frenesim liberal. A excitação com um mundo novo fundado na esperança de que Rui Rio ganhe as eleições – esperança perversa a que muitos chegaram por conveniência nas últimas semanas e perversa por tomarem-no por porta aberta à lei da selva do mercado.
São reais os inúmeros casos de sucesso das ideias liberais nos países desenvolvidos. É fácil a um estrangeiro que viva num país com uma economia sã e regrada considerar o forte pendor de esquerda do eleitorado português como anacrónico e inviabilizador do progresso. Mais difícil é perceber que os nacionais não tomem em consideração que num país sem regras a canga liberal só virá aprofundar mais o fosso entre os mais desfavorecidos e os privilegiados. Não é treta de radical de esquerda. É a pura da realidade. Num país onde há o hábito de cumprir a lei e onde os mecanismos de regulação económica funcionam o liberalismo pode funcionar com potenciador de riqueza. Num país sem rei nem roque depositar total confiança na iniciativa privada, não controlando a economia é meio caminho andado para favorecer a desigualdade.
Afirmar que se defende a liberdade individual é muito atraente se soubermos que existem mecanismos para evitar os atropelos aos direitos dos outros. Em países como Portugal, onde a regra é em muitos casos desrespeitar a regra (a menos que haja uma campanha de lavagem cerebral na comunicação social com recurso ao maniqueísmo, caso em que percentagem elevada dos portugueses seguirão a regra mesmo que não faça o menor sentido), onde os serviços públicos e a burocracia embaraçam o cumprimento da lei e onde a Justiça funciona francamente mal, o liberalismo é um docinho bem bom para todo o tipo de chico-esperto que se queira beneficiar à custa de esbulhar o próximo dos seus direitos.
Nato reinforces eastern borders as Ukraine tensions mount, no The Guardian.
[...]Nato is reinforcing its eastern borders with forces on land, sea and air, the military alliance’s secretary general has said, as a Russian invasion of Ukraine appeared increasingly likely.
[...]The US administration was also ready to increase its military presence in eastern Europe, Nato’s chief, a former prime minister of Norway, warned in a statement that appeared designed to further raise the stakes for the Kremlin.“I welcome allies contributing additional forces to Nato,” Stoltenberg said. “Nato will continue to take all necessary measures to protect and defend all allies, including by reinforcing the eastern part of the alliance. We will always respond to any deterioration of our security environment, including through strengthening our collective defence.”
[...]The development came as the White House and Downing Street said they had started withdrawing diplomats’ families from Ukraine, and EU foreign ministers gathered to discuss the escalating crisis with US secretary of state, Antony Blinken.
[...]The new Nato military capability announced for the east includes Denmark’s deployment of a frigate to the Baltic Sea and four F-16 fighter jets to Lithuania.
Spain has said it is sending ships to join Nato naval forces and is considering sending fighter jets to Bulgaria. Emmanuel Macron has expressed his government’s readiness to send French troops to Romania under Nato command.
Nato increased its presence within the territory of its eastern member states in response to Russia’s annexation of Crimea in 2014. There are currently four multinational battlegroups in Estonia, Latvia, Lithuania and Poland, led by the UK, Canada, Germany and the US.
At their meeting in Brussels, EU ministers are expected to reiterate their warning of a severe economic price to be paid by Russia should it invade Ukraine, after a wobble in Berlin.
Germany’s navy chief, Kay-Achim Schönbach, resigned his position after it emerged that he has said that Vladimir Putin deserved respect.
Gabrielius Landsbergis, Lithuania’s foreign minister, said the new German government was in a “difficult situation” having started just “a month ago”.
But he warned that the EU and the US needed to show a unified front. “We are convinced that real war is a likely possibility,” he said. “The sanctions have to be unbearable.”
Arriving in Brussels, Ireland’s foreign minister, Simon Coveney, said he would inform his counterparts that Russia planned to hold war games 240km (150 miles) off Ireland’s coast, within international waters and the country’s exclusive economic zone.
He said: “We don’t have a power to prevent this happening but certainly I’ve made it clear to the Russian ambassador in Ireland that it’s not welcome.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.