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Nos últimos dias fico a cismar sobre a tendência que temos para o vaticínio. Artigos e postais sobre a Ucrânia antevendo os meses que durará a guerra, as causas que levarão a que cesse, as consequências económicas para os ucranianos e russos, o destino de Putin e do mundo. O impacto na economia e no tecido empresarial português da entrada em cena dos refugiados como trabalhadores. Tudo é escalpelizado e as previsões mais do que muitas. Ainda não escapamos da pandemia, que continua por cá a fazer estragos e deu pano para mangas em profecias goradas de todo o género e feitio, sendo espantoso o grau de certeza das afirmações sobre o futuro: não há espaço para o tão provável imprevisto. Devíamos aprender qualquer coisa com a realidade e perceber que não temos o destino nas mãos, muito menos capacidade de adivinhação por mais preparados e entendidos nos consideremos na avaliação do presente e futuro. Dizer isto é chover no molhado para quem está habituado a cantar vitória cada vez que é feliz com uma projecção e a dissimular ou manipular as palavras sobre as muitas em que errou sucessivamente no alvo. Da minha parte há bem pouco tempo levei uma banhada. Não fujo. Também por isso estranho tanto a segurança com que as páginas de jornais, redes sociais e blogues se enchem de grandes tiradas sobre o futuro da Ucrânia, da Rússia, da Europa, de Portugal, do mundo.
A primeira sopa depois de três dias a soro, soube a manjar dos deuses. A segunda soube... a sopa. ;)
Agora via-a como nada mais do que uma tonta. Incapaz de se posicionar perante os factos em consonância com as evidencias e os critérios de aceitabilidade do grupo de pessoas que respeitava. Fraca e fútil. Permeável à tentação de revelar dados pessoais e profissionais em público. Aduladora de menoridades. Sempre a repetir os mesmos temas e falha de alegria. Pouca coisa. Imprestável.
Tão longe da imagem refrescante com que tropeçara um par de anos antes. Parecia trazer qualquer coisa diferente. Parecia. Passou. Outras aparecerão, prontas a provocar o leviano entusiasmo de quem idealiza e que sempre definha quando se defronta com a verdade.
Não gosto de escrever no telemóvel, amanhã já vou ter o computador comigo e hoje veio a Matemática para Pessoas com Pressa, a ver se animo. Por agora a disposição é triste. Vou continuar sem poder comer pelo menos até segunda-feira, oiço uma máquina dopler na vizinha de quarto (que usa dois palavrões em cada três palavras) a fazer muito ruído e mais grave constato que é inviável qualquer sonho de construção futura - sinto-me sem asas.
Eh, sei. Acontece a todos, é passageiro e são muito mais bonitas palavras de força, resistência e esperança. Mas isto é um diário, não um ranking de bom desempenho e boa imagem.
Só imprevistos. Depois de Sábado ter sido apanhada por fortes dores do estômago e costas e ter desvalorizado quando passaram, a madrugada passada reincidi tendo de vir de requitó para o Santo António. Resultado: fico internada uma semana com pedras e infecção na vesícula, que vai ter de ser extraída. Nesta altura do campeonato - em razão das necessidades profissionais - era tudo o que vinha a calhar. É praga.
Cada vez mais livro aberto.
Orgulho-me do espírito de missão com que o Nuno defende a Ucrânia e o Ocidente junto das renitentes amigas sul-americanas (colombiana, peruana e brasileiras). É a nova evangelização.
É uma mulher de sonho, mas o consumo, ui: são pelo menos 14 litros de mimo aos 100.
Quando se vive a vida como quem folheia um catálogo refastelado no canapé em frente ao espelho da vaidade perde-se o essencial. São escolhas: há quem prefira o conforto das alcofas, há quem escolha viver.
Da base da sociedade às mais sofisticadas elites intelectuais o vício é transversal e ataca feroz: o que é não existe pelo que é, pelo seu valor intrínseco, mas pelo ricochete da apreciação na boa imagem no sujeito. Gosta-se ou desgosta-se em função da boa imagem que se dá ao apreciar ou mostrar desagrado. Uma composição musical pode ser excelente, mas se tiver associado algum sinal de repulsa pelas gracinhas aleatórias em voga que faça o sujeito correr o risco de ser tomado por bronco, logo o dito desdenha da música - ainda que a adore.
Uma opinião pode ser cristalina e a mais avisada, mas se for dita por um rival da intriga palaciana, logo é achincalhada pelo viveiro de umas centenas (vá, talvez um milhar) de figuras que vivem nos media, no twitter, no facebook, nos blogs do encosto mútuo e de tecer maledicência sobre os rivais de ocasião. Nem vale a pena tomar as dores de alguns porque os vários grupelhos equivalem-se na baixeza e alimentam-se mutuamente. Para assegurar encosto próprio e dos apaniguados atacam em matilha com reprodução da mesma verborreia entre si, sendo incapazes de agir com independência. São facilmente identificáveis ao regurgitar a cartilha dominante ou reactiva-dominante (estejam certas ou erradas) a papel químico, ao aderir a todos os temas quentes (para os quais normalmente só despertam quando começam a render, estando na verdade a marimbar para a substância da coisa) e ao invocar as mesmas personalidades como referências. Tudo com cada vez maior abstracção e suposta sofisticação de raciocínio - sempre acompanhada de doses consideráveis de dados e informação - histórica ou actual - que servem sobretudo para se demarcarem da massa ignorante que consideram incapaz de pensar e ter opinião válida.
A música pode ser óptima e a opinião dos rivais clarividente, mas sentados no canapé em frente ao espelho ficam ofuscados com a imagem de erudição e carácter, quando o dito reflecte sobretudo soberba, intransigência e prosápia no lugar da espinha dorsal.
Entretanto, o mundo rola segundo as leis da natureza, um tanto indiferente às vaidades e vaipes videirinhos. Continua a fazer-se boa música, o que está certo continua a estar certo e o errado mantém-se errado, independentemente de ser tema quente e o próximo palpite ser inteiramente enquadrável na última alocução de alguma vedeta promovida por cada matilha.
O Que É um Bom Imposto?, documentário de 2019. Na RTP2
Estamos a precisar de recarregar energias.
A banda sonora desta tarde ficará a cargo de Beth Hart.
A Change Is Gonna Come.
*
Porto, hoje às 15h00.
Se escreves de molde a parecer um autor, mimetizando os tiques dos criadores, preenchendo as quotas dos clichés e contra-clichés como quem valida cânones da literatura em primorosa, presunçosa e entediante gramática, fazendo de conta que és o que nunca foste, nunca o serás. Mesmo que produzas e edites resmas de papel grafado, vendas muito e um conjunto de almas benévolas e lacaias te enalteçam o talento de grande escritor, nunca o serás.
A criação não se compadece de aparências. Tarde ou cedo a farsa será nua e só restará exposta a verdade: mediocridade. Má literatura.
Sempre tiveste predilecção por gavetas mentais desarrumadas. À medida que o tempo passa e te vês já com meio caminho feito, confirmas o quão afortunada é essa inclinação. Os fora da caixa, os excêntricos, os estouvados sempre se mostram os melhores e mais ricos amigos. Não tendo as gavetas todas arrumadas, sabes que podes contar com o imprevisível. E há lá sensação melhor do que te trocarem as voltas às certezas e vice-versa? Numa mesa de jantar de amigos na meia idade celebras verdades inconfessáveis, descobertas ao fim de 30 anos. A surpresa e o insólito faz-se conversa liberta e compreensiva. E, agora, apenas com menos pudores, ris com a mesma vontade com que rias junto deles no final dos idos 80 e nos 90.
Em retrospectiva ninguém é imune a algum ataque de remorso ou arrependimento, ainda que episódico. Mas é reconfortante perceber sentido nas vidas desalinhadas e conforto na própria pele. Pode não durar sempre, nem podia. Mas faz-se tendência, e é tão bom.
Saboreias ainda com mais gosto a ideia quando a casa se enche por uns dias com a irreverência de duas miúdas a acabar de sair da adolescência. Apesar das certezas que sempre têm nestas idades, captas a desordem e celebras: ainda há esperança e o mundo ainda é mundo.
Assim tem decorrido este fim de Verão feito intervalo dos enfadonhos diálogos com argumentações maquinais a que te vais habituando, mas não resignando. E quão entediante pode ser ouvir ou ler pessoas a quem conheces todas as respostas de antemão. E quão entediante pode ser sentir todo o movimento ordenado de autómatos. E pior, alinhares nesse tédio. Ah, que se lixem os intransponíveis e inquestionáveis. Refrescante.
Aclara-se agora a razão para tantos seres humanos precisarem de complexa ficção apimentada, alternativa, violenta ou sórdida: necessidade de fugir da imensa solidão das gavetas arrumadas.
Bom dia.
(cheguei ao escritório e recebi telefonema do Nuno a chamar a atenção para esta nova canção.)
Ia escrever um postal com base nos anteriores textos Aparência e De volta ao real, mas faltou-me a inspiração.
Sobrou o título e duas notas.
Há uma linha ténue entre a opinião válida e fundamentada e a expressão fútil de posição ou manifestação de ego. Independentemente da qualidade e eficácia da forma de discurso - da retórica -, da facilidade e sucesso com que a retórica é vendida. No caso da futilidade a tomada de posição contra visão diferente pode não representar nada além da necessidade de aconchego de mantras de tribo. É-se impelido a comentar pela excitação do jogo de facção face à celeuma do momento - à qual nunca se resiste. É-se a favor ou contra determinada preposição por se ser roxo ou amarelo e estas cores determinarem que se faça tábua rasa de tudo quanto é razoável e vertical para defender a posição de gueto. Muitas opiniões não passam deste estágio e são apanágio de muitos ilustres das gavetas arrumadas da nossa praça. Já o ego impõe a cegueira por vedetismo. Tem-se determinada posição por se tomar por brilhante, moral e intelectualmente superior e ver o mundo numa perspectiva inacessível à ralé.
Para este tipo de opiniões - às vezes cumulam - não há paciência. Ainda que por simpatia e sob a perspectiva do resultado se aproximem das posições fundamentadas não deixam de ser farsas.
*
Adenda.
É neste contexto que surgem os linchamentos diários de opiniões reflectidas e sensatas, mas menos apelativas. Para os excitadinhos de sucesso nada é visto numa perspectiva realmente humana, isenta e de longo termo. O que interessa é o clima de guerrilha - é isso que vende: o afogadilho.
10.A. Ucrânia.
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Desta saga existem nas Comezinhas as entradas abaixo indicadas, muito desiguais entre si.
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