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Além da beleza e afinidade das palavras e lugares que compunham os versos, o atrevimento inusitado, a singular petulância de José Gomes Ferreira, feita graça desprovida de prosápia, sem a falsa sofisticação dos bilros de renda letrada, fascinava-me aos 15 anos e continua a encantar-me. Singelo e verdadeiro. Uma maravilha. Deixo-vos um conto.
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Um dia hei-de pesquisar um software para descobrir as palavras mais usadas nas Comezinhas, por hoje fiz uma pesquisa manual de 32 palavras escolhidas por mim para ver quantas entradas tinham. Não haja dúvida que a palavra "casa" tem um papel fundamental. Em termos de bruxarias o meu ascendente em Caranguejo dá uma abada ao signo solar de Sagitário. A verdade é esta: viajar sim, tudo muito bonito, mas bem, bem está-se no conforto da nossa casa. No ninho.
Adenda. A configuração deste post ficou de tal modo que o elenco das imagens é integral nos computadores, mas os itens "homem" e "dormir" desaparecem nos telemóveis. Mania das máquinas. Não foi propositado, mas vai ficar assim - estou farta de batalhar com as máquinas, elas ganham vida própria e vencem-me sempre.
Começou o fim-de-semana com trovoada forte. Parece que atraí as faíscas ao comprar na semana passada um fio pechisbeque com raios, luas e estrelas. O raio ao centro proclama o que sobressai. Gosto do fio e das tempestades. Fazem lembrar os dias invernosos e emotivos em Valinhas por onde passei hoje. Do estradão, junto ao cruzeiro, vi a casa e a envolvência descaracterizada. É a lei da vida e é assim que deve ser. As casas para sobreviverem ao tempo e vingarem têm de se modernizar e adaptar. Já no cemitério as pedras das campas dos meus estavam sóbrias e lavadas, indiferentes à modernidade. O fino colar dá-me alegria e a sensação de voltar a tempos idos em que usava adereços discretos sem temer parecer uma árvore de Natal. Sempre odiei jóias ou adereços de imitação farfalhudos e vistosos. É muito raro o dia em que aguento em mim uma peça dessas – raro o momento extraordinário em que o brilho não me repugna. Às vezes passam grandes temporadas sem que use nada de adereço. Nos últimos doze anos uso um anel, que vai variando, dado pelo Nuno. Desde que emagreci voltei à cobra que me assenta bem no espírito. Juntamente com o relógio perfaz enfeite quanto baste. Há uns bons anos num assalto a casa da minha mãe levaram-nos tudo quanto tínhamos de recordações herdadas e jóias. O bom dessa experiência é que se fica com perfeita noção da pouca falta que faz esse tipo de riqueza. Só dói a casa esventrada e a nossa intimidade remexida. Depois passa e a sensação de alívio sobrepõe-se. A mim deixaram-me apenas esquecido um pingente que abre para colocar fotografias. Era da minha avó e gosto dele. Daí para cá às vezes compro uma peça de bijuteria com o sossego de saber que não tem valor. Meia-dúzia de vezes ao ano, se tanto, uso brincos. Embirro um pouco com eles por causa dos óculos. É tralha a mais, mas cada vez me é mais difícil usar lentes de contacto, que só coloco para nadar. De modo que resumindo e concluindo, o fio é a cara do que gosto: raios, luas e estrelas despojadas. Pechisbeque. Tenho-o posto todos os dias e assim vai continuar até ver.
Ontem acabei a leitura que se arrastava há 20 dias. Mas a História, em especial a História de Portugal, deixa-me sempre presa e por isso ontem ainda dei por mim a iniciar novas leituras na mesma área e senti-me a estudar até às duas e meia da manhã. É impossível não cair na tentação de tirar ilações das aulas de História, sobretudo, em matéria de organização da sociedade e do Estado. Vermo-nos num momento desse recorrente bater de ondas de circunstâncias da História. São fáceis e nem sempre ajuizadas as deduções nestas matérias tal como as citações e replicações do que se lê. Nunca me dediquei especialmente a estudar o que era suposto para a vida prática e colheita imediata de frutos – para os resultados, digamos assim. Ao contrário do trabalho, no qual passei muitos anos focada nos objectivos das empresas para as quais prestava serviço - muito mais do que nos meus próprios. Ainda assim admito curiosidade de saber se algum dia o que estudei devaneando pelo que me é caro fará diferença e terá algum proveito para além do gozo e contentamento íntimos.
Ontem ainda voltei a instalar o Office comprado há 12 anos. Há muitos meses escrevia no Word Pad, o que não fazia sentido. Ao rever as pen drives encontrei fotografias com alguns anos da casa de Bessa Leite – achei piada a um lanche de bolo de chocolate e pêssego em calda, acompanhado de groselha, na linha das imagens das Comezinhas, por isso vai figurar aqui -, que recordamos sempre com alívio quando chove muito, atentas a inundações a que fomos sujeitos, e encontrei uma fotografia de tagarelas, incluíndo o tal da Linea do vidro rachado. Deparei-me também com três antologias de ficção e contos portugueses. Isto é, tropecei nas minhas deambulações e leituras habituais, nunca sistematizadas, antes bem soltas e vividas. Como os raios, luas e estrelas despojadas.
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Sabes que te perdes em abstracções e, em muitos casos, pecas por falta de nomear os problemas reais. Foges consciente das abordagens usuais que ocupam os jornais e as páginas virtuais. Não tomas para ti a todo o tempo, como é timbre dos utilizadores dos espaços de opinião, o papel de escrutinadora dos poderes fácticos e de defensora das verdades do momento. Não o fazes quer por falta de talento quer por ausência de vontade. Não é esse o papel que desempenhas - presunçosa e pouco dada à falsidade reconheces que o tens, mas cada macaco no seu galho e o teu quer-se recolhido
Muitas vezes referiste a aversão aos ditos e actos de superioridade e desrespeito pelos outros – possivelmente uma das ideias que mais te consome a vida, ao longo da qual te foi dito ou feito sentir diversas vezes que acusavas o toque com demasiada facilidade. Em tua defesa, esclareces que nunca serás imune à falta se sensibilidade e há muito te deixaram de impressionar os exemplos do domínio pela força gratuita ainda que dissimulada em palavras buriladas.
O que a muitos parece opinião, a ti afigura-se como ofensa. E não é por falta de consciência dos benefícios da liberdade de expressão e da democracia, nem sequer no plano mais mundano por falta de hábito de debate – cresceste e amadureceste a discutir e a defender com vigor o que acreditas. Felizmente, cresceste e amadureceste a ser contrariada, criticada, ridicularizada e nada disso te incomoda por aí além.
Sucede que cedo tomaste consciência, apesar da controvérsia e ironia te serem muito chegadas, que o hábito do debate não é um valor benigno per si, tal como o humor não é um valor benigno per si. Ao contrário do que é aceite como ideia unanime – e quanta unanimidade fictícia existe no presente – a livre opinião e o humor não são inócuas. São das mais perfeitas armas de combate e tanto servem na defesa dos mais nobres tesouros, como para saquear o adversário ou o próximo dos seus valores e potencialidades, tudo dependendo do coração e cabeça de quem peleja.
Dizes isto ciente que não há civilização ideal sem livre opinião nem humor, a menos que se tome a ignorância e a escravidão como um mal necessário. Mas também consciente, e aqui é que dói à maioria que perora de forma vã sobre democracia e tolerância, que a opinião e o humor para serem livres têm de ser universais. Não podem servir apenas as coutadas que se impõem não pela razão justa, mas pela força mediática em torno de mesquinhos interesses de cada tribo e que mantém o país manta de retalho de pequenas e grandes corrupções, conveniências, apetites e futilidades, incapaz de se sujeitar à justa autoridade dos princípios.
Um país que festeja impante a liberdade todos os anos, mantém parte substancial da sua população a sobreviver de salários miseráveis e ambições pífias. Os estratos superiores da pirâmide social – hoje aferidos pelos recursos económicos e pela imagem -, egoístas e mesquinhos vão contando hipocritamente a anedota do elevador social. Na verdade, precisam da desigualdade como pão para a boca. Não só no sentido material da coisa, porque as desigualdades de rendimento são efectivas e gritantes, mas no sentido cultural também. O seu relevo na sociedade depende da sobrevivência de uma maioria pobre, inculta e resignada. E por isso se assustam tanto com os radicais.
Um país onde tudo se compara e a inveja é rainha, onde ser alguém significa possuir no mínimo o quadruplo rendimento dos seus administrados, onde assim que se chega a um patamar económico confortável se tenta mimetizar a etiqueta tradicional para impressionar a maioria dos portugueses que a desdenha, e se lê livros cujo léxico e conteúdo não é acessível nem inteligível à maioria da população. Um país onde a classe média é apenas remediada e onde muito poucos têm muitíssimo, quantas vezes à custa de negócios espúrios e da exploração dos impostos pagos por essa mesma classe média. Um país onde a grande corrupção não pode ser definitivamente repudiada por falta de legitimidade de parte substancial da população habituada a praticar ou consentir a pequena trapaça.
Um país que prefere continuar as bravatas contra a direita populista ou a esquerda radical, em vez de se unir em favor do justo, aceitando como boas quando razoáveis e merecidas as ideias de uns e de outros. Apesar da consciência de que são usadas apenas como pretexto para hastear bandeiras populistas, correspondem muitas vezes a anseios justos da população, que são a todo o momento desdenhadas e espezinhadas nos textos dos jornais e espaços de debate das mais respeitáveis figuras da opinião. E aqui está a ofensa que ninguém quer ver, mas existe, é real e magoa. Podem desmontar estes argumentos indo buscar os clássicos e os oitocentistas – que como as estatísticas dão para todas as leituras, para provar tudo e o seu contrário -, podem tentar colar-te o rótulo de lírica, ingénua ou ressentida. Tu sabes e eles também que estás a dizer a verdade que não lhes convém.
Não te cansarás de o dizer, ainda que só. É preciso ouvir a voz da população descontente, não só a que vota nesses partidos radicais, mas sobretudo a zangada que não vota há anos. Há que deixar de falsas declarações de pesar pela abstenção a cada eleição, retirar o peso da fúria e tirar espaço ao oportunismo. Não é normalizar, como dizem os desatentos ou desleais que se acham superiores aos seus compatriotas, até porque normalizada está ela, por enquanto mais pelo silêncio do que pelo reivindicação - até quando? É preciso esvaziá-la do que tem de maligno – a fúria da tirania, peneirando as razões válidas de descontentamento uma a uma. Trazê-las para o espaço moderado.
Antes se ridicularizassem as elites - as antigas e as recém ascendidas -, que fingem pelejar pela justiça e democracia quando tudo quanto fazem é falar em pobreza ao mesmo tempo que recusam acesso a melhores salários e rendimentos, e sempre arranjam bons e liberalíssimos argumentos como a falta de produtividade. Pena que não usem igual raciocínio em causa própria. Enchem a boca para falar em educação e da necessidade de mais leitura, mas pouco lhes dá mais prazer e ser do que olhar cima da burra para os boçais e ignorantes. Se fosse a justiça e a democracia que os preocupasse não se dedicariam tanto tempo a desprezar os compatriotas, menorizando-os e achincalhando-os. Estariam a dar exemplo. Não sentiram desdém pela pobreza e ignorância. Estariam, sem disso se gabar em proveito próprio, a educar e regozijar cada vez que alguém passasse a viver em melhores condições. A alegrar-se cada vez que alguém se sentisse respeitado e percebesse o significado de democracia e liberdade na pele.
Não te venham com histórias da carochinha da defesa da democracia. Não é a ideia de que o poder está nas mãos do povo e no proveito dele que vês defender, apenas os interesses mesquinhos de tribos mais ou menos trapaceiras. E desta forma não há país, nem autoridade, nem nação. Somos coisa nenhuma.
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Não posso
ser quem quero
sequer saber
quem sou
e no que
creio.
Não digo
nem quero dizer:
é impulso
e aperto.
Consome
o dito
sentido,
por arames
preso
no pensamento,
corre solto
mas não livre.
A cura
há-de vir
esquecer
e refrear
o sentido
não dito;
escrito.
O drama do consciencioso é que recuará sempre nas condenações sumárias, pesando a sua quota de responsabilidade, o grau de injustiça e de leviandade de cada juízo que emite.
As apreciações frívolas são bastante mais fáceis e vendáveis.
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Se pudesse. Se o mundo fosse à minha medida. Colheria um punhado de dias de Primavera e ficaria sentada, pasmada a contemplar as alegrias. As vividas e as imaginadas. Até as sofridas, desde que superadas. Ou não. Andaria para trás e para a frente. Só a compor sonhos acordada e a pensar na vida. A deixá-la transcorrer o tempo enquanto sorria pelo desplante e ousadia de não querer saber da sensatez nem da urgência de fazer tudo quanto se diz essencial.
Se pudesse. Se o mundo fosse à minha medida. Passearia nos dias colhidos a rir sozinha de quem diz que todas as frases têm de ter sujeito, predicado e complemento. E abraçaria os dois primeiros períodos deste parágrafo, em mimo cúmplice, e dir-lhes-ia ao ouvido: hei, se pudesse e se o mundo fosse à minha medida, eles não sabem que vocês existem mais do que na condicional, por si só. Além de mais querem que vos diga que vós existis. Não vos posso falar assim, nem saberíeis que a vós me referiria.
Chiu. Não contais contem a ninguém que podemos tanto à nossa medida: nós os patetas do truque dos idiotas felizes.
Não tenho especial relação com as administrativas do meu Centro de Saúde. Nunca conversei além do estritamente necessário para marcar consultas. Isto para dizer que não sou "conhecida" de alguém e por isso merecedora de especial atenção. Esta é a forma como funciona o Centro de Saúde. Foram três minutos. Em três minutos obtive resposta à minha pergunta, por me haver esquecido da razão da consulta (têm sido tantas que me perco), que prontamente me recordaram. Isto também é o SNS. Deste não costumo ouvir falar.
Era suposto estar quietinha. Tinha intenção de não publicar posts ou pelo menos bitaites durante dois ou três dias por semana, mas é mais forte do que eu.
Havia passado os olhos neste livro em 2002/2003. Hoje reli com mais interesse.
Boa semana.
Há pouco a acrescentar ao que escrevi em Agosto de 2020, sob a tag "arrogância". Assunto muito dissecado ao longo destes três anos nas Comezinhas. O que me leva a recordar o post de então é só o reafirmar de uma ideia essencial - e não acessória como pode parecer -, apesar de tão malquista por pôr em causa pergaminhos da vaidade. Vem a propósito da forma auto-elogiosa como alguns e algumas se tratam de forma recorrente, às vezes, num total ridículo, ao revelarem inteira ausência de sentido auto-crítico e vontade de venderem imagem de falso imaculado predicado.
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Corro o risco de parecer um gira-discos encravado nestes dias de ressaca colectiva antes da próxima covídica bebedeira terrestre, na qual tudo é premente, todos estão certos de conhecer o melhor argumento e prontos a dar conselhos - a presunção é um dos traços mais característicos dos nossos dias. A marabunta vai hasteando a candeia e ao mover-se em turbilhão encandeia-se mutuamente com destino ao absurdo. No dia 3 de Agosto considerei mais sensato ficar por aqui. Dominar os estados de alma ou disfarçá-los costuma ser apanágio de gente inteligente e achei-me capaz, mas afinal não sou. Não sou imune aos pequenos pormenores de carácter que minam o desenvolvimento saudável das relações humanas. E por essa razão publico em seguida o apontamento escrito nesse dia, com uma nota prévia: nada do que digo a seguir se aplica a quem, por genuíno e desinteressado gosto de ensinar, passa efectivo conhecimento a outros.
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Duas ideias assaltaram-me o pensamento esta manhã. A primeira tem a ver com a estranha necessidade de estar sempre a dar conselhos. Partir do princípio que sempre se pode e deve instruir o outro. Em menor ou maior grau todos temos essa tendência. Nos casos mais agudos passa por estarmos constantemente a determinar aquilo que na ideia ou no pensamento do outro está errado. É normal. As pessoas divergem, dirão. Umas estão mais preparadas do que outras. Não me parece nada tão evidente. Se não se fizer um esforço de perceber o outro lado, a outra ideia ou a outra acção, as relações e o mundo têm tendência a degenerar em vez de evoluir. O não ouvir o outro, julgá-lo a priori como pouco capaz, preguiçoso, preconceituoso, ou desprovido de personalidade, e partir do princípio que nos compete formatá-lo e melhorá-lo é a mais perfeita realização da nossa tirania e pequenez. Não passa de vaidade. Não precisamos cair no relativismo, nem anular o carácter humano, mas se fossemos decentes tenderíamos a buscar a justeza das coisas e a respeitar o outro nas relações familiares, sociais e profissionais. Às vezes bastaria abstermo-nos de certas posturas de superioridade que nem chegamos a verbalizar, mas deixamos transparecer pela forma como nos apresentamos aos outros, pela atitude arrogante que tomamos não só com o interlocutor como, em geral, com os outros e, em particular, os muitos que desconsideramos por motivos fúteis.
É verdade que pode haver nalguns uma menor propensão para aprender e por isso para evoluir. Mas pergunto-me quem já reparou que o estar permanentemente a falar de cátedra e a amesquinhar quem o rodeia pode determinar o afastamento legítimo de quem não está para ser ofendido? E nem vale a desculpa esfarrapada de que cada um tem que se saber impor e fazer com que os outros o respeitem, pois a realidade demonstra à saciedade que a sorte é tão determinante quanto o talento no êxito. E, em regra, só quem é ou está deslumbrado consigo próprio ou foi bafejado por vidas amparadas, fáceis ou bem sucedidas, está absolutamente convencido que tudo pode e que a vontade do homem é o elemento mais determinante no sucesso na vida pessoal e profissional. Também não colhem razão os exemplos de sucesso pelo empenho de gente social ou economicamente desfavorecida ou com handicaps físicos ou mentais, porque esses não são os únicos factores determinantes. Claro que é de louvar quem transpõe barreiras difíceis. Mas quem já reparou que por trás desses feitos estão um sem-número de outros factores que se prendem com a sorte? Não se pode abstrair dos infinitos: ‘e se…’ E se tivesse nascido noutro país ou noutra cidade? E se o clima desse país ou cidade fosse outro? E se a assistência médica fosse outra? E se a família não fosse esta? E se não tivesse o exemplo do sentido de humor em casa? E se os colegas fossem marginais? E se os amigos fossem meninos-bem? E se o emprego não surgisse fácil? E se não tivesse calcado caca de cão no dia da entrevista? E se as competências não fossem ignoradas por quem decide no local de trabalho? E se o rapaz não fosse tímido? E se a rapariga não fosse bonita e elegante? E se a namorada não se revelasse mesquinha? E se o marido não se revelasse agressivo? E se a professora primária não fosse dedicada? E se os professores do liceu não fossem medíocres? E se não houvesse crise económica? E se não houvesse uma guerra? E se os primeiros livros lidos fossem aqueles e não outros? E se naquele dia, aquela hora aquele homem não se tivesse cruzado com aquela mulher mas com outra e vice-versa? O acaso é absolutamente determinante na nossa vida. E quem nega isto anda muito, mas muito distraído.
Quem já reparou que muitos dos que falam de cátedra aprendem amiúde com pessoas que desconsideram e cujos conhecimentos e vida usam sem reconhecer tributo? Guardam os agradecimentos para quem convém recompensar, ignorando ou desprezando os que julgam dispensáveis de figurar na íntima lista do reconhecimento, apesar de serem os que, sobre si recusando estardalhaços, dia após dia os ajudam a brilhar. Pisam gente que não perdendo tempo a puxar dos galões simplesmente dá, oferecendo o seu trabalho, o seu conhecimento, a sua vida. E estes tiques funcionam em escalada. Quanto mais seguros de si e das suas certezas mais longe costumam estar da verdade das coisas. O cúmulo do caricato é ver gente com história de vida receber lições destes oráculos da sabedoria sobre a seu próprio percurso. Sim, há quem que se dedique a explicar ao próprio quem ele é, o que pensa, o que sente, e quantas vezes a projectar preconceitos inexistentes nessa vida, sem de facto ouvi-lo e sem fazer grande esforço para o entender além da aparência ou dos aspectos que interessam para construir, dentro da estreita mundividência do educador do povo, uma personagem que pouco ou nada tem a ver com o original. Dir-me-ão: é a vida, cada um vê o mundo como vê. Respondo: será, mas há visões que de tão pobres e falsas, e apesar de venderem bem, deturpam o sentido benigno da partilha de conhecimento.
(Na sequência do post Absurdo e seus comentários.)
Há matérias em que o que os outros possam pensar é-me rigorosamente indiferente, mas não todas. E, sobretudo, interessa-me verificar se aquilo que os outros pensam em contraposição ao que afirmo possa vir a coincidir (no todo ou em parte) com aquilo que eu venha a pensar no futuro. Estamos sempre a evoluir, é importante não fazer juízos precipitados por mal fundamentados ou injustos, caso contrário está-se a cair no erro que se critica nos outros.
Preguiça boa e Sábado desanuviado. Ontem foi dia de voltar a almoçar com uma amiga - espero que se torne hábito. É engraçado: depois de dois anos de convívio diário, passaram quase duas décadas em que nos vimos duas ou três vezes em circunstâncias que não proporcionavam conversa desempedida e demorada. Restava-nos apenas os anuais votos de Bom Natal. Em aparte digo que nunca aceitei bem que se desvalorizassem essas mensagens ou cuidados na época festiva. Há quem ache hipócrita, de gente que se esquece o ano inteiro dos outros e os recorda apenas por praxe. Não concordo. Penso em vários amigos do passado ao longo do ano. Se a poucos - cada vez menos - mantenho o hábito de desejar Bom Natal é por franca vontade de os saber bem. Voltando à graça que pode haver em 19 anos de afastamento. É como se largasse alguém numa margem do rio e a fosse encontrar décadas depois mais adiante na margem contrária. Há 19 anos as filhas desta amiga, uma força da natureza com mais 14 anos do que eu, eram crianças pequenas, hoje estão formadas ou a acabar de formar, a trabalhar e a viajar sozinhas. Há todo um lapso de tempo que faz da história da mãe delas, do correr do tempo recente do país e do meu tempo motivo de conversa, desabafo e incentivo para o que aí vem. Numa outra perspectiva faz-me avaliar, através do testemunho profissional dela, aquilo de que me afastei decidida e definitivamente aos 29 anos: o exercício da advocacia e tudo quanto tivesse ligação ao mundo jurídico.
Combinei para a semana um cafezito com outra amiga, desta feita mais nova 20 anos. Descobrimos na semana passada que trabalhamos a 200 metros de distância. Ele há sortes. Neste caso, remando a minha barcaça apanhei-a há três anos já longe da fonte, mas ainda no afluente do rio principal. É todo um mundo por abrir e aqui a graça reside no apreciar dos arrebatamentos, das ganas e da confiança. Vê-la partir do pressuposto que tudo tem tudo para correr pelo melhor. Admito que o empréstimo desta alegria é um nada contagiante e me faz bem.
Entretanto e por estar numa de leveza esta manhã fui à marginal marítima de Gaia reservar espaço para um almoço de início de Dezembro. Em vez de esperar para o ano para festejar os 50, resolvi já este ano despedir-me da casa dos 40 com família e amigos. Será uma reunião informal em local de muita simplicidade. Hoje estava com disposição de visitar três ou quatro sítios para escolher, mas logo na primeira porta a simpatia e despretensão com que fomos recebidos pelo gerente e empregado de mesa levou-me em poucos minutos a fazer a reserva. O almoço conjunto de família e amigos é quase uma estreia já que não costumo juntar uns e outros. Depois de meia-dúzia de chamadas à hora de almoço fiquei contente com os simpáticos "sins". A ver vamos se nos próximos dias consigo reunir quem quero. Vai ser difícil. Desde os 45 anos que encalacro a decisão deste almoço.
De resto, dormi de tarde para compensar ter acordado antes das sete. Li uns contos. À noite lerei mais 20 páginas da História de Portugal - e rende, rende. Devagarinho, está-me a saber bem. E assim passará mais um Sábado.
P.S. Sem querer não tinha colocado a penúltima página do conto. Já emendei, acrescentando-a.
Malhas. Nos últimos dias usei o termo "malhas" e casaco de "malha". Vocábulos que não constavam do meu mundo. Não sei se bem ou mal - no sentido de fazer ou não parte do catálogo de palavras proibidas no mundo onde nasci e cresci, tal como, por exemplo: esposo(a), funeral, sanita, aleijar. Palavras grosseiras e pirosas. Creio conhecer a origem do meu drama: havia quem dissesse "fazer tricot" e quem usasse a expressão "fazer malha". Esta segunda versão estava vedada a gente civilizada - sim, é presunção, além de não fazer sentido, mas que querem: a vida também é feita de um aglomerado de falhas de sentido. Em todo o caso, a minha cautela no uso do termo malhas para identificar peças de roupa, a que me habituei a chamar camisola de lã ou de algodão, nasceu da rejeição a esse "fazer malha". Está identificada a causa, já posso continuar o dia descansada.
Tenho plena consciência, aliás expressei-o na Ana Paula, que esta espécie de código de honra vocabular, cheia de interditos e tabus, não passa de tiques de gente bem, servindo para conservar a diferença face à marabunta. Mas também não deixo de saber que quem mais os critica é quem cedo ou tarde, bem esticado em bicos dos pés, vai aprender e dominar os tiques, passando a desconsiderar e espezinhar através do sarcasmo os que os desconhecem como ele(a) próprio(a) até há pouco. E fá-lo-á sempre com imensa aceitação e sucesso. É a lei da vida, diz-se.
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Três notas finais.
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Uma perspectiva diferente do habitual.
Ao ler isto veio-me à cabeça a forma agradável como fui fazendo uma rede de conhecidos superficiais nesta última zona de residência: costureira, dono do take away, do restaurante, da padaria, da tabacaria, empregados do supermercado, etc. O mesmo vale para o já longo conhecimento de algumas pessoas no entorno do local de trabalho. É facto que estas ligações superficiais acabam por ser relevantes para o bem-estar do dia-a-dia. Fica mais leve. Tanto mais no Porto onde a conversa curta e franca é fácil e solta.
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