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Está um mundo feio lá fora, e também cá dentro.
À parte do mundo das boas palavras, tantas vezes de circunstância, medimos tudo. Desacreditamos em tudo. Criticamos tudo. Uma necessidade imensa de ter o que dizer todos os dias, várias vezes ao dia, seja nas redes sociais seja nos outros contactos diários, e uma espécie de mola que impulsiona a convicção de estarmos mais certos, mais despertos, impele-nos à produção de juízos ou regozijo com juízos de terceiros - julgamentos do que nos parece errado, desajustado, medíocre, desonesto.
Deixamos de ser capazes de ouvir quem sabe mais ou simplesmente quem a cada momento acrescenta conhecimento ou reflexão. Desacreditamos nas intenções desinteressadas, quanto mais nas boas. Ou melhor, fazemos audições e leituras enviesadas, subtraindo da substância alheia o que nos convém para engordar o nosso arcaboiço argumentativo. Para enriquecer as gavetas das crenças da nossa massa cinzenta. Sem espanto, generosidade, questionamento – sem as raízes da busca do conhecimento.
A desconfiança mútua alastra. Precisamos de nos resguardar dos ataques desleais. Não queremos interlocutores, não queremos amigos, queremos fontes de argumento e intriga e anuentes. Se possível audiência que nos admire e respeite. Se possível que nos admire e respeite mais do que aos outros. Espelho meu, há alguém com mais razão do que eu?
Esta é uma entrada atípica para a série A Guerra, primeiro por não começar com pormenores insignificantes e pessoais do meu dia-a-dia, depois por não se referir a questões políticas, económicas ou ao espaço público dominado pela comunicação social. Hoje não é disso que falo, mas sim dos que povoamos o mundo com os nossos bitaites.
Esvaziamos a oportunidade e credibilidade das questões mais importantes e pungentes – as que de facto mereceriam o nosso pensamento e acção como contributo para um mundo mais saudável - neste afã de medir tudo a todo o momento, de nos resguardamos dos ataques desleais que não esquecemos, refreamos por receio e cálculo as boas palavras de genuíno e desinteressado elogio, incentivo ou felicitação a um amigo ou conhecido em momento ou dia especial. É um mundo feio, no qual engolimos em seco os bons sentimentos. Para lá das palavras de circunstância, para lá das palavras fáceis e vãs, temos dificuldade em ver o todo e as razões do lado de lá. Cada vez mais em rede aparente, cada vez mais fechados no nosso casulo. Cada dia mais argumentativos – “eu estou na minha razão” diziam as boas gentes da terra onde passei a infância – cada dia mais longe da raiz da razão.
E cada vez que escrevo fico um pouco zangada comigo própria, a matutar se as linhas que produzi reduziram o que penso e sinto a retórica vã ou a mero exercício de escrita. Medo, permanente medo de ser leviana. Tirando isso, as dúvidas comezinhas do costume: também duvidei se deveria ter acentuado o “a” dos “deixamos”, mas fica assim, afinal é presente e não passado. E para que fique patente uma nota narcísica do dia-a-dia, daquelas que os humoristas tanto gostam de escarnecer, conto que hoje me senti o Obélix. No local de trabalho comentava: a minha insegurança é tanta que tive de ir ao Google verificar como se escreve um termo que escrevi centenas de vezes bem, só porque um cliente o escreveu de outra forma (mal). Responde-me a colega: isso não é insegurança, é extremo à vontade, brinca sempre com à vontade com essas dúvidas. Disse-lhe a rir: já sei que sou mimada, mas acredite que sofro com estas coisas. Ao que ela, brincando, respondeu: todos sofremos. Situou-me. Senti-me o Obélix, desajeitada e sem consciência de ter caído em criança no caldeirão da poção mágica da confiança.
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