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A Guerra

- actualizado -

por Isabel Paulos, em 06.06.23

Está um mundo feio lá fora, e também cá dentro.

À parte do mundo das boas palavras, tantas vezes de circunstância, medimos tudo. Desacreditamos em tudo. Criticamos tudo. Uma necessidade imensa de ter o que dizer todos os dias, várias vezes ao dia, seja nas redes sociais seja nos outros contactos diários, e uma espécie de mola que impulsiona a convicção de estarmos mais certos, mais despertos, impele-nos à produção de juízos ou regozijo com juízos de terceiros - julgamentos do que nos parece errado, desajustado, medíocre, desonesto.

Deixamos de ser capazes de ouvir quem sabe mais ou simplesmente quem a cada momento acrescenta conhecimento ou reflexão. Desacreditamos nas intenções desinteressadas, quanto mais nas boas. Ou melhor, fazemos audições e leituras enviesadas, subtraindo da substância alheia o que nos convém para engordar o nosso arcaboiço argumentativo. Para enriquecer as gavetas das crenças da nossa massa cinzenta. Sem espanto, generosidade, questionamento – sem as raízes da busca do conhecimento.

A desconfiança mútua alastra. Precisamos de nos resguardar dos ataques desleais. Não queremos interlocutores, não queremos amigos, queremos fontes de argumento e intriga e anuentes. Se possível audiência que nos admire e respeite. Se possível que nos admire e respeite mais do que aos outros. Espelho meu, há alguém com mais razão do que eu?

Esta é uma entrada atípica para a série A Guerra, primeiro por não começar com pormenores insignificantes e pessoais do meu dia-a-dia, depois por não se referir a questões políticas, económicas ou ao espaço público dominado pela comunicação social. Hoje não é disso que falo, mas sim dos que povoamos o mundo com os nossos bitaites.

Esvaziamos a oportunidade e credibilidade das questões mais importantes e pungentes – as que de facto mereceriam o nosso pensamento e acção como contributo para um mundo mais saudável - neste afã de medir tudo a todo o momento, de nos resguardamos dos ataques desleais que não esquecemos, refreamos por receio e cálculo as boas palavras de genuíno e desinteressado elogio, incentivo ou felicitação a um amigo ou conhecido em momento ou dia especial. É um mundo feio, no qual engolimos em seco os bons sentimentos. Para lá das palavras de circunstância, para lá das palavras fáceis e vãs, temos dificuldade em ver o todo e as razões do lado de lá. Cada vez mais em rede aparente, cada vez mais fechados no nosso casulo. Cada dia mais argumentativos – “eu estou na minha razão” diziam as boas gentes da terra onde passei a infância – cada dia mais longe da raiz da razão.

E cada vez que escrevo fico um pouco zangada comigo própria, a matutar se as linhas que produzi reduziram o que penso e sinto a retórica vã ou  a mero exercício de escrita. Medo, permanente medo de ser leviana. Tirando isso, as dúvidas comezinhas do costume: também duvidei se deveria ter acentuado o “a” dos “deixamos”, mas fica assim, afinal é presente e não passado. E para que fique patente uma nota narcísica do dia-a-dia, daquelas que os humoristas tanto gostam de escarnecer, conto que hoje me senti o Obélix. No local de trabalho comentava: a minha insegurança é tanta que tive de ir ao Google verificar como se escreve um termo que escrevi centenas de vezes bem, só porque um cliente o escreveu de outra forma (mal). Responde-me a colega: isso não é insegurança, é extremo à vontade, brinca sempre com à vontade com essas dúvidas. Disse-lhe a rir: já sei que sou mimada, mas acredite que sofro com estas coisas. Ao que ela,  brincando, respondeu: todos sofremos. Situou-me. Senti-me o Obélix, desajeitada e sem consciência de ter caído em criança no caldeirão da poção mágica da confiança.

 


6 comentários

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De João-Afonso Machado a 06.06.2023 às 07:34

Bom dia Isabel, 
Espero que tenha acordado mais otimista,  conquanto não deixe de lhe dar razão em imensas coisas.
Do meu ponto de vista (sou um antiquado) tudo resulta de vivermos uma espécie de formigueiro (Duverger) nota que as formigas não têm individualidade   são peças  de um ser que é o formigueiro, são órgãos seus
Por isso me retirei para lugares mais humanos, em que os dias não são todos iguais. 
Enfim, desejo-lhe toda a serenidade possível. 
Um beijo.
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De Isabel Paulos a 06.06.2023 às 10:12

Bom dia, João Afonso. 
Os estados de espírito vão variando, mas é constante este receio de ao "botar faladura" todos os dias cair numa das pragas do nosso tempo de dizer tudo (ou pior, defender tudo) e o seu contrário com igual convicção.
Faz muito sentido a observação do formigueiro (se bem que há uma espécie de contradição: vivemos em rede como células mas não para o bem comum, não para acumular alimento e segurança colectiva/individual, mas ao que parece para criar ansiedade e insuflar egos). 
Compreendo bem a sua opção de vida. Mais tarde, tendo oportunidade, também tenciono enveredar por caminhos semelhantes.
Lá me pôs a dar um espreitadela às diferenças entre sistemas eleitorais. Obrigada. :)
Um dia bom e humano, João Afonso. Um beijo.
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De cheia a 06.06.2023 às 22:12

O querer atingir a perfeição.
Boa noite, Isabel.
Beijinhos
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De Isabel Paulos a 06.06.2023 às 22:41

Quando a imperfeição é tão mais humana. 
Boa noite, José. Beijinho.
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De Maria Pinto a 06.06.2023 às 23:36

Gostei tanto da sua guerra
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De Isabel Paulos a 06.06.2023 às 23:54

É bom saber, Maria. Muito obrigada.
Noite descansada.

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