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Espaço e tempo para dizer o menos possível. Ou talvez não. Sempre haverá o que dizer.
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E por falar em automóveis, fio da meada e novelas que ficam a meio, retomando agora os postais bem-dispostos sobre patetices que me foram acontecendo ao longo da vida e dão alegria, lembrei-me de uma maldade que fiz quando adolescente. Uma retaliação, ou talvez fosse mesmo uma atitude em legítima defesa.
Cresci numa família onde predominavam os homens em número. E mais do que sobre futebol, entre tios, primos e irmãos o tema carros dava azo a intermináveis conversas, das que me faziam sentir do lado de fora. Nas reuniões familiares havia sempre longos e chatos colóquios sobre o desempenho e a mecânica dos bólides. E para ser rigorosa, havia também carros desmontados em peças e muita ferramenta associada. Um mundo à parte do meu e das coisas que me interessavam.
Ora, no Liceu pensei estar a salvo destas manias familiares, eu que nem marcas distinguia, quanto mais modelos de carros. E tudo quanto me teria interessado em criança era que não me fizessem passar vergonhas junto da escola e pegassem de manhã, coisa que em Valinhas raramente acontecia com os do meu pai, sobretudo no Inverno por causa do gelo. E lá seguiam os meus irmãos estremunhados para a grande saga do ‘empurranço’ - saga que se prolongou por vários anos. Valiam-nos os primores, os carros a funcionar - apesar de também velhos -, e a boa condução da minha mãe. Ao longo da vida, por mais do que uma vez passei a vergonha de não distinguir o automóvel onde já tinha andado. Sim, sou daquelas pessoas a quem é trágico dizer: vai indo ter ao carro, que eu demoro mais um pouco. O que me vai salvando às vezes é fixar a matrícula. Consegui aliás a proeza de, trabalhando há vários anos para conhecida marca automóvel, desconhecer por completo a famosa designação de um dos modelos, chegando ao insólito de conversar meses a fio com um amigo na internet que usava essa designação como pseudónimo, nunca me ocorrendo perguntar o que significava.
Pelo que, e voltando ao Liceu e à parte que teria graça, quando o P., amigo do Liceu, aliás, do Glass, o café lá perto, me vinha chatear com a conversa sobre o Honda Civic que tinha comprado ou guiava ou o diabo a quatro, eu desesperava. Um belo dia, sentada à mesa com a E., grande amiga de então, vejo-o desaustinado pela esplanada fora em direcção à porta do Glass, e pensei: pronto, estou desgraçada. Dito e feito, entrou. Vem direito à nossa mesa e ainda meio a pé meio sentado, atira qualquer coisa como: é que não estás a ver, Isabel. Aquele menino tem 16 válvulas. Dei um pequeno pontapé por baixo da mesa à E., pus o ar mais espantado que consegui e disse: a sério? Julguei que os carros só podiam ter 4 válvulas. Ele: 4? E eu com o ar mais estúpido à face da terra: sim, uma em cada pneu. Ah, 5 com o suplente.
Escusado será dizer que morreu ali mesmo uma linda e promissora amizade; o amor do P. aos automóveis e a necessidade de conversão das raparigas aos encantos da condução não era compatível com tamanha burrice feminina.
Sobre automóveis tenho pano para mangas para mais postais. E isto apesar de ser uma desencartada. Sim, nunca tirei carta de condução; apesar de me ter inscrito três vezes nunca passei da terceira ou quarta aula de código, quase tantas quantas as que assisti em todo o curso de Direito - pronto, este é franco exagero, mas achei que dava um efeito giro à frase final.
Apesar deste historial gosto imenso de ver carros antigos, sim.
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