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O que faz o bule vermelho em cima do fogão em tantas fotografias das Comezinhas desde que em Dezembro de 2019 coloquei a primeira imagem de um cozinhote?
Este bule não vai ao fogão. Não é a cafeteira de vidro de chá ou café, que também tenho, de ir ao lume ou à placa de indução. O colorido recipiente bojudo acompanha-me em cima do disco desde o apartamento de rés-do-chão de Bessa Leite por um mero acaso. Calhou um dia estar em cima do disco a gás, nas vésperas de vender a casa. Achei que animava a cozinha com que sempre embirrei. Uma cozinha angulosa e de pouca luz, cujos armários apesar de terem qualidade não condiziam com a pedra de granito clara, manchada de gordura no chão junto ao lava-louça desde que comprei o apartamento. Possuía pouca luz por dar para um pátio tipo saguão aberto, através de uma porta de madeira e vidro que eu pouco cuidava de fechar à chave, apesar das muitas recomendações que sempre me davam. Para quê?, se deixava a janela da sala, que dava para o mesmo saguão desimpedido, aberta 365 dias por ano. Sala e cozinha tinham assim pouca luz, ao contrário dos quartos bem iluminados, como gosto.
À época reparei que o bule dava um toque de alegria à cozinha e seria bom para a imagem de quem faria visitas para comprar a casa. Um dos três apontamentos em que apostei na venda. Os outros: a cama feita, mas aberta com conjunto de capa de edredão e coberta bonitas, como nos hotéis, e os atoalhados da casa de banho verde alface a fazer pandã com os cestos das miudezas sobre o armário onde estava embutido o lavatório duplo. Parecem quiqueriquis sem importância, mas uma casa bem arrumada e cuidada vende melhor. Só houve visitas uma semana, e proposta logo à primeira ou segunda visita. Já não me recordo bem se a compradora foi a primeira ou segunda visitante. Digamos que o bule é uma espécie de talismã da boa sorte.
Nesta casa desde início coloquei-o em cima do fogão, no disco que raramente uso, e se lá não estiver sinto a falta. Mas calhou. A razão de ser não obedece a nenhum critério de lógica reflectida. Calhou antes da venda estar pousado no fogão e ter reparado que alegrava a triste cozinha.
Este presente apartamento, ao contrário, tem imensa luz nas duas frentes. Todas as divisões têm janela e lembro quando o sr. A. colocou os varões para as duas cortinas nos quartos e os dois estores na sala e escritório do Nuno, ter comentado que cortara um pouco a luminosidade da casa. Gosto de luz, mas já me passou a mania de miúda de achar um desperdício cortinas. É chique não ter. Associo sempre aos nórdicos, por em miúda alguém que vivia em Copenhaga nos dizer que não se usava, moda que chegou a Portugal décadas depois. Mas o certo é que se não gosto de casas soturnas, escurecidas por janelas pequenas ou com estores cerrados ou cortinas e reposteiros pesados, que dão um ar depressivo e esconso ao espaço, também gosto de andar em casa completamente à vontade, sem pensar se estou a ser vista de fora. E por mais que saiba que entre gente educada não se está a espiolhar a casa dos vizinhos, o certo é que umas cortinas finas, leves e claras, daquelas que durante o dia permitem ver para fora e deixar entrar a luz, mas cortam a visão para dentro, fazem-me sentir mais confortável.
E voltando ao bule e ao acaso. Hoje de manhã enquanto trabalhava (foi um dia intenso, não permitindo que fizesse um post) pensava como esta historieta do bule era medida das minhas opiniões. Calham. Calha incidir em determinado tema e escolher a perspectiva x ou y em função das circunstâncias presentes, do que vivi até então e do que já pensei sobre o assunto, e também daquilo que projectei. Não deixam de ser acasos e como quaisquer casualidades estão sujeitas a contradições sucessivas. Hoje por exemplo comentava com uma colega como em mais nova achava insuportável gente que falava muito dos filhos ou maridos. Catatuas, pensava. Comentava hoje que se tivesse filhos, seria uma dessas catatuas sempre a falar das gracinhas e predicados dos rebentos. Tal como se em miúda não tinha a menor paciência para raparigas ou mulheres que passavam a vida a falar dos namorados ou maridos – um bocejo de gente -, hoje farto-me de falar do Nuno. A vida dá muitas voltas e acabamos muitas vezes por a engolir as nossas certezas de momentos anteriores. E o que acabei de dizer quanto a assuntos pessoais é válido para aspectos de outra natureza, como os temas da actualidade.
E tudo isto para dizer o quê? As voltas ao mundo que dou para chegar às mais simples conclusões. Quando refiro a existência de muitos acasos, contradições e dúvidas no caso das opiniões, não é à toa ou na pretensão de dar o ar: ah, que esperta sou, descobri que quantas mais dúvidas tenho e revelo ter mais sábia sou. Nada disso, são fragilidades mesmo, reais. E a consciência delas. A cada passo sinto-me frágil, sinto-me humana. E se alguma pretensão tenho é a de reparar que remo contra a corrente, no sentido de nos dias presentes se valorizar muito mais as esfregas na auto-estima e nas demonstrações de força e certeza. É um caminho possível, já que todos precisamos de robustez para enfrentar a vida. No meu caso, porém, talvez por ter levado o suficiente no focinho - levado da vida -, habituei-me a fazer da insegurança e da consciência dela força. Creio que apesar de comum a alguns, é um caminho diferente da maioria. Calhou assim, como ter o bule vermelho em cima do fogão da cozinha angulosa e pouco iluminada, para lhe emprestar alegria.
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