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Compromissos

por Isabel Paulos, em 02.02.20

OIPCampo de Trigo com Corvos, Van Gogh

 

Começava o teu 9º ano de escolaridade, faltavam dois meses para festejares os catorze anos e, como havias escolhido a área de opção de Arte e Design, estavam escritas no horário sete horas semanais de Arte e Design e duas de Desenho.

Entraste na sala para a primeira aula de Desenho e, numa turma de apenas dezanove alunos, por serem poucos os maluquinhos com tal opção, sentaste ao lado de uma colega, que viria ser a melhor aluna nessa disciplina (sempre tiveste golpes de sorte), cujo nome deveria ser Maria José, mas não estás certa, passaram muitos anos e recordas apenas que era bastante mais alta que tu, tinha cabelo curto liso e era mais da tua idade que as outras raparigas da turma, todas mais velhas. O professor, Fernando qualquer coisa que não te lembras, nem alto nem baixo e de barriga bem-disposta, fechou a porta nas costas dos alunos e percorreu a sala com o andar descontraído das barbas e jaqueta de bolsos a condizer com as aulas que iria dar e a trautear uma cantiga, talvez no escurinho do cinema chupando drops de anis, e chegado à frente atira: sabem quem canta? Numa sala entre o silêncio e os risinhos surpresos, tu respondeste: Rita… Rita? Ele a procurar de onde vinha a voz e tu completaste: Rita Lee. Ele sorriu. E sabes que foi aquele instante que determinou teres passado à disciplina apesar da tua mais do que absoluta incapacidade para desenhar uma simples recta.

E confirmas que foi mesmo, por apesar de em todo o percurso estudantil teres a maior repugnância pelo copianço ou pela batotice, a verdade é que copiaste meia dúzia de vezes ao longo dos dezoito anos de aluna. Impunhas uma condição: que fosse à descarada, porque não gostavas de falsidade. Foi a inglês no 8º ano (sempre foste uma verdadeira negação para as línguas e para tanta coisa mais na vida), no desenho no 9º ano e em Medicina Legal no 5º ano da faculdade. Agora não te lembras de outros casos que façam a meia-dúzia, mas assim fica por ser possível que tenham acontecido.

O pretexto para o 3 na pauta foi a mais do que perfeita geometria que a Maria José (seria este nome?) desenhou na tua folha de teste, composto por apenas dois exercícios, feita a combinação, nas barbas relaxadas do professor a ler o jornal, de que quando ela acabasse os seus dois exercícios, pegaria na folha onde tu deslizavas o carvão do lápis sem a mais pequena arte ou técnica, para fazer um deles, garantindo-te 50% no teste. Bem vistas as coisas, a Maria José que talvez assim não se chame, deveria ter tirado 150%. E tu um merecido 0%. É por essas e por outras que não alinhas muito nas ladainhas mentirosas do só a mim e dos queixumes da vida ser dura. É, às vezes, muito dura e injusta. Noutras, pelo contrário, beneficia de forma fortuita quem não merece, e muitas vezes não mereceste.

A Arte e Design, pelo contrário, a primeira impressão foi de choque, a professora que queres crer fosse Rosa, mas lá está, é muito possível que assim não se chamasse, era mais velha, muito franzina e com a pele da cara muito curtida do sol e sarapintada de sinais e, horror dos horrores, passou a primeira semana de aulas a fazer-vos trabalhar com Zeca Afonso como banda sonora. Ora, tu, do alto das tuas certezas, disseste que não estavas para aturar uma comunista e deixaste de aparecer nas aulas, onde tinhas começado a fazer um linóleo com a árvore de Natal, que não deve ter ficado pronta, nem para o São João.

No Natal estavas tapada por faltas a essa disciplina e a outras, por assuntos prementes e inadiáveis te fazerem sair do Liceu. A sorte é que por erro administrativo o Conselho Directivo resolveu colocar a zeros as contagens das faltas, pelo que pudeste passar também boa parte do segundo período fora do Liceu.

No ano anterior tinhas aparecido em casa, no fim do segundo período, com cinco ou seis negativas, não sabes bem quantas, o que se justifica por uma delas ter sido dada sem querer, disse o próprio professor que te confundiu com outra aluna, nada de estranhar por teres o péssimo hábito de não te apresentares ao serviço, como mandam as normais regras de funcionamento de um Liceu, onde é suposto assistir às aulas e aprender qualquer coisa. O assunto resolveu-se num trato entre ti e a tua mãe, que agradeceu penhorada teres prometido passar de ano em troca de não voltar a pôr os pés nas reuniões com a directora de turma, para o inevitável vexame. Assim foi, leste os manuais o suficiente para fazer os testes e passar.

E foi por a coisa no 8º ter sido tão brilhante, que no início do 9º a tua mãe te inscreveu num Centro de Estudos. O resultado prático foi aumentar o leque de pessoas interessantes a conhecer e estender a habitual liberdade diária fora de casa, até depois das oito da noite, porque como é sabido há sempre muito trânsito, mesmo para quem era usual percorrer o percurso Liceu-Casa a pé. E entre o Centro de Estudos e o Liceu havia tantos assuntos prementes e inadiáveis a tratar, sobretudo nos cafés das proximidades, que viriam a ser nos anos seguintes poiso onde manterias assiduidade exemplar. Perante os maus resultados do primeiro período, até tu tomaste consciência que era de mais. E acordaste que tratarias de passar de ano, sugerindo à tua mãe o cancelamento da inscrição no Centro de Estudo por ser pura perda de dinheiro para efeitos académicos. Já que  para efeitos lúdicos o espaço se tinha mostrado bastante proveitoso.

E assim foi. Num dos últimos blocos de aulas de Arte e Design, a professora com paciência de Jó e muita sabedoria combinou que se tu fizesses, como trabalho final, uma réplica de uma pintura e, apesar de não teres feito quase nada no resto do ano, dar-te-ia a positiva. Levou-te a casa num final de manhã, onde estiveste uma meia hora a escolher pintor e obra. Impressionada pela quantidade de livros e brochuras sobre pintura, numa altura em que ainda não se falava da Taschen, e mais deslumbrada ainda pela cor e a pincelada louca de Van Gogh, escolheste-o, com certeza. Há instantes assim, certos, absolutos. E a obra, o Campo de Trigo com Corvos, foi o trabalho que fizeste nesse ano. Valeu-te o elogio muito benevolente da professora e a positiva na disciplina.

No ano seguinte acabaram as artes, as faltas e se bem que nunca mais voltasses a ser a boa aluna, que tinhas sido até ao 2º ano do ciclo preparatório, assim se chamava à época, ou mesmo até ao 7º, em algumas disciplinas como a matemática e geografia, o facto é que no 10º ano endireitaste. Acabaram as idas para a rua, a mediocridade, vingou a mediania das notas de humanísticas, compensada talvez pela serenidade trazida ao teu cérebro pela poesia de Fernando Pessoa e José Gomes Ferreira, que não te coibias de ir devorando e descobrindo enquanto decorriam as aulas. Precisaste sempre de qualquer coisa extracurricular.

E tudo se resume a essa mania ou necessidade, sabe-se lá, de ter assuntos inadiáveis a tratar fora de onde estás. O teu pé estará sempre fora, sempre fora de onde estás.






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