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Diário

por Isabel Paulos, em 04.01.23

Ontem até possuía em mente o que escrever, creio ter pensado nisso a meio da manhã, mas foi-se esvaindo ao longo do dia e à noite já pouco restava da ideia inicial, que não saberia remontar. Seria difícil arranjar disponibilidade, foram imensas as chamadas ao longo do dia. Consulto agora o telefone pessoal e vejo que ontem falei através dele com 10 pessoas (e lembrar aquele tempo de vazio total). Entre chamadas habituais e o tratamento de questões relativas a obras e seguros e sinistros. Que palavra exagerada. Mas não deixam de ser sinistras as máquinas das seguradoras, tal como as que financeiras ou operadoras de telecomunicações e outras entidades de serviços usam para atendimento dos clientes - pagam forte e feio para serem desconsiderados desta forma por gente cujo único intuito é poupar uns trocos em salários e atendimento eficiente. Tão sinistro e estridente como a sirene que tocava na carrinha a dez metros de mim, na paragem de autocarro, enquanto falava com a seguradora. Ontem de manhã trabalhei como uma mula – gosto desta palavra –, à tarde fiz um pouco de ronha, tal como estou a fazer esta manhã*. Há quatro dias por mês em que as tarefas aliviam um pouco – bom, acabo de olhar para o calendário e recordar que à tarde vou estar mais ocupada com números; entretanto recebo uma informação de colega no teams e uma chamada profissional e interrompo, enquanto a colega aqui na sala troca uma impressão comigo. Mas, não. Hoje vai dar tempo para escrever diário. Confiança. Põe confiança nisso. Voltando aos telefones, foram anos infindos de muitas dezenas de chamadas profissionais por dia. Nos últimos, faço menos telefonemas (mas trato de mais questiúnculas e passo a vida a “emailar”). Talvez por isso tenha começado a ter tempo para os telefonemas pessoais. Às vezes, gostava de saber que raio de vida pessoal me consentia. É como viver a flutuar sobre as águas, sendo estas nada mais, nada menos do que a vida que interessa. Não é que não volte ao mesmo, ciclicamente, como ontem de manhã.

Pronto, e agora feita a ladainha que corresponde às queixas de muitos contemporâneos, passo ao que ia escrever ontem. Procurei não me informar nos últimos dias, ouvi os jornais televisivos pela rama e creio não ter estado mais do que poucos minutos com as páginas dos jornais online abertas, salvo o Jornal Económico para saber com que linhas se cosem as vidas lá de casa. Antes de dormir retomei um dos livros de 2022 deixado a meio. Foram vários suspensos, não interessa quais. Desta vez não satisfaço curiosidades; imaginem que li um livro daqueles que têm capas roxas e lilases e os nomes de autoras em espécie de cornucópia e me levam sempre a pensar se aquilo será um livro ou papel de embrulho ou de forrar gavetas antigas de mau gosto. Pode ser que o mês de Janeiro sirva para terminar as leituras de 2022. Entretanto liga novamente a mesma pessoa de há pouco e interrompe-me este brilhante diário; vidas difíceis. Enquanto estou ao telefone com essa senhora, liga o Nuno – passamos o dia a ligar e chagar-nos com palavras doces e pedidos de atenção mútuos. Um enjoo só, não percam e tempo connosco –, não atendo, mas devolvo assim que desligo a outra. E ao atender essa conversa doméstica, que dura curtos segundos, reparo no alerta para uma resposta nos blogues. Daqui a instantes irei ver, não agora, a ver se consigo chegar ao que ia escrever ontem. Não, parece que não. Entretanto liga-me a perita da seguradora para marcar visita. Desligo, ligo à vizinha e com duas hipóteses de horário que acordei com a perita para ir de encontro aos interesses de todos. Fica marcado com ambas para a próxima terça, às duas. Hoje, também às duas, virá o técnico que faz trabalho de trolha para ver a varanda, perceber o que se passa e dar-me orçamento. O tempo passou e um dos computadores ficou modo descanso, tive de o reabrir por não poder estar com ele senão desperto e a dizer-me tudo quanto preciso fazer a cada momento. Num dos emails desse tenho quatro mensagens por tratar, no outro do mesmo computador está tudo limpinho. Ui, ui, volto já: na caixa do segundo computador tenho quatro mensagens por tratar, mas pior no primeiro vejo agora oito pedidos de uma das aplicações por resolver. Bom, à hora de almoço continuo este diário. Tentei, com confiança. Mas valores mais altos se levantam.

Os dois longos parágrafos acima foram escritos por volta das 11h00. Depois foi impossível voltar aqui. Nem à hora de almoço: sopa de agrião, meio pão com panado de peru, café e conversa seguido de espera do técnico para orçamento que já não vi por ter chegado meia hora atrasado. Uma vez na empresa tratei das pendências e agora, às 16h00, vou mergulhar numa tarefa mensal de fecho de mês. Demorará duas horas, talvez, findas a quais, caso não haja muito trabalho caído entretanto, darei continuidade ao presente texto. Só o deverei encerrar e rever à noite em casa.

Já estou em casa. *Parece anedota ter falado de ronha. Tive quê? 20 minutos de sossego para a escrita, que me deram a tal (ilusória) sensação de estar com uma folga. Enquanto ia trabalhando inúmeras ideias surgiram para acrescentar, mas varreram-se do cérebro. Ainda bem, vou directa então ao que ia dizer no início do post. Não, ainda não, entretanto o Ritz distrai-me com ruídos, creio que enfiou um dos ratinhos de peluche debaixo do cadeirão e está nas lutas habituais para o tirar de lá. E já que fiz um “já agora”, faço outro, na paragem à hora de almoço mais uma vez temi ser atropelada por uma das habituais marcha atrás feitas por carros mal estacionados no local da paragem, enquanto os passageiros tentam entrar nos autocarros. É um desporto como outro qualquer: desviar-me para não ser passada a ferro. E quando chove, saltar a poça de água que lá está há anos. Todos os dias contornar os carros mal estacionados. Hoje à hora de almoço trouxe uma balança já que a minha avariou. Ao que parece emagreci. Aqueles últimos 15 dias do ano foram difíceis, mas pensei que tinha recuperado nos festejos gastronómicos de fim-de-ano. Ainda bem que não.

Isto é o que se chama esvaziar o cérebro em público. Poderia haver um mecanismo de despejar mesmo tudo, sem faltas de memória. Tudo quanto pensado, passado a escrito, em directo.

O que ontem pensei escrever foi uma associação entre a memória das minhas corridas de bicicleta em criança em Valinhas e as ascensões a ministro neste país. Seria um post brilhante se me lembrasse de todos os contornos luzidios dos meus raciocínios a propósito. Mas pouco sobra e o que sobrou contunde com outros iluminados pensamentos de hoje. Contraditórios, como tudo quanto vale a pena na vida. Hesito em deixar a ideia ainda que geral, mas cá vai. Num ou dois verões no início dos anos 80, os meus primos mais velhos e irmãos resolveram pôr-me a correr em bicicleta em voltas à casa com dois outros “atletas”, os meus primos M. e G. (também joguei badminton nos mesmos moldes competitivos, dessa vez o adversário era o meu primo P.). Ontem ao deparar-me com o novo ministro das infra-estruturas, e recordando a forma como outros chegaram e chegarão, por exemplo, às pastas da cultura e da economia, fiquei a matutar que pouco os separa do espírito dessas corridas de criança. Tolinhos a correr feitos parvos às voltas, suando forte e feio, e meia dúzia de cérebros – e não quer dizer que sejam especialmente mais preparados, são simplesmente os que têm ascendente – a definir as regras, que vão mudando consoante os apetites, e restantes a dar bitaites. Dessas corridas aprendi duas lições. Devemos jogar limpo e assumir os erros. Lembro-me da sensação de ganhar uma das voltas por apertar o G. contra a sebe – anti-jogo -, e de ficar com má consciência. O bom de aprender as leis da vida em criança é saber definir melhor o que se quer e não quer para o futuro. É aprender a ser gente, a ser verdadeiro. Daí talvez a minha intolerância à relativização das canalhices que se fazem aos outros, sempre como recurso a cantigas do bandido e tentativas de disfarçar enquadrando-as em clichés diluentes de responsabilidade – reduzindo tudo àquelas evidências universais milhares de vezes repetidas nos provérbios populares, nas letras das musiquetas e na literatura, acabando todos por ficar condoídos pela dor e razões do farsolas canalhita. Todos errámos, em algum momento da vida todos fomos canalhas. A diferença estará em que uns nunca o admitem com hombridade e vivem e morrem canalhas.

Voltando à associação entre as voltas desaustinadas à casa em Valinhas com vista ao prémio de rebuçados de que eu não gostava, diga-se aparte, é essa figurinha de triste pedaleiro que vejo em muitos dos que chegam a secretários de estado e ministros. Esfalfam-se atrás de rebuçados, cheios de si, movidos pela ambição, e não passam de um joguete, de uma distracção às mãos de quem se diverte e a fazer e desfazer as regras, a comentar e “descomentar”, a elogiar e a trucidar com total leviandade – tal como nos aquários em que os peixes se reproduzem e alimentam das suas crias. Suam as estopinhas em parlapiê e jogo sujo desde novos para fazer figura de urso engrenando em grupelhos de mentores de influência movidos por interesses reles feitos de ressentimentos e intriga. Vendem-se a troco de nada que valha a pena, de tão enredados ficam nessa teia dos desprezíveis jogos de poder. Uma cadeira no governo, um cargo numa empresa ou instituição pública ou privada de relevo, convites para aceder a lugares que consideram conferir prestígio social ou intelectual ou até apenas palavras elogiosas de circunstância. Vivem e morrem insuflados em artifício, sem que façam falta de espécie alguma ao país, apesar de serem os nomes que ao longo de décadas vão exaurindo as televisões, os jornais, as redes sociais.


4 comentários

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De cheia a 05.01.2023 às 09:31

As mulas são híbridos para trabalho.


Bom dia, Isabel.
Beijinhos 
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De Isabel Paulos a 05.01.2023 às 10:41

Bom dia, José. 
Tem razão, são híbridas.  Trabalhadoras, dóceis, estéreis, teimosas e boas de coice. 
Beijinho. 
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De ROMI a 07.01.2023 às 12:31

Pus nos favoritos para saber onde vou, a partir daqui fica para o serão. Estou a ouvir Streets of Philadelphia  
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De Isabel Paulos a 08.01.2023 às 16:47

Já tens a receita do Bolo de Laranja lá em cima. :) 

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