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À primeira vista, e talvez à segunda apesar da grande volta, quantos mais mundos forem pisados mais rico é o conhecimento e a linguagem. Os périplos físicos e psicológicos dão mundo, calo e vocabulário. A forma de expressão de cada um é o repositório dos vários mundos transcorridos. Alguém nascido no Funchal terá experimentado os termos e pronúncia madeirense e o convívio diário com o mar. Uma e outra dão identidade aos sonhos e limitações. Uma adepta de um clube de futebol conhecerá as regras do jogo, vibrará com as vitórias e sofrerá com as derrotas. Um bom marceneiro conhece bem as madeiras, as árvores e o modo de construir um móvel por encaixes sem necessidade de pregos. Uma mãe pode ter mais sensibilidade para perceber a forma de tratar a maleita do bebé do que o pediatra. Quantos mais compartimentos da realidade tocarem a mãe, o marceneiro, a adepta de futebol e o madeirense mais versados ficam no mundo. Quanto mais curiosos, observadores e pacientes forem mais sábios serão. Pelo contrário, é muito comum quem não passando por tais partes do mundo delas desdenhe por falta de curiosidade, preconceito e necessidade de demarcação por presunção. E se atenha apenas a determinados compartimentos, privilegiando-os e tornando-os estanques, como se fossem via única de conhecimento. É a clausura da prosápia. Desdenha-se de uma pintura por nunca se ter perdido cinco minutos a olhar um quadro surrealista por ser absurdo, despreza-se uma música bem construída por ainda não ter o selo dos pseudo-melómanos e passa-se a dissertar sobre a dita como seu amante e connoisseur anos depois, ridiculariza-se um livro por se ter transformado num ícone universal pela triste vontade de se demarcar de manifestos artísticos democratizados para dar o ar de sólido e destacado intelectual.
É o aglomerado de mundos transcorridos que dá identidade a cada um. Esta nasce da mexerufada de vocábulos e expressões herdados daqueles com quem se conviveu e convive pessoal, social e profissionalmente, dos livros lidos e de tudo o mais que se leu, das viagens, do mundo interior e da imaginação, dos sonhos, do cinema e outras artes. Ao privilegiarmos universalmente, mediante o uso globalizado da internet, determinados compartimentos em detrimento de outros começamos a restringir aquilo que dava identidade a cada um, criando uma linguagem uniforme e pobre, apesar da aparência de democraticidade e representatividade da imensidão de mundos reunidos no espaço universal, que é o mundo online. Viver da popularidade quantificada por rankings, da imposição comercial de ideias clichés e contra-clichés e da vulgarização de atitudes de superioridade intelectual e moral é, por não permitir a expressão com identidade, o caminho da desordem e, como reacção, da tirania.
Se este texto parece defesa dos identitários não foi intencional. Pensei alto, com abertura, sem medir consequências. Não parece que seja um mau caminho. Em todo o caso, saiu muito ao lado da ideia inicial como é costume por procurar mais questionar do que registar certezas. Ficou por abordar a história ou evolução da comunicação. Talvez noutro dia.
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