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Antes de virar a página - se é que a página se vai deixar virar -, deixo mais um postal ressabiado, com os melhores cumprimentos.
Há talvez dois meses alguém próximo e a quem quero muito bem recomendava-me em tom mais de confidência do que de conselho: cuidado, assim entregamos o ouro ao bandido. Não, o interlocutor não era uma mulher, nem o tema eram as afectividades. O assunto era a opinião e a forma como a expomos e defendemos.
A ideia talvez se traduza na cautela de não colocar inteligência nem verdade nas palavras, para evitar ofender. E não verdade no sentido absoluto – de convencimento da nossa inteira razão -, mas tão somente na franqueza posta no que dizemos. Ele contava como ouvira uma conversa entre duas ou três pessoas de opinião muito divergente e elogiava a forma correcta e sem sobressaltos como foi travada. Em causa o respeito pela opinião do outro. Acompanhei-o na tese: também admiro quem consegue. Desacompanhei-o na conclusão: respeitados os mínimos de educação, não me parece que tenhamos de apagar a paixão para fazer de conta que não somos quem somos.
Não disse na altura, mas a imagem que me veio à cabeça naquele momento foi a de um vídeo que recebi no dia de Natal com a reacção de crianças à chegada de cachorros como presente de Natal. Os miúdos muito comovidos foram quase todos bastante efusivos. Qualquer um de nós que tenha a memória da chegada de cachorros na infância percebe como o coração dispara e a alegria transborda. Mas reparei que entre eles havia dois irmãos – um rapaz e uma rapariga de ar frágil e delicado, muito contidos nos gestos e movimentos. Tão presos na expressão que ao se aproximarem cautelosos do cachorro segurado pelo adulto e ao fazerem festinhas – estou a escrever de memória – usaram as pontas dos dedos. Também se comoveram - era visível -, mas não transbordaram, apesar de estar convencida que se perguntados, diriam amar muito o bicho, com verdadeiro sentimento. Cada um é como cada qual.
Esta imagem espelha muita da opinião que abunda no espaço público. Por vezes lugar-comum outras, por mais correcta e sensata seja a exposição às vezes até mesmo fiel aos factos, parece-me artificial e sem alma. Dita por ir na corrente, por ser decente. Conveniente. Há momentos que até a inconveniente não é expressa com qualquer sentimento de verdade – de franqueza -, mas apenas para inchar o ego, chocar e com isso arranjar mais clientela. Interessa a imagem que se dá, e até a falsa imagem de frontal é estudada.
Lamento, mas habituei-me a mexer nos bichos embrenhando bem as mãos e dedos no pêlo, na pele. Revirando-os, espevitando-os, rastejando com eles pelo chão. Ao cão, companheiro de passeatas e confidente de infância, além de o mimar, tirava-lhe por brincadeira os ossos dos dentes e quando moribundo tratei-o como possível, extraindo - numa última tentativa de o salvar - dezenas de larvas do peito provocadas por uma ferida grave e feia com que nos apareceu em casa depois de desaparecido por uma quinzena. Aos gatos catava as pulgas. Às gatas assistia-lhes aos partos. Gosto de mimar, não sou de passar as pontas dos dedos nos bichos, nas pessoas nem nas opiniões. Cada um é como cada qual.
Damos o ouro ao bandido? É evidente: reparo e registo. Que sejam muito felizes com ele – com o ouro e o seu brilho. E nós sejamos fiéis ao que somos. Está tudo bem, cada um com aquilo que valoriza.
Não acredito que a realidade melhore por ser efabulada em boas intenções. Não acredito num país soberano com uma dívida como a nossa e envergonha-me a mão portuguesa permanentemente estendida. Envergonha-me a corrupção. Irritam-me a mentira e os trapaceiros. Reparo em vozes e oratórias muito honradas, cheias de certezas, desencontradas nos corpos e vidas muito videirinhos que as transportam. Não acredito na maior parte das boas intenções apregoadas. Sobretudo nas políticas e nas opiniões políticas. Irrita-me que ninguém tenha coragem para dizer o desagradável e o difícil por ir contra o que a população quer ouvir. Irrita-me ainda mais que cada vez que alguém sugere qualquer coisa de semelhante seja de imediato caluniado, como se não estivesse apenas a constatar a realidade. Irrita-me mesmo a hipocrisia com que se deixam cair na solidão pessoas e gestos nobres, a pretexto de não se perder o estatuto, o lugar, as amizades de conveniência. Irrita-me a traição por motivos fúteis e materiais. Na verdade, convenço-me cada vez mais que não é a população que quer ouvir as balelas demagógicas do costume, mas quem decide e está bem instalado. Fazer melhor implica trabalho e muitas vezes sofrimento. E não, nunca advoguei teses do sacrifício nem acho que nos devamos andar a martirizar. Mas não se consegue fazer melhor à custa de festinhas com as pontas dos dedos, amiguismos e pancadinhas suaves nas costas.
O facto é que aquele que disser coisa razoável pode ver as suas palavras deturpadas e os argumentos invertidos e desvirtuados. Vale tudo pela retórica e pela mentira. O objectivo? Deve ser o de manter o país na mediocridade e na eterna dependência, à semelhança dos portugueses, cada vez menos autónomos, menos capazes, menos livres. Mais presos de movimentos, a fazer festinhas ao cachorro – que amam muito - com as pontas dos dedos.
Não é fácil estar ciente da menoridade do que aqui acabei de escrever: conhecer múltiplas objecções que inspira - sim, cada um é como cada qual, ninguém é melhor do que ninguém nem se deve colocar em posição de doutrinar os outros -, mas ainda assim publicar sem pudor o texto acreditando que por pouco que seja, alguma coisa valerá.
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