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Moralidades à quinta-feira

- actualizado -

por Isabel Paulos, em 08.06.23

Na semana passada ficou a ideia do quão ridículos e lucrativos são os conteúdos de auto-ajuda. Sempre que vou à Bertrand passo pela mesa onde repousam dezenas de livros do género com capas apelativas a prometerem fazer de nós os mais felizes à face da terra. Desde os que nos transformam em milionários àqueles que prometem dar a conhecer os segredos da escrita criativa, passando pelos que asseveram dar-nos os instrumentos para superarmos as nossas angústias afectivas. Espécie de Professor Karamba um nada mais sofisticado, atendendo ao recurso às ferramentas de disciplinas como a psicologia e a linguística. Exemplos como o da refutação da noção de culpa nas relações ou técnicas de linguagem para espoletar emoções no leitor podem constituir o ponto de viragem para uma vida de sucesso do mais desgraçado consumidor destas banhas da cobra.

Como tudo estes materiais não fariam mal ao mundo se quem os lesse tivesse espírito crítico, hábitos de questionamento e bom senso. Sucede que muitos, senão a maioria dos que procuram estes livros ou shows ao vivo de figuras públicas de sucesso, consome-os como se estivesse num serviço “religioso” de uma seita. Tudo passa a paradigma. O conteúdo entra no seu espírito como mantra, acreditando que o milagre da felicidade chegará.

E repare-se que não sou tão obtusa que não perceba que nalguns casos ganhar auto-confiança, palavras de incentivo e a própria crença numa energia ou motor invisível possa ser importante. Eu acredito em Deus (e por muitos anos desacreditei), sou por natureza optimista e sei como isso é importante para superar adversidades. E não sou preconceituosa o suficiente para colocar as religiões tradicionais em pedestais sérios e inquestionáveis por contraposição às seitas, à psicologia de algibeira e a todo o mundo esotérico. Sempre estive atenta a estes mundos. Desde muito cedo questionei o sagrado e o profano e os pontos de contacto. Mas para lá de tudo isto vem a sujeira, vem a desonestidade.

Muito do público-alvo das seitas, da psicologia lifestyle e do mundo esotérico está desnorteado. Procura respostas para conforto e procura aprender a estar melhor consigo próprio, tudo perfeitamente legítimo e humano. É muito fácil apelidá-lo de imbecil, como eu própria já aqui fiz, mesmo sabendo que até posso estar a incluir-me nesse público-alvo - nestas coisas sou bem pés no chão. Porém seria bom que não nos achássemos o máximo e nada influenciáveis por charlatães. A questão principal é que a fragilidade desse público é explorada pela desonestidade de quem quer vender livros e protagonismo ou presenças em shows televisivos ou ao vivo. A ganância e falta de seriedade domina o negócio da promoção da auto-estima.

Até aqui presumo que muitos aceitam parte do que foi dito sem especiais reparos. Mas passo ao patamar seguinte. Menos perceptível. Falemos nas subtilezas dos meandros do meio cultural ou intelectual. As considerações feitas acima justapõem-se ao mundo mais instruído.

É muito ténue a linha que separa o que são as nossas legitimas convicções construídas a partir da experiência de vida, de tudo quanto nos tocou, e a doutrinação. É assim fácil ver muitos instruídos - gente muito preparada - como pregadores de seitas ou psicólogos levianos.

Na meninice lidei com aquilo que pode ser caracterizado como clã. Ao longo da vida tropecei em várias tribos. Há aspectos que definem as tribos de sucesso. O grau de coesão é mantido com recurso a uma espécie de trapaça fácil. “O melhor” será a expressão que mais os define. “O melhor tenista”, “o melhor restaurante”, “o melhor vinho”, “o melhor livro” etc.  A promoção da auto-estima que permite a preservação e grande sucesso da tribo, a linguagem de seita, a doutrinação são feitas à custa da sonegação ou manipulação da verdade: os nossos familiares ou amigos são os melhores, o que conhecemos e vivemos é o melhor, os nossos valores e crenças são os melhores. Pode parecer muito salutar para quem está lá dentro, mas imagine-se que há gente capaz de saltar de lá dentro e vir viver para o mundo real, em respeito ao gosto pela liberdade e pela verdade. Imaginem a clubite no caso de futebol. Aqueles casos em que é penálti nítido contra nós, mas somos incapazes de o ver. Isto caracteriza as tribos de que falo. Quem diz “o melhor” diz “o mais inteligente”, “o mais bonito”, “o mais honesto”, “o mais capaz”.  O que interessa é vender a imagem de “a melhor”, abstraindo de tudo quanto tem real valor em redor, que é visto de duas formas: adversário a abater ou elemento a quem se devem extorquir riquezas em proveito próprio ou da tribo. E sobretudo abstraindo do real valor do que se pretende vender e impôr. Impinge-se poesia, opinião, música, prosa, teatro etc. como paradigmas de mestria, originalidade e rigor ou talento e ímpeto quando não passam de quiqueriquis produzidos por quem tem a suprema qualidade na praça: viver em tribo, das relações interesseiras e referências mútuas, da sede de protagonismo e da ganância. É claro que há casos de justo e merecido reconhecimento pelo mérito, mas são a excepção e não a regra. São, modo geral, os(as) que fazem menos barulho no espaço público e redes sociais, ocupados(as) que estão com a seriedade do que criam, e por vezes até tropeçamos neles(as) à saída do trabalho, encontrando-os(as) meios perdidos(as) a perguntar-nos onde é a porta do hotel.

Tomemos os exemplos da música e da literatura. É fácil fazer uma rábula humorística sobre o caricato de uma vedeta televisiva de origens humildes – em Portugal a mole de oportunistas que domina o espaço da opinião não perdoa a revelação das origens humildes a ninguém, estão demasiado perto delas para superarem o trauma – mas há muito não vemos em programas humorísticos (valeu o bom Herman José - ah, mas éramos nós que escrevíamos os textos, pensam os excitadinhos pretensiosos e mal-agradecidos; bons tempos em que ainda estavam em ascensão e não instalados nos interesses e nos lugarzitos como actualmente) gozar com intelectuais pretensiosos ou gananciosos. Se é motivo de escárnio o gosto pimba ou comercial, porque será intocável a promoção de mui medíocres melodias da autoria de notáveis ou a afectação bacoca e arrumadinha de melómanos. E se são ridículos os cursos de escrita criativa, porque não serão o comércio de cursos, as publicações online ou podcasts dos lugares-comuns da literatura dita séria. Sim, sei, ou é literatura ou não é. Pena que não sejam as auto-qualificações ou as referências elogiosas e interesseiras dos amigos que confiram real valor ao que não tem.

Afinal a moralidade encapotada não é exigível apenas aos bruxos, mas a todos, incluindo aos pregadores mais sofisticados da praça. Cada um vende a banha da cobra que tem mais a jeito e promove o protagonismo e a auto-estima à sua maneira. Escusam de se pôr em pedestais que não vos pertencem, ó eruditos da treta. Desçam à terra.

*

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Adenda: isto é feito tão em cima da mão que não tinha reparado que a primeira entrada era Moralismos e não Moralidades. Na próxima quinta-feira, se não me esquecer, decido por um dos dois termos.


4 comentários

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De cheia a 08.06.2023 às 16:23

Somos, todos, feitos do mesmo  barro.
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De Isabel Paulos a 08.06.2023 às 22:15

Sim. É mesmo isso. 
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De Maria Pinto a 09.06.2023 às 20:56

"...Eu acredito em Deus (e por muitos anos desacreditei), sou por natureza optimista e sei como isso é importante para superar adversidades. E não sou preconceituosa o suficiente para colocar as religiões tradicionais em pedestais sérios e inquestionáveis por contraposição às seitas, à psicologia de algibeira e a todo o mundo esotérico..."
Moralidades à parte, revejo-me muito aqui...
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De Isabel Paulos a 09.06.2023 às 21:19

É bom sentir-me acompanhada. Faz-me sentir que não escrevo em vão. :)

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