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Outra visita da casa da Ana Paula era a Lara. Ao contrário da Marta Soares nada apreciada pelo Pedro. Quase enlouquecia com a forma como o Rui, o marido, enfiava a cara no prato e sorvia a sopa, enquanto ela dissertava sobre música e cinema alternativo, sentada de lado e cotovelo apoiado na mesa. Alternativo era termo que encanitava o Pedro; topava a presunção. E apesar de ouvirem algumas bandas em comum e do cinema de autor ser do agrado do sofisticado Pedro, aquele modo insurrecto e rude de estar e falar arreliava-o bastante. Nessa época, a Lara trabalhava ainda num pronto-a-vestir da Rua 19, no centro de Espinho. Depressa se fartou de passar o dia entre saias travadas, camisas de gola engomada e casacos cheios de chumaços, com vista para a rua central na qual passavam as mesmas pessoas à mesma hora, mas o salário certo ao fim do mês e a independência económica falaram mais alto. Cinco anos mais tarde, atraída pela novidade dos centros comerciais da Sonae, começou a trabalhar na Zara no recém-inaugurado Gaiashooping, como subgerente de loja, o que permitia acréscimo financeiro. Trabalhar na loja de roupa mais popular entre gente nova dava-lhe gozo, apesar da pouca paciência para aturar a clientela. Pouco depois, entediou-se deste emprego e a considerou arranjar outro. Na visão da Lara, e na de muitos portugueses, não se tratava de querer trabalho, mais sim emprego. Nos cinco anos de trabalho no pronto-a-vestir conseguiu obter três baixas médicas, por períodos de pelo menos de trinta dias cada, mas na Zara tais veleidades não eram bem aceites, pelo que rapidamente foi sugerida a saída. Estava sintonizada a parte significativa da sua geração. E tinha respaldo caseiro, sobretudo do pai, funcionário da junta de freguesia desde 1977, quando se filiara no partido socialista, mas também dos primos Aurélio e Jacinto, transmontanos, migrados para Espinho no final da adolescência, na segunda metade dos anos oitenta, no intuito de fazer o curso de programação de computadores em linguagem COBOL.
Durante parte dos seis meses do curso ficaram na pequena casa dos tios. Sabido que em casa de transmontanos nunca se nega dormida à alargada família. Dormiam num canto, no sofá da sala. Tinham a obrigação de levantar, lavar-se e arrumar o espaço que serviria a família nuclear de anfitriões. O curso feito permitia o acesso a estágio e aspiravam ingressar no sector bancário. Tal como o tio, em curto espaço de tempo fizeram relações interessadas, e ainda a terminar o curso filiaram-se no PSD, a convite de um dos formadores, membro dos órgãos da direcção distrital do partido. A militância dava garantia de emprego, acabado estágio e caso não ficassem a trabalhar no banco que os acolheria. A escolha do PSD foi circunstancial; a social-democracia de Cavaco Silva ou o socialismo de Soares, então primeiro-ministro e presidente, eram conceitos abstractos que não faziam esforço de entender nem questionar. Comentavam entre si, isso sim, que o tio Ângelo e os amigos do PS falavam sempre como se tivessem a propriedade da liberdade, trabalhavam em serviços públicos e eram velhos de conversa, ainda que alguns deles tivessem a sua idade e aparentassem saúde formidável. Rematavam sempre, mas temos lá bons amigos. E tinham, sobretudo o amigo funcionário da segurança social, que conseguiu arranjar os contactos certos para obterem renda de casa paga pelo Estado, ao abrigo da legislação em vigor, destinada a favorecer a formação dos jovens portugueses. E revelara-se profundamente amigo, porque apesar da renda efectiva cobrada ser de cinquenta contos, sugeriu declarassem o valor de cem contos, em conluio do senhorio, e dividissem entre si o lucro gerado pela burla da pandilha, em prejuízo óbvio dos contribuintes.
Já o formador era um tipo novo, cheio de genica e empreendedor. Além das aulas de formação na área informática, na qual trabalhara apenas sete ou oito anos, agora prestava serviços através da empresa que criara com o amigo e colega de curso, e já criara vinte postos de trabalho, tudo com ajuda dos fundos da C.E.E. É evidente que, além de prestar serviços de assistência informática à Banca, prestava serviços a si próprio, conseguindo desviar, através de esquema de facturas falsas, alguns fundos destinado à compra do JIPE da praxe e umas verbas extras na ajuda da construção da moradia à beira-mar. Foi nessa empresa informática que a Lara entrou, anos mais tarde, para ajudar na contabilidade e fornecedores. Nunca deixou de desdenhar do patrão e da forma de servir-se da empresa em benefício próprio de forma lícita e ilícita. Mas começou também a perceber como podia tirar vantagens das lacunas da legislação ou tão só das oportunidades que iam surgindo. Queixava-se ser mal paga. E fazia notar que tinha de se esforçar no sustento a família, já que, apesar das gorjetas, o salário do marido era parco.
A Lara engrenou bem na corrente do tempo. Após quatro décadas da imposição cega de deveres, sobrevieram quatro décadas de reivindicação cega de direitos. Olho por olho, dente por dente. E se há índices certeiros para medir a desonestidade, dois deles são a prontidão no conhecimento da legislação que favorece os interesses e a amnésia quanto à criadora de deveres ou obrigações, mas também a permanente crítica dirigida a quem está numa situação de privilégio económico ainda que legítimo, numa demonstração de pura inveja. Ao longo da vida a narradora pôde verificar ser comum entre portugueses rasgar-se as vestes contra a corrupção dos políticos, dos banqueiros, dos grandes empresários, dos patrões, dos trabalhadores, dos vizinhos, dos pais dos colegas dos filhos, dos colegas de trabalho, dos adeptos dos outros clubes, enfim dos outros, enquanto se leva a vida quotidiana de burlazinha em burlazinha, a subornar funcionários públicos, a apresentar atestados médicos falsos, a não declarar rendimentos auferidos, para obter subsídios e abonos, ou tão só não pagar o inerente imposto, a declarar valores inferiores de venda de imóveis, evitando o pagamento da proporção legal do imposto, a prestar declarações falsas para a obtenção de subsídios da segurança social, a apresentar orçamentos falsos às companhias de seguro. Enfim, interminável rol de trafulhices que não se considera corrupção, tão só pela circunstância de se ser o prevaricador. Aos olhos de muitos o corrupto é sempre o vizinho do lado, sendo o próprio a vítima que mais não faz senão tentar fazer pela vida neste país injusto e desigual que deveria tê-lo consagrado a grande resistente, o verdadeiro herói.
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