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O desgosto provocado pelo fim do casamento causou danos no emprego, no qual a Ana Paula se passou a sentir peixe fora de água. Achou perder a deferência como era tratada por ser mulher do filho do grande amigo do director, e apesar do Dr. Gouveia parecer pouco interessado no destino da vida amorosa do filho do amigo, por quem não nutria especial consideração por não mostrar ambição e dignidade, as qualidades que apreciava nos homens, mas escrevia a Margarida, apesar desta indiferença, a protagonista sentia-se menorizada. O mal-estar começou a instalar-se no Solverde. Todas as razões eram válidas para engrenar em reparos entre colegas mais próximos, sobre outros menos estimados e, em especial, sobre as chefias. Recomeçava assim o festival da maledicência e do queixume, percebido por todos.
À época era hábito comentar-se, no hotel, o mau feitio da Ana Paula, e havia quem tivesse a franqueza de fazer notar o quão insuportável se tornara a colega nos últimos meses. Em Setembro de 1991 decorria pequena obra de reparação no moderníssimo hotel e o ruído de trabalhos de obra no piso inferior irrompera por todo o edifício de forma intervalada, ao longo de cerca de vinte minutos. A criatura vociferou porque se fosse ela a mandar, certamente, não haveria tais incómodos, porque só trolhas deficientes poderiam perturbar o ambiente de tão selecto hotel. E continuou: há horas próprias para os trabalhos. E, ao ver da janela um dos trabalhadores, acrescentou: aquele larilas trabalha mesmo à preto, pensa que está na terra dele em que não há leis. Apesar de se grisar ouvindo música aos berros e usualmente produzir mais decibéis em injúrias do que alguns martelos compressores das obras, a criatura achava poder descompor os outros desta forma. A mesma criatura que vinte anos depois, tocada pela novela, pelo programa de talentos, pelo reality show e resmas de comentários nas redes sociais, nos quais pôde conhecer a versão estrela televisiva ou virtual do trolha, do imigrante, do negro ou do gay, aprendeu a oportunidade de termos como racismo, xenofobia e homofobia.
À época hastear a bandeira da diversidade e do inclusivo ainda não estava em voga e, por isso mesmo, a Ana Paula não havia aderido. Na primeira década séc. XXI viria a dar lições de dedo em riste em matéria de defesa das minorias e dez anos volvidos já propunha condenações sumárias a quem não respeitasse as identidades; advogava a censura de todas as manifestações de racismo contra as raças com que engraçasse, xenofobia contra os imigrantes e refugiados que não a incomodassem, homofobia contra homossexuais com boa aparência, e misoginia de homens que não soubessem disfarçar. Mesmo se estes ódios ou repulsas estivessem fossilizadas por décadas ou séculos de distância ou se o único problema fosse não passarem pelo crivo da falta de humor, da falta de inteligência e da noção da história dos factos. Em 1991 estava longe da sofisticação mais tarde conquistada e foi, por isso, com perplexidade que, terminado o chorrilho de insultos dirigidos ao trabalhador, virando-se, deu com o Dr. Gouveia a olhá-la de modo recriminatório. Ele, em frente dos colegas, explicou à nossa esquitécia que o trabalho de trolha era tão digno ou pouco digno como o de secretária e, se a menina quisesse manter o emprego, teria de aprender a portar-se como gente civilizada, isto é, a respeitar os outros. Uma velha funcionária do hotel, considerada por todos, tentou por água da fervura, dizendo tratar-se dos nervos da colega, a atravessar uma fase difícil da vida. O director respondeu, simplesmente, que isso do nervoso é coisa de gente sem educação. As pessoas educadas contêm-se, disse.
Pela segunda vez um homem atirava à cara a falta de educação. E isso deixava-a mais do que ofendida, furiosa. Quem eram os paspalhos para se acharem superiores? Tarde ou cedo mostraria aos parvalhões de que massa era feita. Sentia-se guerreira e, neste dia, ao invés de trepar pelas paredes e desabafar revolta, resolveu planear o futuro. Revelar-se-ia verdadeiramente e estava convencida que no futuro o Pedro e o Dr. Gouveia se arrependeriam das desconsiderações. Determinou, nesse dia, arranjar emprego melhor e, meses depois, no Inverno de 1992, conseguiu o que julgava ser trabalho decente. Concorreu ao lugar de assistente administrativa do departamento de urbanismo da câmara municipal desenhado segundo o seu perfil, por cunha de familiar da amiga Lara, e assim encetou o serviço público.
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