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Adaptou-se rapidamente ao novo mundo, porque cedo percebeu o essencial. Aprendeu a questionar e detalhar as tarefas. Como hospedeira de bordo ou secretária estava habituada a desempenhar as funções sem questionar exaustivamente a razão de ser nem dar grandes explicações sobre o que fazia, salvo excepcionalmente nalguns momentos de insatisfação ou, no oposto, de pura troça. Conhecia bem os procedimentos de segurança na aviação, a forma mais eficaz e delicada de servir uma refeição ou gerir conflitos na cabine, assim como era muito hábil na gestão de agendamentos de reuniões de trabalho e assertiva na forma de ir fornecendo ou retendo informação no hotel, mas naturalmente não questionava o executado a todo o momento. Se antes sugerissem dar importância aos comentários de trabalho entre colegas ou chefias, a descrever além do razoável, toda e qualquer tarefa desempenhada por cada um, com certeza acharia ridículo. Além de mais, qual a vantagem de tal comportamento? No serviço público, porém, percebeu haver enorme vantagem, esmiuçar o sexo dos anjos faz com se passe parte substancial horário de trabalho a não produzir nada. Em muitos casos, o que mais interessa a quem manda e se quer perpetuar no poder, mantendo acadimada a mole de gente que só na aparência do discurso do interesse público se interessa pelo destino dos concidadãos. E parte do restante tempo, era gasto a conversar sobre séries da televisão. Depois de vários anos viciada nas telenovelas brasileiras, passou às séries norte-americanas. À época siderava frente à excêntrica angústia de Twin Peaks, e um par de anos mais tarde achava empolgante o Serviço de Urgência e o despique com as colegas Sara e Raquel versava sobre os atributos físicos do Dr. Mark Greene e do Dr. Doug Ross; ao contrário delas, apostava no último. Evidentemente o futuro deu-lhe razão.
As intrigas da ficção televisiva entravam também nas conversas triviais em família, perante a qual costumava gozar das colegas, especialmente da Sara, por confundir personagem e actor. A protagonista aprendera na Nova Gente ser de absoluta ignorância confundir traços de personalidade do actor com a personagem. Deliciava-se de gozo com comentários básicos sobre as abordagens de rua hostis aos actores que fazem papéis de vilões e de elogio aos que desempenhavam papéis de heróis ou vítimas, e sentenciava: só ignorantes podem fazer tal confusão. Ora a Sara, tinha dado esse salto infantil há muito. De maior amplitude de entendimento, pouco se impressionava com sentenças primárias; além de ter o péssimo hábito de achar que os actores deixavam marca na personagem, coisa estranha. Talvez um dia a Ana Paula viesse a perceber que o carácter do artista não se apaga na representação. Não confundir obra e intérprete não significa não se discutir o carácter do intérprete, ou mesmo do autor, decisivos na obra.
O local de trabalho era, àquela época, extensão da sua sala de estar. No intervalo das animadas conversas de entretenimento, cumpria as tarefas incumbidas com particular desamor e negligência. Ao contrário do que aconteceria anos mais tarde, não se podia dizer que fosse uma funcionária dedicada. Ao talento agora aprimorado na arte de bem articular palavras em rendilhado burocrático e à tendência para a futilidade, acrescia verdadeira negação para aceitar regras; sobretudo as que poderiam melhorar a eficiência. De qualquer modo, o traquejo adquirido impediu males maiores, fazendo o pedido, cumprir calendário.
Por essa altura, era usual dirigir-se ao departamento discreto electricista da câmara, o Orlando, que explorava uma loja de tintas e materiais de construção, na rua transversal ao largo Dr. José Salvador. Deslocava-se à câmara regularmente, menos por causa do trabalho como electricista e mais para habituais reuniões de acerto das condições de venda do material à própria entidade patronal ou aos empreiteiros a quem eram adjudicadas as obras. Depois da entrada da Ana Paula no departamento, as reuniões começaram a multiplicar-se. Todos os pretextos serviam, desde o extravio das notas de encomenda à correcção das quantidades e propriedades do material, valia tudo para voltar à câmara e, pelo meio, dar um saltinho ao departamento de urbanismo falar com a menina das blusas acetinadas, saia aveludada e longas unhas escarlate, cereja ou rúbeo. Ela gostava daquele modo atento. E dos cuidados e delicadezas tidas consigo. Era a primeira vez que ouvia um homem distinguir cores. Não sabia existirem. Os outros pareciam conhecer apenas as cores dos clubes de futebol, a que na melhor das hipóteses acrescentavam o claro e o escuro. O que uma palete pantone pode fazer por um homem e o futuro. Seis meses depois da primeira conversa com a Ana Paula, estava casado. E três anos volvidos, era pai de duas princesinhas, vulgarmente vestidas de cor-de-rosa.
No dia seguinte ao nascimento da Inês, a primeira filha, a recém-parturiente viu passar o Oliveira. A cunhada, mulher do André, também dera à luz no hospital. Após as apresentações, o Orlando, que além de electricista era habilidoso das electrotecnias, um tanto desasado sem ter o que dizer às várias amigas da mulher, prendeu a atenção do Oliveira, contente pela companhia e boa conversa, para desagrado da Ana Paula. Nunca gostara da amizade do antigo colega com o Carlos Alberto, não faltando mais de passar a amigo do marido. Mas, neste dia, ficou a saber as novidades sobre o colega de liceu, e isso das novidades agradava, mesmo não tivessem passado vinte e quatro horas sobre o trabalho de parto. Soube que o Oliveira fez o primeiro ano de engenharia electrónica, e desistiu porque começou a trabalhar em Aveiro, como administrativo, numa empresa de construção. O que não chegou a saber, porque ele não era dado a autopromoção, é que por mostrar talento para o desenho técnico, se iniciou ainda sem formação a fazer trabalhos como desenhador. E, em 1989, por ter feito o curso de técnico projectista teve papel preponderante e acesso aos dados da empresa, começando a programar em auxílio do armazenamento e tratamento da informação. E criara o programa de orçamentação das obras e também o de processamento de salários da empresa. A Ana Paula soube anos mais tarde, que ele se desligara da construtora e acabara por se envolver no projecto de criação de desenho digital e na criação de um portal português.
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