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O quinteto manteve ao longo dos anos amizade mais autêntica do que assídua e nos últimos jantares, no Assador Típico, a Margarida e a Helena quase não tiveram oportunidade de intervir tais os desabafos dos amigos quanto ao temperamento e manias das gajas. Isto a propósito do tema da entrevista de 2 de Dezembro de 2014, na qual Ana Paula havia escalpelizado os cuidados do corpo e da saúde. E, como era fundamental alertar os portugueses para a necessidade da alimentação cuidada e do exercício físico. Na verdade, a entrevistada não tinha dito alertar, mas sim consciencializar os portugueses, mas a Margarida temeu escrevê-lo, não fosse o livro cair em mãos de algum editor sensível, mas sem humor.
Esta amizade a cinco só existia com a abertura desejável, por os três homens se sentirem à vontade para carpir mágoas de homens incompreendidos e estarem certos de não provocarem os costumeiros juízos críticos de condescendência maternal. Se o Carlos Alberto alinhava bastante na conversa da vida saudável, não tinha qualquer hipótese junto do Luís e do Oliveira. Desde sempre, se mostraram avessos às ditaduras da moda. Neste último encontro, a conversa versou sobre daquilo a que é usual chamar coisas de gaja e deveria ser chamado coisas de tontos. Estavam tão animados na conversa que a Margarida sugeriu ao Oliveira publicasse no blogue um artigo de opinião sobre esse universo. Insistiu que seria engraçado vê-lo em perspectiva, deixá-lo perceber aos olhos dos homens, sem as tradicionais fífias e boquinhas tão previsíveis quanto inócuas. Mas o amigo esquivou-se dizendo que o blogue se reservava a coisas técnicas, e dando graxa à narradora, insinuou que ela sim tinha mão na escrita desse tipo de romances. Sem falsos pudores e pragmática como era, ela prometeu reduzir a escrito o sumo das observações dos amigos, e assim o fez, não resistindo a dar as suas achegas.
O Vicente não fizera especiais comentários quanto ao capítulo precedente, mas estacou neste ponto, quando o leu o que se seguia. Que foi isto? O namorado, atónito. Não vais incluir isso no livro. A Margarida levantou apenas os olhos, não movendo nem mais um músculo da cara ou do corpo. Não foi preciso mais, ele percebeu. Sim, ela ia fazê-lo. Espécie de manifesto deslocado no meio da história ou romance. Conhecia-a, sabia não ignorar os óbices. Este despropósito era impróprio de quem tem pretensões a ser levada a sério. Mas se insistisse, teria de ouvir pela enésima vez, a frase: não fujo da verdade. Não gostava do lembrete. Não era mulher de fugir, sabia-o. E, por isso mesmo, afugentava tantos. Não era crueza, apenas rigor visceral. Ela odiava floreados, mentiras ou omissões. E para perceberem ao que vinha, seria explicativa, sairia do registo de romance, se é que até aqui o conseguira, e daria uma de cronista. Acreditava na escrita. O romance não era simples vaidade.
E escrevia ela na sequência das conversas dos amigos, que fatia substancial das mulheres não resiste ao lugar-comum das vagas de dietas e cuidados de saúde. Se a moda é comer saladas, vegetais crus, bacon e ovos cozidos e abolir os hidratos de carbono é porque se segue a dieta de Atkins, mas só até aparecer uma mais badalada, como a paleo ou a do jejum. Pelo nome, têm tudo para dar certo. Escolher a do mediterrâneo, isso não, porque soa a comida da avó gorduchinha. Se a moda é aula de aeróbica, é melhor dançar até aprender o zumba e ficar exaurida de tanto mexe e remexe, passar então ao funk, e acabar na musculação, sendo o importante manter a inscrição no ginásio, sabido que pessoa saudável frequenta o ginásio, estando os restantes mortais destinados a morrer de enfarte, por causa do perímetro abdominal, ou a cair em depressão, consabido o exercício libertar as endorfinas provocadoras do bem estar, tal como o chocolate, mas isso agora não interessa nada porque sempre foi o bicho papão das correntes dietistas até se tornar em aliado nos últimos anos. Se a moda é cuidar dos ossos e evitar a osteoporose, tomam-se suplementos de cálcio até serem desaconselhados por prejudiciais e se voltar ao leite proscrito por acéfalos, por causa da intolerância à lactose. Se estão constipadas é melhor tomar o último grito de anti-constipal porque isso de tomar analgésicos e anti-piréticos com nomes iguais há mais de dez anos é coisa de gente antiga. Quando à constipação sucede a gripe, e o anti-gripal não funciona, lá se conformam e tomam o anti-inflamatório, desgostosas de há anos ter a mesma designação, soando a tradicional, sinal de uma de duas coisas: ou é pouco eficaz ou é cancerígeno.
Se a moda é o amarelo, ainda que até à semana anterior fosse a cor mais odiada lá em casa, logo se vai comprar o anoraque pintainho. Se o tailleur de cerimónia na montra da loja da marca mais in, se assemelha ao vestido pela princesa das mãozinhas no colo da visita à Islândia, ou pela vip platinada e pirosa que compra o serviço de fotógrafo para poder mostrar o baptizado do neto na Caras, é forçoso comprá-lo, e não havendo ocasiões propícias ao uso, vá de usá-la no local de trabalho ou em jantar descontraído de amigos. E se a moda são unhas obscenamente compridas, é melhor optar pelo massacre das unhas de gel. Se é moda o cabelo escorrido toca a esticá-lo e comprar todos os produtos e máscaras para o cabelo permanecer escorrido, brilhante e alinhado. Se a moda são as leggings, passam a ser usadas em massa, fiquem bem, mal ou assim-assim.
Há heresias. A mulher de banho bem tomado, mas de cabelo branco, cara lavada e unhas por pintar é necessariamente uma mulher descuidada e infeliz, que desistiu de si mesma. Sim, no ponto de vista da maioria mulheres, pintar o cabelo, a cara e as unhas significa ser mulher, ser feminina e, sobretudo, não se ter desistido. Isso e a depilação é o considerado grau mínimo de feminidade. E note-se não se tratar da depilação em si, feita por todas, mas o de parecer ter-se vindo ao mundo sem pêlo, além do cabelo e sobrancelhas, tal é o embaraço em assumi-lo, salvo às amiguinhas e às esteticistas ucranianas e brasileiras. Depois há a fãs e mais arrebiques na cara, no corpo, nos trajes e nos adereços, considerando-os cuidados indispensáveis numa mulher. Ser feminina é dar a imagem de feminina. Cuidar-se. E cuidar é engalanar, qualquer coisa a remeter para o mundo animal e os rituais de acasalamento. À semelhança do reino animal a exibição é uma das muitas formas conhecidas de seduzir o sexo oposto, como a luta ou o carinho, mas a busca do vistoso pelas mulheres tem a nuance de ir muito além do querer agradar ao bem-amado. É a vontade de agradar a todos, especialmente, de agradar às outras mulheres. Na maioria das vezes sem consciência raparigas e mulheres guerreiam entre si, nas escolas, entre amigas, no local de trabalho, por lugar de destaque. Concorrem para obtê-lo, e ao contrário do expectável entre seres humanos do século XXI, fazem-no mais através da imagem do que pela inteligência. Mulheres e homens acreditam ter mais sucesso, se aderirem comportamentos e tiques de moda. Sendo mais atraentes, segundo o padrão dominante a cada momento. Medem-se a si e aos outros em função da imagem, longe de imaginarem que o traje de dança mais sensual, é o da inteligência e da sensibilidade.
Parte substancial dos homens também foi engolido na voragem do aparente. Desnorteados tentam agradar às mulheres que se emanciparam de forma aparente. Nos casos felizes transformam-se em casais modelo, muito alinhados, iguais aos dos anúncios a margarinas magras com sabor a manteiga, ele de ar blasé, de camisa azul clara aberta, calças de sarja bege e sapatilhas adidas, ela de blusinha de viscose, saiinha a condizer e sapatinho de bailarina, ambos a sorrir muito para irradiar aquela felicidade pessoal e profissional que se reconhece ter sido alcançada com a prática da outrora auto-ajuda, hoje coaching.
Também eles se cuidam. Não sendo cuidar sinal de tomar conta do corpo e saúde, mas antes padronizar o corpo, tentar se aproxime ao máximo do estereótipo tido como perfeito, ainda que isso pouco tenha a ver com o razoável ou essencial de cada um. E tornar verdade incontestada ser corpo saudável o corpo magro, conquistado a pouco mais do que água, alface e fitness. E se todas estas considerações ouvissem as e os adeptos do chamado estilo de vida saudável, teríamos de ouvir sermão e missa cantada. Porque é blasfémia, porque deturpamos tudo e só estamos a demonstrar a nossa ignorância e apego aos mitos antigos. Porque nem em caricatura é assim. E tudo tem equilíbrio. Não se pense serem desajustados os termos religiosos. Trata-se de seita de muitos e muitas beatas prontos a catequizarem todos os hereges que não resistem a cometer os pecados capitais da gula e da preguiça. Todos os dias os vemos na televisão, sentados nos sofás dos programas de entretenimento ou mesmo em programas de informação, elas a gesticular contidamente, as mãos presas em finíssimos braços, e as perninhas juntas em ângulo de vinte graus a trazer à memória os namoros de sofá de meados do século passado sob o olhar atento dos pais ou as antigas catequistas das nossas Igrejas. Eles quase sempre de fatinho escuro, a recordar os Mórmons e o discurso hipnotizador semelhante ao empregado na ciência desconhecida que não se deve negar à partida, a astrologia. Imagens e discursos, que extravasam a televisão e perpassam todas a redes sociais. Cansa a quem olha de fora que não se perceba tudo ter equilíbrio, mas com dois pesos a contrabalançar e não uma voz única, cada vez mais única e poderosa, viciada em interesses económicos na área da alimentação, do desporto, do vestuário e da saúde. A indústria da imagem vendida a milhões de seguidores da suposta vida saudável.
E existe a heresia máxima, a de ser dotado de corpo volumoso ou curvilíneo. É tido como deficiência física, decorrente de excessos alimentares e falta de exercício físico ou doença grave. E tratado com o asco que as pessoas desprovidas de inteligência demostram face às deficiências. Naturalmente alvo de anedotas fáceis a versar mancos, manetas, surdos, cegos ou gordos. Após séculos de evolução a humanidade começa a entender que o cego, o manco, o maneta, ou o surdo não são maldição divina caída sobre o próprio ou a família. Também será preciso tempo para deixar de ver o gordo como o amaldiçoado. E seria bom rir tão só da diferença de cada um, nem menos, nem mais irrepreensível, recusando modelos únicos. Rir da despedida até mais ver do cego, do âh do surdo, do tropeço do manco, do danoninho fora do alcance do maneta, e do aniversário a 4, 5 e 6 de Abril do gordo, sem perder de vista que a caricatura é isso mesmo e não castigo a proscrever alguns do paraíso da dita normalidade destinado aos puros. Neste paraíso criado artificialmente pelo preconceito, só os magros de membros e sentidos apurados são dignos de ter sucesso profissional, apesar de poderem ser incompetentes, só eles são dignos de se sentarem à mesa, ainda que gesticulem o talher no ar, só eles podem praticar bom sexo, apesar de poderem temer a dimensão e expressão do próprio corpo, só eles podem durar até aos cem anos, apesar de poderem morrer aos vinte. De fora, gordos e deficientes. Apesar de poderem ser bons profissionais ou de saberem apreciar uma refeição, não encaixam bem no perfil ideal de secretária ou mesa bem-posta. Causam estranheza a muitos imaginários eróticos, porque apesar de poderem ser magníficos amantes, não renunciam à dimensão carnal ou diferença, que assusta cada vez mais adeptos do sexo artificial, praticado segundo guião ou por telepatia, de quem começa por confundir desejo e humanidade com perversão e acaba por pugnar pela ausência de corpo, esse pedaço de culpa, que a modernidade há de querer esconder.
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