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Os encontros do quinteto foram a início convívios alargados. A ideia do primeiro jantar, que reuniu cerca de vinte jovens antigos estudantes do Liceu de Espinho, foi do Alexandre e Sérgio, o primeiro da turma de ciências da Margarida, do Carlos Alberto e do Oliveira, o segundo do curso de humanísticas da Ana Paula, Helena, Lara e do Tomás e do Luís. Estávamos em 1996, tendo passado doze anos sobre a conclusão do décimo segundo ano. E deu-se quando poucos utilizavam telemóveis ou computadores, e muito menos tinham acesso à internet, uma curiosidade de alguns coca-bichinhos que entremeavam o gozo de mexericar nos originais IBM e dos popularizados PC, usando-os não só para jogos, como no apoio ao estudo ou profissão. Até há pouco, lançava-se mão de editores de texto e folhas de cálculo rudimentares, de bases de dados que permitiam gestão e organização de informação, programadas em tipos de linguagens dominada por muito poucos. E quando principiaram a ser usadas aplicações de design gráfico e criação artística nos Macintosh. E também o tempo em que se começava a aceder à internet, principalmente nas faculdades, nas quais se multiplicaram canais de comunicação através de protocolos de partilha de informação entre universidades. Usados na partilha não só de ficheiros de informação académica e técnica, como outros, mais lúdicos, concebendo o conceito de salas de conversação, mais tarde vulgarizado pela internet e fundando os primeiros passos das redes sociais. Mas fora deste novo mundo, das faculdades, de sectores profissionais mais tecnológicos ou ligados à comunicação social, a que poucos chegavam, continuava a decorrer a vida normal de século XX.
Nos anos noventa, para se localizar e falar com amigos, ainda se usava comunicar através dos números de telefone de casa dos pais, e numa fase em que se entrava na vida activa, já a trabalhar e depois de acabar os cursos na faculdade, se começava a tentar obter o número do próprio. Os números dos pais passavam a interposto de informação sobre as últimas notícias dos colegas e amigos: ah, não a Helena comprou casa em Coimbra, perto do apartamento que tinha arrendado, tipo república, quando fez o curso; sim, ficou por lá, teve um convite para ficar a dar aulas na faculdade. Ou não, não, a Ana Paula já não vive com nós, mas está perto, em Miramar, mais o marido. Não, claro, e largou a aviação, não dava para uma mulher de família, e também deixou o Solverde, agora trabalha na câmara.
E assim os compinchas Alexandre e Sérgio conseguiram localizar e reunir vinte antigos colegas de Liceu. E o jantar deu-se mesmo em casa própria, em Espinho, porque tinham aberto pequeno restaurante, ao qual chamaram Italiano. Fazendo jus ao nome, as mesas estavam cobertas por toalhas aos quadrados vermelhos e brancos, sobre as quais repousava a vela, acesa quando os clientes se sentavam. Encarnadas e brancas, queres tu dizer, comentou o Vicente, que fora ao escritório buscar uma esferográfica e lera os últimos parágrafos. Se quisesse ser possidónia, escrevia encarnados, como não, fica vermelho. Dás licença, rematou a Margarida retirando o texto do alcance dos olhos do namorado. E não me venhas com a treta do rigor científico do nome da cor, tem dó. E continuou: os pratos não iam muito além de quatro variações de pizza, da lasanha, da carbonara e do fettuccine, mas a sala não sendo muito grande, era alegre e aconchegante. Espaço óptimo para reunir velhos, mas ainda muito novos amigos.
Os anfitriões estavam como sempre descontraídos e a aproximação dos outros denunciava cada temperamento. A Lara chegou em passada firme e a sorrir abertamente, em estilo um nada negro e modo fantástico de se apresentar. O Luís chegou dócil, mas de olhar atento e vivaço, até se juntar aos poucos que já se encontravam no passeio da Rua 14. As irmãs Soares quais artistas pop, a Marta com casaco de cabedal, a Sofia de saia curta e botas com tachas, ambas de top, vinham a discutir animadamente e nem avistaram os outros a acenar à porta do Italiano. A Helena veio também de Coimbra, e abeirou-se no passo delicado. Parecia envergar o mesmo casaco de malha bege por cima da blusa de risquinhas, do último ano de Liceu, mas mais de perto percebia-se ser outro, por estar novo e ter cotoveleiras. A Helena tinha o seu modo de vestir e não gostava muito de mudar em função das modas de momento. Era normalíssimo entrar nas lojas e pedir roupa igual à que tinha no guarda-vestidos. Tal como o Oliveira, cuja camisa de xadrez, com que se aproximou do grupo em nada diferia das usadas no tempo de Liceu. As camisas folgadas, de xadrez ou lisas, os jeans e sapatos de cordões. Nem lhe passava pela cabeça algum dia vestisse outro tipo de peças de roupa. E foi de mãos enfiadas nos bolsos das calças índigo e andar descontraído, a contrastar com o olhar penetrante, que se chegou ao grupo de convivas. A Margarida veio curiosa e cautelosa, até a carteira fugir-lhe pelo ombro, cair e a engatar no pára-choques do carro estacionado em frente ao restaurante, cumprimentando os colegas ainda a rir do incidente. O Tomás também apareceu, de blazer azul-escuro, calças de tom cru e mocassins, o aspecto teso ou preso, de pescoço que não torce, e ao cumprimento do Sérgio, logo reagiu com graçola de conveniência no tom afectado que caracteriza muitos homens dito civilizados do norte e passa por falar de forma estranha, a dar a sensação de prender um arroto. Já o Carlos Alberto, continuava a falar com o bom do sotaque do norte, aos arranques e trocando os vês pelos bês, chegou de camisa estreita, clara e lisa, calça de prega escura, e aproximou-se com o desde sempre olhar envergonhado. Atrás de si apareceria a Ana Paula, em vestido justo e sapato alto, em marcha apressada e cabeça bem levantada a olhar de frente todo o grupo. Dirigiu-se a cada um dos amigos e colegas, dando dois beijos e dizendo: que saudade! Há tanto tempo não nos vemos. Então, como estás? Novidades? Dando a cada um não mais de cinco segundos de oportunidade de resposta.
Como sempre acontece nestes convívios, demoraram quase uma hora a sentarem-se à mesa. Muitas novidades a pôr em dia, muitos episódios a lembrar, muitas curiosidades a satisfazer e muita dificuldade em escolher lugar, uma vez que todos querem ficar ao lado de todos. Ou não. Já sentados, lá escolheram o menu, que nos italianos nunca é difícil, e o Alexandre pousou na mesa, para alegria de quase todos, cinco jarros de litro de sangria, combustível para ainda mais animação. Logo no início da refeição, houve um qui pro quo, porque o Sérgio decidiu segurar a cadeira da Ana Paula ao sentar-se, lançando piropo: as mais bonitas pernas do Liceu merecem o meu cavalheirismo. Ela reagiu de ar indignado, passando a meia-hora seguinte a falar em surdina com a Lara a Joana do desagradável da situação e do baixo nível do comentário. Nessa mesma noite comparou o caso ao da colega da tesouraria do Hotel, permanentemente assediada por membro das chefias. E ao longo da vida várias vezes recordava o episódio a familiares, amigos e conhecidos, rematando sempre, como o comentário: já não se pode ter umas pernas bem-feitas.
Na outra ponta da mesa, o Carlos Alberto e o Oliveira falam animadamente dos seus Hondas Civic e CR-V, cada um defendendo a sua dama, como se da namorada se tratasse. Animado na conversa, o primeiro bebeu de mais e abstraindo de cilindradas, cavalos e jantes de liga leve, e também do amigo, meteu-se com a loirinha de quem não se lembrava da época do Liceu, saindo na companhia dela antes do jantar terminar, sob o olhar atento da Ana Paula. Ao lado do Oliveira, a Helena e a Margarida foram pondo em dia os últimos anos, contando curiosidades sobre os derradeiros cartuchos da vida académica e de início profissional. A escolha da casa, os destinos de férias, das leituras, e naturalmente da intenção sempre adiada de casar ou juntar trapinhos. Nenhuma das duas via no casamento uma prioridade, a Helena porque apesar do namoro de vários anos queria certificar-se de não fazer asneira, a Margarida porque queria certificar-se de primeiro fazer as asneiras.
O Tomás hirto durante todo o jantar, passara o dito a observar a forma como a Ana Paula e a Lara conversavam com os donos do restaurante e alguns outros colegas, gesticulando de modo exuberante de talher içado na mão, e como o Carlos Alberto, entretanto saído, fizera notar que acabara a refeição, empurrando o prato para a frente. Tolhido de repulsa, aproximou-se do Luís, sossegado a fumar um cigarro, e atravessou o resto da noite a contar sucessos profissionais. A Ana Paula e a Lara passaram a noite a conversar sobre as noites mal dormidas por causas das bebés; da segunda filha da primeira e da primogénita da segunda. Das roupinhas das meninas, das papas, percentis e vacinas. Do pediatra e dos elogios ao desenvolvimento das filhas. Conversa à qual se juntou a Marta Soares, mãe de um rapaz já de quatro anos, tal como a filha mais velha da Ana Paula.
Ia adiantada a hora quando a protagonista baixou a voz e zurzir, em surdina, um rol de acusações sobre a Helena e a Margarida. A Marta tentou entender a que se referia a amiga, e logo percebeu ser apenas a azia ainda por curar do afastamento da Helena, bastante indiferente aos ditos da amiga de infância ao longo do jantar, como aliás acontecia nos últimos anos. Tentou cortar a conversa algumas vezes, mas a irmã alinhou com a Ana Paula e zombaram ambas da mosca morta e da estranha, até a Sofia dizer qualquer coisa relativa à vida da Margarida, que nem a irmã nem a amiga perceberam porque a voz dela estava entaramelada. Cansada da própria má-língua, no meio de risota solta, desatou a cantar, pedindo aos donos do restaurante para ligarem karaoke, inexistente. Ainda assim, na companhia da irmã, dos donos do restaurante e de uns tantos outros, animou-se a cantar. Entoaram em coro o La Macarena, dos Los Del Rio, o One dos U2 e o novíssimo Wannabe das Spice Girls. Cantou-se e ouviu-se o conhecido Homem do leme dos Xutos & Pontapés, a Noite dos Resistência e a Paixão de Rui Veloso. E muitos outros êxitos.
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