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Entre o dia em se conheceram na piscina e o do casamento decorreu pouco mais de um ano. Casaram em Setembro de 1989. A desenvoltura e segurança da Ana Paula atraíram o Pedro, habituado a meninas mais discretas e titubeantes. Agradava-lhe uma mulher que sabia o que queria e se mostrava sem hesitações empolgada por ele. Gostava do passo decidido, do bambolear do corpo e do ar vistoso. Entenderam-se bem no namoro e nos primeiros meses de casamento, enquanto durava a paixão. A forma da mulher absorver entusiasta o mundo e os interesses do Pedro, enchiam-no de vontades de a impressionar. A natureza coquete e as artes de sedução deixavam-no desvanecido. Os modos desenvoltos do Pedro, a maneira de a admirar com o olhar, a desenvoltura de conversa e, claro, o tipo de beleza distinto do comum, do cabelo loiro e olhos azuis, deixavam a Ana Paula focada e apaixonada.
O quotidiano inicial foi tranquilo. Valorizavam a modernidade. A montagem da nova casa manteve-os distraídos da própria natureza, voltada que estava a atenção para elementos imprescindíveis ao dia a dia. O micro-ondas para aquecer o café com leite da manhã do Pedro, as tijelas dos cereais da Kellogg’s da Ana Paula. Ou a estante da televisão, o videogravador e as cassetes VHS, alugadas no vídeo clube essenciais aos serões de cinema. A mesma estante na qual assentava a aparelhagem e as bebidas exóticas das noites mais cálidas, sem prescindir da antena parabólica que dava acesso à MTV e a RTL fora de horas e do computador para os joguinhos.
Estando ambos a trabalhar e ganhando bem, a vida financeira era desafogada e a relação com o dinheiro pacífica. Como engenheiro agrónomo, o Pedro trabalhava no imenso ministério da agricultura, sem nunca ter demonstrado conhecimento de relevo quanto a questões da terra, apenas próxima por causa dos encontros nas quintas de familiares e amigos ou, depois de entrar para o Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, das espaçadas visitas relâmpago impostas pela agenda profissional. Do curso também retirou pouco. Foi feito quase se diria sem querer, tal a falta de noção demonstrada quanto às matérias estudadas. Dispunha, outrossim, de enorme à-vontade para falar das burocracias inerentes ao serviço e fazer conversa sobre as correntes ideológicas em voga a cada momento. Um ás do social e da conversa de circunstância, sustentado no sentido de humor acutilante a que se habituara em família. Ao Pedro a vida desafogada caiu do céu, não precisando de esforço para alcançar apetecíveis comodidades. Apesar de não ter sido nem bom aluno nem técnico de mão-cheia, não sentiu dificuldade alguma em aceder logo no início da vida profissional a rendimentos abonados, e habituou-se a usar de certa displicência no aspecto monetário de vida. Era, aliás, assunto que fora educado e menosprezar, essa coisa de contar os tostões ou poupar era um tanto desprezível, coisa de gente pouco polida. Dizia à mulher que a sovinice lhe fazia lembrar os primos de Gondarém. Apesar dos muitos haveres e boa educação comportavam-se como judeus, considerava. A Ana Paula retorquia: são assim maus? Desde criança associava os judeus ao mal, pelo uso do termo popular judiaria, enquanto sinónimo de maldade, herdeiro de séculos de segregação. Na sua cabeça, mesmo após os filmes vistos na RTP e das aulas de história, não conseguia desfazer a dúvida, que colocava nestes termos: afinal os judeus seriam os vilões ou as vítimas. Anos depois, a Lista de Schindler e mais tarde a Vida é Bella, de Roberto Benigni ecoaram na consciência em força. Mas foi sol de pouca dura; encetado o novo milénio, já o anti-semitismo se disseminara novamente em parte substancial das redações de jornais, dos fazedores de opinião, depois, nas redes sociais, e, logo, a indignação sentida face à barbárie, foi esquecida. Recuando novamente ao ano de 1990, o jovem casal entendia-se e, apesar do sangue judeu de parte significativa dos portugueses e do próprio Pedro, ele não gostava de ser chamado à realidade. Temendo descobertas incómodas, desprezava a genealogia. Desconhecia a origem da fortuna da família, o faro e a esperteza de avós cristãos-novos. Muito menos lhe ocorria que a ilustração testemunhada no convívio entre familiares era a melhor das decorrências da riqueza. Seriam precisos muitos anos para perceber que a acumulação de bens pode servir óptimos propósitos e o desprezo pela dita só faz sentido se obtida de forma amoral ou servir para maus fins. Sobretudo, nunca chegou a compreender que a honestidade decorre da forma vertical de estar na vida e na forma de se tratar os outros, mais do que na acomodação e na adesão às linhas de pensamento e de regime vigente. Por mais proveitosa tivesse sido a necessidade sentida na adolescência, do início dos anos oitenta, de militar num partido de extrema-esquerda, que pena fosse apenas pelo aspecto cool da coisa, pela graça de criar atrito à mesa familiar ou alargar o grupo de amigos, e não tivesse sido pela compreensão do ajuste necessário à sociedade. Mas dava-lhe it, achava ele. Afirmava-se contracorrente, curiosidade divertida, na fase em que monumental maioria dos portugueses se dizia de esquerda ou apresentava discurso consentâneo com o socialismo radical. Ser de esquerda em Portugal nas décadas de setenta e oitenta, poderia ser merecedor de variados elogios. Porém, em abono da verdade, não podia estar mais longe de ser um acto de coragem.
Mas impressionava a noiva e isso também contava. Era um homem apaixonado. Mês e meio antes de casar, a Ana Paula saiu da TAP, um pouco para agradar ao namorado que, se achava graça à ideia de ter uma mulher viajada e às escapadelas à Paris de borla, tendia ao desejo de vida familiar mais tradicional. Por essa razão, sugeriu a amigo próximo que encontrasse emprego à namorada. E, assim, ela começou a trabalhar no Solverde, como secretária do director comercial.
Também ela gostava de exibir desdém pela contenção de gastos. Achava conferir-lhe certa superioridade, não permitindo fosse confundida com gente pobre. Precisava demarcar-se do orgulho na humildade sentida pelos pais. Pobres, mas honestos, ouvira em casa um sem-número de vezes. E a forma encontrada para dar a volta por cima, era desdenhar da falta de dinheiro. Pouca coisa na vida seria tão preciosa à Ana Paula como os bens materiais, mas havia que dissimular a carência passada, dando ar de nada ter faltado. Expressões dos pais e dos avós e tios, como a do sabes lá por aquilo que passámos, a vida custa muito, comíamos uma sardinha e olha lá, muito em voga nos anos oitenta em desabafos sobre o passado de muitas famílias pobres portuguesas, seriam abolidas pela Ana Paula. Quase injuriava os pais por as proferirem. Ninguém precisava saber dessas menoridades. Fazia questão de fazer crer e que a mãe fizesse crer o que parecia digno de gente abonada. Na sua linguagem ainda por refinar, dizia que sempre comeu do bom e do melhor, que comprava carne de primeira no talho, era a melhor cliente da ourivesaria, na qual só comprava ouro, e da boutique mais cara de Espinho, onde a mãe a ensinou a comprar a roupinha da Páscoa. Mais tarde afinou o discurso e principiou a evitar estes pormenores, por ter percebido junto das colegas do Solverde soar a conversa de gente sem educação. Antes, na TAP, não percebera os lamirés a respeito da falta de civilidade.
Formavam um casal do seu tempo, democrático não só pela miscelânea de aristocracia e plebe, tão antiga quanto o mundo, mas aos olhos dos próprios uma conquista da modernidade, mas também pelo desdém à frugalidade e à poupança, que os remetia para o passado de país velho e bafiento dirigido pelo homem, cujo nome serviu para baptizar o rapa-tachos. A frugalidade e a prudência nunca condisseram com juventude, mas nos anos oitenta e noventa, aos olhos dos arautos da modernidade, eram blasfémias no mínimo de gente velha, provavelmente reaccionária e quase de certeza fascista.
A Margarida ficou a imaginar quem poderia testemunhar o capítulo agora a terminar, mas logo constatou ser difícil; parecia impossível encontrar alguém que cumulasse três requisitos: estivesse vivo, fosse ouvido no meio do ruído insano e percebesse a subtileza dos termos frugalidade e bom senso, sem ser de imediato ridiculizado e proscrito para a terra dos ignorantes, como a voz corrente chama a toda a gente que não se verga perante as vagas dominantes e passageiras. É, aliás, curiosidade da nova era, a massificação do léxico trouxe a curiosidade de se ouvir absolutos imbecis a apelidarem de ignorante gente pensada, absolutos alarves a chamarem mal-educada a gente muito bem-educada, e por aí adiante. Democratizou-se bem a palavra; faltou democratizar a inteligência e a sensibilidade. Tarefa bastante mais difícil até porque elas não são fáceis de encontrar ou sequer comprar. Bom senso e frugalidade são termos apagados da linguagem e dos hábitos dos portugueses e de parte importante dos povos contemporâneos. Retrocedeu nos anos, lembrando-se de colarinhos gastos, virados do avesso para durarem mais meia-dúzia de estações, e de fatos com igual destino, e de tintureiros que tingiam a roupa desbotada, e de camisolas desfeitas e lã ou algodão aproveitado na camisola do próximo inverno ou verão, até ao momento em que o smartphone apitou para anunciar a entrada de mensagem na caixa de correio electrónico; devia ser o aviso de desconto de vinte e cinco ou cinquenta por cento num qualquer produto de supermercado, ou o alerta de existência de gadget sem utilidade nenhuma, ou a oferta de teste gratuito do aparelho auditivo que, em vez de três mil euros extorquidos pelas lojas dos verdadeiros, custa apenas cinco euros; o que apesar de tudo não é caro por uma pilha e um amplificador de som fabricado na Indonésia. Deixou-se embalar pelo trabalhoso cálculo de quantas camisolas de lã tricotadas pela mãe daria o dinheiro gasto a comprar o smartphone, que duraria os próximos quatro anos. Dezenas, com certeza.
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