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Começou o curso no ano da entrada em vigor de Bolonha, pelo que já não havia necessidade dos cinco anos da praxe. Mas à licenciatura em psicologia, abreviada para três anos, tencionava juntar o mestrado, de dois anos. Em cinco anos seria uma mulher diferente. Na voz do pai, uma doutorada. A Ana Paula encarou o curso corajosa, empenhando-se a estudar afincadamente, como nos tempos da meninice. Sob a perspectiva do tempo disponível, tinha o caminho facilitado. Apesar da vida atarefada de mulher e mãe de duas filhas pequenas, podia-se permitir estar no local de trabalho a ler os apontamentos e as cópias dos manuais de psicologia, que levava para o gabinete dos recursos humanos quase diariamente. Este comportamento em nada interferia com o desempenho profissional. Três quartos de hora ou uma hora de leitura de apontamentos por dia, não obstavam a que estivesse verdadeiramente concentrada nas restantes sete horas. Desligara as antenas das séries televisão, das fofocas das revistas e demais trivialidades para as ligar aos recursos humanos. De início, na elaboração de mapas de pessoal, processamento de salários, marcações de escalas, ou férias. No segundo ano, já ajudando a direcção na coordenação dos processos de recrutamento e selecção, na gestão dos processos de avaliação de desempenho ou na aprovação de mapas de férias. Tendo a cabeça bem oleada, lógica e nada poluída de inseguranças, era fácil esquematizar os procedimentos, interpretá-los e realizá-los em tempo útil sem dúvidas de maior, e se as possuía, facilmente resolvia o problema, questionando a Cidália, uma cinquentenária nos serviços da câmara desde a criação, há pouco mais trinta anos, dominando todas as matérias que poderiam levantar problemas à jovem colega. Na directora dos recursos humanos da câmara municipal, a Ana Paula encontrou mais um colo materno, capaz de enorme compreensão e abnegação. Em poucos anos estaria reformada, pelo que fez a discípula com brio, ensinando tudo quanto pode à dedicada nova colega. Ainda assim foram três anos difíceis por ter de, depois do horário laboral, arrancar em direcção ao Porto, em sentido contrário a transito, para se juntar aos colegas na faculdade de psicologia. A chegada ao Porto, ao final da tarde, era impactante. Causava-lhe estranheza a jovialidade dos colegas do horário diurno. Por vezes, os mais novos assistiam às aulas consigo. Achava-os irresponsáveis e desinteressantes, incapazes de perceber o esforço e o trabalho necessários para estar ali todos os dias apesar da vida ocupada. Já com maioria dos alunos do pós-laboral sentia certa cumplicidade. Como ao longo de toda a vida, criou laços com alguns, partilhando e tirando dúvidas sobre as cadeiras, que foi fazendo, sem dificuldade de maior.
Nos trinta minutos de caminho entre Espinho e o Porto, muitas vezes se lembrou dos colegas de liceu. Deu por si a pensar, em especial, no Tomás e na Helena. Espinhas atravessadas na garganta. O primo do Pedro, que só por este facto já lhe causava aversão, acabara o curso de direito na melhor faculdade do Porto, diria o próprio. Ou seria do país? Com jeitinho, um ranking internacional ainda a colocaria entre as mais prestigiadas do mundo. Pelo menos assim estavam convencidos, ele e a maioria dos colegas de curso. Porque não da galáxia, zombaria o Luís se ainda o ouvisse àquela época. O certo é que fora trabalhar em conhecida sociedade de advogados e parecia sair-se muitíssimo bem. A Margarida perguntava-se se não desprezara as virtudes da retórica e do elogio fácil. Afinal a prática de um e outro tinham o condão de converter o adolescente néscio em adulto bem-sucedido. A maldade induzia-a a não investigar se tal sucesso obtinha correspondência real no desempenho profissional. Se se tivesse dado ao trabalho, perceberia que o figurino não era tão mau como imaginava. Não era brilhante, é verdade. Mas, na realidade, o Tomás sempre fora esforçado e a arte do discurso e da argumentação tem o condão de obrigar o exercício mental, agiliza o cérebro e fá-lo responder mais depressa aos estímulos. E o elogio fácil tem também a virtude de aumentar a auto-estima e permitir o risco. O Tomás não sofria do medo do ridículo. Sem juízo autocrítico, estava bem consigo próprio, convencido da sua inteligência e capacidade de trabalho, pelo que se permitia arriscar, o que faz toda a diferença quando se pretende singrar na vida. Não é com inseguranças e medo de errar que se consegue progredir e ter sucesso, constatava Margarida, para no momento seguinte, hesitar. Mas, então, e a Helena? A amiga dos tempos de liceu era o protótipo da pessoa insegura e reservada e parecia ter encontrado o seu caminho. A reserva conduzira-a num percurso de lenta afirmação, e aprofundamento do saber. A discreta colega possuía grande capacidade para ouvir os outros e natural tendência a desenvolver interesses próprios. Depósito de informação despejada pelos outros ou obtido modo próprio. Como qualquer pessoa tímida, tinha a particularidade de causar nas pessoas cheias de si enorme vontade de partilharem, senão de exibirem as conquistas e realizações. Vista pelos espalha-brasas, como lorpa incorrigível ou na melhor das hipóteses aprendiz, quando se descobriu ganhara uma bagagem intelectual e emocional muito mais robusta do que própria julgara até amadurecer. Conseguiu, ao longo da vida, juntar à própria experiência e conhecimento, sempre preservados por simples recato, o conhecimento partilhado pelos que gastam o tempo relatar a vida ostentando-a com mais ou menos rodeios e floreados. E, como tudo na vida tem o justo equilíbrio, em vez de parecer, ia procurando ser experta. Uma sonsa. Desabafaria para si própria a Ana Paula ao puxar o travão de mão do megane scénic, no parque de estacionamento da faculdade.
O Vicente acabou de ler as linhas precedentes, fechou os olhos e suspirou como se desistisse. Ouviu a Margarida atrás do ombro: sim, sei, que mexerufada de vozes de narradora, de protagonista e de autora. Preferia que dissesses mixórdia, corrigiu ele. Eu preferia que não me dissesses como devo falar, irritou-se ela. Não preciso de tutor, acrescentou. Ele pôs-se em bicos dos pés, imitando a voz feminina, entrelaçando os dedos das mãos em frente e à altura da barriga e rondando o corpo em semicírculos, troçou: sim, sei, se há homens detestáveis são aqueles que dão palpites sobre o que as mulheres vestem ou que corrigem a forma como falam para sugerir piroseiras, vulgaridades ou o diabo que o valha. A Margarida encolheu os ombros. O teatrinho já tinha barbas; servia para recordá-la de uma das primeiras conversas, há mais de vinte anos. A primeira de muitas pequenas discussões. Na segunda o Vicente acusaria a namorada de não perceber nada de cinema, por não alinhar nos elogios ao desempenho de um actor, que deveria, na opinião dela, ter-se limitado ao papel de realizador. À época ficou furiosa. Preferia que a chamasse de chata, simplesmente. Era menos redundante. Como lá atrás, fechou o semblante e ele condescendeu: que foi agora? Estou a chatear ou entraste em modo do preciso de tempo para mim? Por acaso, lembrei-me agora, preciso de tempo, tenho as ideias correr, preciso de apanhar o momento, disse ela. Mas tu chamaste-me, lembras-te? Sim, lembro, está, está bem, mas agora deixa-me, saindo do escritório e começando a andar de trás e para diante no corredor. Impressionante, desabafou o Vicente. Chamas-me para ler e comentar, mas quando comento, abespinhas-te toda. Está, está bem, mas deixa-me um bocadinho, não estou chateada, sério. Deixa-me só estar comigo, pediu a Margarida enquanto atirou um beijo à passagem da porta do escritório. O namorado sentado no cadeirão da secretária, troçou: resmas delas. Resmas a quererem atenção. A pediram para reparar no que vestem ou dizem. O que elas se queixam de falta de atenção. E tu? É isto. Raio de sina a minha. Após um minuto de silêncio, atirou: meu amor, não queres discutir a relação? Rindo com estrondo. Não, amor da minha vida, respondeu ela, se não te importas discutimos a relação na décima-quarta encarnação, agora não tenho tempo. Hás-de cá vir, hás-de, ele ao passar por ela no corredor a caminho da sala e dar uma palmada suave. Agarrado pela mão não resistiu a abraçá-la pelas costas. Já viste a paciência que tenho para te aturar. Sabes o que te vale? É isso mesmo, rematou o Vicente. Enfim, um quinto de século de picardias adoçara o espírito do par, constatou a Margarida.
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