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Se a Helena era sonsa e a Margarida chalupa, escreveria a Ana Paula se fosse ela a ter a mão na Entrevista, então, o que dizer do Luís? A protagonista nunca percebera aquele colega. Achava graça a algumas das tiradas, mas nunca percebia bem onde queria chegar. Por isso, não percebeu porque havia ele dito, quando se encontraram no Alfa Pendular a caminho de Lisboa, em Janeiro de 2015, ela para acompanhar a sobrinha e afilhada ao concerto da Violleta no Pavilhão Atlântico, ele para tratar de assuntos da empresa, que duvidava voltasse a dar aulas, como fizera até há quinze anos, e em Gaia nunca, ou no Porto, ou em Lisboa, ou mesmo em Espinho. Se algum dia a hipótese se colocasse optaria pelo norte, por Viana do Castelo, ou pelo sul, no Alentejo, ou pelas beiras, junto à Serra, com gente normal, o quanto mais longe dos lugares procurados pela maioria dos colegas. Ela retorquiu apenas que Gaia e Porto não lhe diziam muito, eram só as cidades próximas onde ia às compras nos centros comerciais ou ao médico, mas Lisboa admitia. Em Lisboa, sim, gostaria de viver. Cidade cosmopolita, com mais oferta cultural, onde tudo acontece, mais arejada. E aquela luz. O Luís sorria do lugar-comum e provocava em tom leve: em Lisboa não, estou a ver-te a viver na linha de Cascais, em apartamento com vista para o mar e, à noite a assistires, com o teu Orlando, à peça Subjugadas, a peça encenada por aquela estrela da televisão, jornalista, deputada, activista, atriz, escritora e agora também encenadora, cujo nome não me lembro. Ah? Estranhava ela. E ele continuava: isso claro, depois de jantares a ostra confeitada com creme de beringela e três riscos de essência de kombu, a que o chef, dono dos vários restaurantes espalhados pelo país, decorados em fusão de mosaicos marroquinos, cortinas de tule indianas, tapeçarias peruanas e mobiliário finlandês do Ikea, deu o nome de Marejada, conceito muito português te dirá ele quando vier à mesa cumprimentar a senhora deputada na nação. Eu? Lá estás tu a gozar, interrompia ela. Sim, tu, insistia o Luís. E terás uma reminiscência da tua decoradora do final dos anos oitenta. Vais recordar esses conceitos da cozinha e da decoração. E ao fim-de-semana, vais acordar tarde e procurar a esplanada animada na qual possas tomar o teu brunch, aquele crocante de centeio sem glúten, e aroma a baga de goji, acompanhado de batido biológico, onde nada a folha de hortelã. E irás regularmente às lojas da Avenida da Liberdade, onde estranharás a quantidade de compras que os angolanos e brasileiros lá fazem. Não tenho a menor dúvida que serás feliz em Lisboa, rematou ele, receoso de ter ido longe de mais. Eu? Lá estás tu a gozar, repetiu ela. Já lá passei algum tempo, como sabes, enquanto estava na TAP. Conheço bem Lisboa. Mas agora, nesta fase da vida, com família? O Orlando tem a vida dele cá e as miúdas e tudo mais, não é fácil mudar. Se tiver de ir, vou, mas nem sei como vai ser. O Luís vaticinou: confia em mim, está escrito nas estrelas, vais ser um sucesso nas eleições e vais para Lisboa.
A Margarida esmiuçava o capítulo a rir consigo mesma do conceito. Afinal o Luís captava na perfeição o espírito da coisa. Só eles para continuarem a ir a antros de cheiro a grelha, como o Assador Típico, e deliciarem-se com galinha, costelinhas de porco, traços de vaca, espetadas de lulas ou bacalhau na brasa, acompanhadas de batatas a murro, arroz e saladas mistas e de pimentos. Que horror, que coisa de mau-gosto. Cozinha antiga mesclada pelos costumes vindos das ex-colónias. Sítios nos quais não se prescindia do piripiri. Até a frugal Helena alinhava; uma vez não são vezes e não era uma boa jantarada que iria fazer a balança ressentir-se. Há vinte anos o ponteiro andava, quando muito, dois para a frente ou trás. O carácter comedido e a natureza faziam a sua elegância. Ela e a maioria dos restantes convivas gostavam do que apetecia gostar, sem se preocuparem em dar imagem seja do que fosse. Em rigor, passavam uma imagem, a de gente saciada e bem-disposta, especialmente evidente nas barrigas do Luís e do Oliveira, e nos valentes quilos a mais da Margarida. Era patente que lidavam mal com conceitos. O amigo Carlos Alberto era o único que os dominava; mantinha numa forma invejável à custa da moda de sushi e gym, em perfeita harmonia com a consola em ésse no átrio do seu apartamento. Tremia face à possibilidade de os amigos voltarem a ter a ideia de ir à Cozinha do Manel, comer o Cozido, ou à Abadia para as Tripas. Com tantos restaurantes novos e com bom look, de tapas e petiscos, espalhados pelo Porto, tinham de escolher casas sem personalidade, moía ele. Nunca fazia bem a digestão desses almoços ou jantares. Se queriam comida tradicional portuguesa, concedia que fossem ao talentoso António, em Leça da Palmeira, Imbatível no cabrito e no polvo, concordavam todos. Mas não se pense que não cometia os seus pecadilhos; transigia na regra da contenção e não perdia a oportunidade de pegar num gin, servido em copo de balão, a única bebida alcoólica que bebia desde 2010, altura em que abandonou o hábito da Caipirinha, que aprendera a gostar, nos anos noventa, na vaga dos restaurantes de rodízio. Coisas do passado. Mas vinho à refeição não podia. Caia-lhe muito mal, pelo que as duas garrafas de tinto acabam sempre por ser divididas apenas pelos restantes quatro convivas, não sem o Luís perguntar no início dos almoços se as meninas não quereriam antes branco. A Margarida e Helena entreolhavam-se, sorriam e acabavam por dizer, salvo se a escolha do prato fosse lulas na grelha, estas meninas ressessas querem maduro tinto. O Carlos Alberto estranhava aquela forma de se referir ao vinho. Para ele ou branco ou tinto. Essa confusão antiga de maduro branco ou verde tinto era coisa de gente perdida nos tempos dos avós. E até por isso, achava uma forma de ignorância. O Luís e o Oliveira agradeciam, sabendo que assim mandariam vir duas iguais, e elas não beberiam mais do que dois copos; era bom negócio. Isto claro, se não fossem na cerveja, infalível para assistir à galinha no churrasco.
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