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Terminado o curso, o Luís estreara-se a dar aulas de geografia no ensino secundário. Nos primeiros quatro anos deambulou por algumas escolas do norte do país, até arranjar colocação em Gaia. Mas a incursão no ensino durou apenas sete anos. Enquanto andou por fora, em escolas pequenas de meios rurais do Minho e de Trás-os-Montes, sentia-se bem a cumprir um papel, o de professor. Os miúdos, mais ou menos barulhentos e mais ou menos interessados, iam à escola muitas vezes contrariados, mas aprender qualquer coisa. Ao contrário dos encontrados nos dois anos em que deu aulas em Gaia e no Porto, onde não conseguia fazer perceber a criaturas a rondar os dezasseis anos, que havia o que aprender. Estavam todos convencidos saber tudo e tudo poder ensinar. E entre a indisciplina e estupidez generalizada era quase impossível levar algum conhecimento aos poucos que se mostravam curiosos e interessados. Por isso, em 1996, tratou de arranjar colocação no segundo ciclo; achou graça a leccionar a crianças de dez e onze anos, na idade das descobertas. Ainda não estavam estragados pelas certezas que dominam o mundo adolescente, o universo moderno. Ali a missão de ensinar voltaria a fazer sentido. Mas se os miúdos o inspiravam, os colegas nem por isso, pelo tédio demonstrado por alguns em ensinar seja o que for a crianças. Conflituou bastante com o professor encarregue da direcção de turma. A atitude na escola deste ilustre docente pouco diferia da conhecida dos miúdos indisciplinados a quem dera aulas nos dois anos anteriores. A postura de enfado imbecil era a mesma. Tivera o azar de apanhar um frustradíssimo colega de profissão, cuja verdadeira vocação seria estar no guiché a preencher formulários e carimbar documentos, entre atestados médicos e licenças. Dono e senhor de profunda incapacidade de expressão oral e escrita, fundada na enorme ignorância, o espécime considerava-se um investigador de mão-cheia, destinado a trabalhar no ensino superior, mas injustiçado e atirado para o trabalho menor de lidar com crianças. Empenhara-se no mestrado e no doutoramento em ciências ocultas, perdão, em ciências da educação, produzindo teses ideológicas, sem qualquer critério científico, que envergonhariam um aluno de liceu, de mediana inteligência. Para o efeito os contribuintes pagaram a bolsa ao senhor professor que, claro está, nunca pusera a hipótese de pagar o mestrado com o esforço do seu trabalho. Ensinar a crianças menorizava-o, e a conjugação da bolsa paga pelo estado e licença sem vencimento permitia o melhor dos mundos ao logro da ciência, que ainda assim reclamava do curto período de atribuição, quatro anos, e do montante da bolsa, miserável, na opinião dele, apesar de corresponder a bastante mais do que muitos têm, esforçando-se, para sustento da família. E quando a facilidade terminou, regressou à escola para desdenhar de alunos, de colegas e de funcionários, e claro, perorar sobre o péssimo estado do ensino em Portugal e questionar todas as políticas do sector. Acabava por ter respaldo em muitos outros professores insatisfeitos. As razões da insatisfação eram vastas, mas a Margarida concordava com o Luís, quando chegavam à conclusão de que os bons professores, os que respeitam e instruem os alunos apesar das dificuldades, são sempre os que menos se queixam do estado da educação do país. Talvez seja uma questão de aproveitamento do tempo. Os bons professores estão ocupados a preparar aulas, cingindo-se à matéria a leccionar, sem parangonas ideológicas ou azias e frustrações. Estão determinados transformar as horas passadas com os alunos em momentos de aprendizagem e de respeito mútuo. Estão a corrigir testes, cingindo-se ao acerto da resposta, sem se deixar cair em estimas e ódios, que resultam de preconceitos quanto à aparência, ao carácter ou aos comportamentos dos alunos. Estão focados na ideia de ensinar. O foco está nos alunos e não em egos mal resolvidos ou ambições financeiras goradas. Aos professores que deixam marca não sobra tempo, se não para viverem a vida fora da escola, cientes de dentro dela terem actuado como bons profissionais.
Depois da incursão no ensino num grande centro urbano, o Luís ponderou voltar a concorrer para a escola onde mais gostara de dar aulas. Pegar em armas e bagagens e rumar à, então, aldeia de Arcozelo, em Ponte de Lima, entretanto elevada vila, e lá assentar arraiais, mas a vida dá voltas e desafiado por amigo de longa data a criar uma empresa, foi para perto, Santa Marta de Portuzelo, em Viana do Castelo, não dar aulas, mas produzir estruturas metálicas. Quando comentava os planos na escola, sentia a perplexidade da maioria dos colegas. Onde? Estranhavam eles. A ideia do Luís assemelhava-se a um mundo ao contrário. Este estranho colega fazia o percurso oposto. Queria inverter a normalidade. Parte substancial dos professores, como o grosso da população das grandes cidades portuguesas, viera de terras mais pequenas, de aldeias e vilas espalhadas pelo país e de lá fugira à procura da oportunidade de uma vida confortável. Gostavam de lá voltar, matar saudades dos poucos familiares que ficavam. Em muitos casos, voltar à terra significava demarcação do passado; era preciso vê-la para confirmar que já não se pertencia àquele lugar e àquele tempo, mas a um mundo diferente, moderno e melhor. Ou, então, em muitos casos, provinham dos bairros pobres das grandes cidades, em condições de vida muito frágeis, mudando-se agora para as urbanizações e zonas habitacionais novas e melhoradas, que cresceram exponencialmente ao longo das décadas de oitenta e noventa.
O país mudou radicalmente em trinta anos. Nas cidades portuguesas, até aos anos oitenta, salvo uma franja de privilegiados, estava instalada a pobreza tanto ou mais do que nas zonas rurais, nas quais o recurso à produção de subsistência permitia acesso a víveres. Entre os anos sessenta e os anos noventa o país essencialmente agrícola transformou-se num país de serviços. Deu-se a migração de milhões de pessoas das zonas rurais para as cidades ou suas periferias no caso de Lisboa e Porto. Moldou-se o novo-citadismo, versão de novo-riquismo, que se manifesta por suposta superioridade dos habitantes de cidade, alegadamente mais evoluídos. Ideia longe da verdade, já que a riqueza e o grau de civilização de um país só podem decorrer da educação e do conhecimento. Enquanto não se diferenciar educação de dinheiro e consumo desenfreado, e conhecimento de deslumbre e adesão às modas de cada momento, o país vai manter-se ignorante, atrasado e pobre.
A democratização do ensino além da primária, o aumento substancial da média dos anos de escolaridade e o jorrar de fundos europeus mudaram o país. Proliferaram as infra-estruturas e o emprego, sobretudo nos serviços. Muitos portugueses puderam migrar para as cidades, e juntando-se aos que já cá estavam em pobres condições, puderam comprar casa e carro com recurso ao crédito, percorrer as novas vias rápidas e auto-estradas e desembocar à porta da sua terra, por altura da Páscoa, das vindimas ou perto da altura do Natal.
A ascensão à qualidade de citadinos enriquecidos passou sobretudo pela imagem e pela linguagem. Antes de mais pelo modo de vestir e de se cuidar. A saia redonda preta, camisa clara, lenço, avental na barriga e chanatos abertos delas, e as calças castanhas, camisa branca, chapéu e chanatos fechados deles, deram lugar a todo um mundo de cor e novos cortes e texturas do pronto-a-vestir. O sabão rosa ou azul da mercearia e da drogaria deu lugar a infinita gama de champôs, sabonetes e geles dos hipermercados. O cabelo natural apanhado em puxo deu lugar a muita tinta, à mise e ao escorrido, cuidado no cabeleireiro, e o verniz berrante das unhas passou a certificado de modernidade. O vocabulário também mudou, os arcaísmos ficaram lá na terra ou no bairro, e hoje nos supermercados, nos bancos, nos cabeleireiros, nas empresas, nos centros comerciais, na rua ou em qualquer lugar onde se respire, reinam os advérbios de modo, os estrangeirismos, os termos da medicina, os preciosismos e todo o tipo de rebusque. Como diria a avó do Luís, nos idos de sessenta, aprenderam a falar como professoras de liceu. O português deixou de enjoar nas estradas portuguesas, de curva contracurva, para passar a ter náuseas por sobreviver a cinco horas consecutivas ao sol tórrido do Algarve no mês de Agosto, onde chega pela auto-estrada. Passou a acorrer em massa às urgências dos hospitais por causa de comichões e nódoas negras, ascendidas à categoria de reacção alérgica, pruridos, urticária e hematomas e, por isso, a novo grau de gravidade. O português enche as farmácias, florescidas à custa não só da desejável boa saúde dos utentes, mas também de uma panóplia de cremes, pomadas, pastilhas e bugigangas que só servem para entreter muitos com a ideia fútil de serem gente supostamente informada e cuidada. E aí se o salário ou o subsídio do estado não é suficiente para pagar todo este arsenal de luxos entorpecedores. Se isso acontecer vamos ter de ouvir vezes sem conta que o país está de mal a pior e falta o essencial, a miséria grassa e a saúde dos portugueses está em causa. Quando os portugueses cuja saúde está em causa são felizmente menos, apesar de serem cada vez mais os mesmos. Gente sem tempo de antena nas televisões e nas redes sociais, que vive de muito pouco, apesar de trabalhar uma vida inteira, e que nunca teve acesso a maior instrução. Gente sem capacidade de se fazer ouvir, ou porque acredita em coisas fora de moda, como o respeito pelos outros, ou porque tem medo de exigir o que merece, ou vergonha de viver da pedinchice, vista em concidadãos espertalhões. Porção do país desprezada por quem perora na comunicação social e redes sociais e por quem decide no Estado, e permite que essa fatia do país viva de salários e reformas miseráveis. Gente que nunca deixou de ser pobre, no campo ou na cidade. E mudos, longe dos gritos entoados sem esforço digno de consideração dos reivindicadores profissionais de regalias e privilégios, vivem com o pouco conquistado pelo esforço do trabalho e da contenção. Respeitar esta gente muda, reconhecer o seu valor e pagar o devido parece menos importante do que subsidiar os inúteis voluntários e fazer frente ao fosso entre sugadores e explorados.
O grande fosso do estado novo, que dividia o país numa trincheira que salvaguardava a pequena minoria de privilegiados do país restante, pobre, analfabeto e opaco deu lugar à transparência dos muitos fossos. Fora desta trincheira, mantida até hoje bem à vista, na perspectiva económica, porque os altamente privilegiados continuam a sê-lo, estando o poder económico ainda mais concentrado em poucos, existe um sem número de outros fossos, o que separa o campo esquecido e a cidade prometida, como se a primeira tivesse sido proscrita do futuro e carimbada com o rótulo de passado, a visitar numa escapadinha de memória nostálgica.
O fosso que divide o trabalho precário e mal remunerado do sector privado, do trabalho mais seguro e melhor remunerado na função pública, ou o fosso que divide empresas entre as que produzem e as que vivem à custa do erário público. A alusão a estas desigualdades é sempre sujeita à acusação de se estar a criar conflito desnecessário entre portugueses, e vai continuar a consumir a riqueza do país, não permitindo que se desenvolva e crie verdadeiro conforto aos portugueses como um todo. Medo de enfrentar a realidade, decorrente do poder encrustado em lugares na função pública e do tecido empresarial dependente do estado, leva governantes e fazedores de opinião a alimentar a fábula impostora do perigo da implosão do regime democrático, caso se mexa nessa base estável de eleitorado. Pretende-se, tão só, a perpetuação do status quo, através manutenção da base eleitoral dos partidos representados no parlamento, assente em aparente democraticidade dada por encenações de inconsequentes debates de ideias e críticas, que qualquer ser humano sensato percebe ser fantochada para entreter a opinião pública cada vez menos submissa e capaz de engolir o engodo. À custa da evidente pobreza do país, quando comparado com o que poderia ser, no seio da união europeia, e da perpetuação de desigualdades económicas e sociais gritantes.
Os debates são invariavelmente os mesmos. Pela esquerda o bolo deve ser entregue a quem tem fome, pela direita quem tem fome deve ter acesso ao bolo. Para os primeiros o custo da entrega fica a cargo de quem não tem fome, ou pelo menos não tem tanta fome quanto quem tem mais fome. Para os segundos o acesso decorre do grau de capacidade do esfomeado para aceder ao bolo. A esquerda e a direita encontram-se no ponto de convergência dos mínimos civilizacionais, representados na defesa do estado de direito, que é a verdadeira sopa de pedra. Tem tudo, menos a pedra. A elite civilizada, venha de que quadrante político vier, que teve o tempo, a sorte e às vezes o empenho, de perceber a superioridade moral dos estados de direito resultante da distância que marca do olho por olho e dente por dente imposto pela barbárie, não parece perceber que o estado de direito não é um dado adquirido, mas uma vitória ou derrota a cada momento e, sobretudo, se a lei deve ser geral e abstracta, quem a decreta, executa, administra e quem com ela se conforma, é particular e concreto. O que muitas vezes significa que a defesa intransigente dos ditos mínimos civilizacionais, sem conhecer o terreno de aplicação das leis e a natureza humana, tem o efeito contrário ao pretendido, criando injustiças muito maiores das que se pretendem combater. A defesa insensata do estado de direito é, em alguns casos, o escudo onde se esconde a preguiça civilizada na aceitação das maiores aberrações, e o bem-comum, a pedra perdida desta sopa.
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