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        Se do Carlos Alberto e outros colegas e amigos de liceu, perdera o contacto, com a Helena conseguiu restabelecê-lo por volta de 2011, quando a filha mais velha ingressou no ensino superior. Sem alarde e contrariando a intenção dos pais, que concordavam casasse em Espinho, numa pequena quinta com casa destinada a festas, a Helena resolvera casar em Coimbra, onde vivia desde os dezoito anos. Tinha plena consciência que a decisão de ir para Coimbra, e de lá permanecer depois de acabado o curso, fora a mais acertada da sua vida. Desta forma, conseguiu espaço para respirar e ganhar a autonomia necessária, e confiar em si própria, vingando como gente. Não via a Ana Paula desde o jantar de convívio em 1996. Por isso, estranhou quando, em 2011, recebeu o telefonema da amiga de infância, a comunicar que a filha mais velha, Inês, iria para Coimbra fazer o curso de design e multimédia, pelo que, disse-o sem rodeios, contava com a velha amiga para dar o apoio necessário. E, nos três anos seguintes, os encontros sucederam-se um pouco contra vontade da Helena, cuja tranquilidade entretanto alcançada já não fazia tolerar as invasões de espaço e a falta de freio da antiga amiga, que se pespegava em sua casa com marido e filhas, a atazanar alguns sábados. Tardes passadas a seis. As miúdas deslocadas na sala apinhada de livros, vinis e cd, esses estranhos objectos do século passado, que sobreviviam naquela casa lado a lado com plantas da mais variada espécie. O par de homens a procurar temas de conversa comuns entre silêncios custosos, que só se diluíam no desviar do olhar para a televisão. O comando a distância conveniente de duas jovens curvadas sobre os smartphones, por onde deslizavam os polegares. E o par de mulheres em que uma falava quase interruptamente e a outra balbuciava hums, hums, pois, pois, e outros monumentos da eloquência, intervalados com tentativas de desviar a conversa de assuntos que não se cravassem em coisas ou pessoas. Em tentativas raras de agradar aos donos da casa e, num misto de vontade de exibir a sua ilustração, a Ana Paula recordava tempos antigos, o expendido filme de culto do genial Tarantino, o Pulp Fiction, ou os saudosos e fantásticos Nirvana, e seu som alternativo. Filme de culto e música alternativa eram expressões adquiridas nos anos noventa e que a elevariam ao patamar das pessoas que riscavam. Ou seja, da mole de gente que consumia e gabava tudo quanto era vendido com o rótulo de exclusivo.

       Mas, como sempre, o mais marcante destes ocasionais sábados era a preponderância imposta pela Ana Paula. Gostava da ressonância das suas palavras, gostava de se ouvir e gostava que a ouvissem. E falava por cima dos outros. Achava perda de tempo ouvi-los, a não ser que lhe contassem uma história de intriga, daquelas que detonam a curiosidade e a bisbilhotice. Saber dos outros, como se sentiam face a determinado acontecimento ou circunstância, o que os interessava, o seu dia, as suas alegrias e tristezas, era tudo desperdício de tempo. Do ponto de vista da Ana Paula, o tempo seria sempre melhor usado a falar de si própria ou a falar de agrados e ódios do que a ouvir os outros, que acha invariavelmente terem vidas chatas ou sem importância. Tudo gravita à sua volta. E mesmo como mãe, apesar da aparência de mãe zelosa, cuja imagem promove junto de familiares, amigos e colegas de trabalho, dando a ideia de mãe galinha sempre a par da vida das filhas, a verdade é que as trata como meros satélites. Nunca lhes dera importância como seres autónomos que merecem respeito, atenção e incentivo pelos seus interesses, escolhas e decisões. Não havendo coincidência exacta com aquilo que considera ser a orientação certa dos satélites, despreza todas as vontades, opiniões e decisões, não por prejudicarem os rebentos, mas pelo motivo fútil de não corresponderem à imagem de sucesso que criou ou tão simplesmente por não ter tempo ou pachorra para as aturar. Duas palavras a definem: primeiro eu.

       A filha mais velha, a estudar em Coimbra, era rapariga determinada e segura de si. Puxara à mãe, impondo-se facilmente aos outros. Já a Mariana, era uma miúda retraída e confusa. Sofria de sensação de inadequação e, em família, não conseguia ultrapassar as dificuldades. A mãe e a irmã eram incapazes de a compreender e de permitir que manifestasse o temperamento. E, ao cabo dos anos, o retraimento crescia na directa proporção do aumento de investidas no seu espaço de afirmação, criando o círculo vicioso que dificultava a definição do carácter da Mariana. A Helena percebeu facilmente os sinais, e aproveitou alguns momentos daqueles sábados, para conversar com a ela, dando respaldo que a miúda até, então, só encontrara em amigos da sua idade. À Ana Paula parecia estranha a cumplicidade estabelecida entre a filha e a velha amiga. Como é que uma miúda de quinze anos alinhava nas tretas desenxabidas, como plantas ou pintura, e gostava daquela casa tão pouco clean. O pó dos tapetes, dos livros, das telas e das plantas impressionavam negativamente a Ana Paula, que se tornara obcecada pelas limpezas, por causa das alergias. Além de mais a leitura, a pintura e a jardinagem eram coisas de reformados e desocupados. Gostaria que a filha se interessasse por coisas próprias das raparigas actuais. Que criasse uma página na internet sobre cosméticos, ou desenhasse uma colecção de biquínis ou monoquínis, como a irmã fizera com grande sucesso entre as amigas, ou um blogue sobre moda ou viagens. Qualquer coisa assim feminina e desempoeirada. Mas a filha mais nova desiludia-a; tinha interesses e amigos esquisitos e chatos, e agora mais esta, achava piada aquela casa cheia de poeira.






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