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        Passou o fim-de-semana seguinte a ler o caderno dos pais da Margarida. Deu por si a tentar decorar definições. Mas depressa percebeu não ser suficiente. Não se estava a preparar para o exame da faculdade, mas para debater conceitos, até então, nebulosos. Começou pelo conceito de liberal, que a deixara perplexa nas últimas conversas dos compinchas de partido. Dizia-se liberal desde a adolescência. Achava, aliás, uma marca que a distinguia das mulheres do seu círculo familiar e social. E a perplexidade nas conversas decorria da animosidade demonstrada pelos comensais face ao liberalismo. A Ana Paula desconhecia a existência das várias facetas, e se a dos costumes coincidia tenuemente com aquilo que considerava ser uma pessoa liberal, as facetas política e económica e as suas derivações eram todo um mundo desconhecido. Não percebera até ao momento que a liberdade de expressão, a igualdade de género e a defesa de eleições democráticas são bandeiras da doutrina liberal. E nunca se questionara sobre a legitimidade da propriedade privada ou sobre a liberdade de mercado. Por isso, não percebia o tom insultuoso dirigido pelos convivas às pessoas do quadrante político oposto. Passeou-se também pelo capitalismo e pela propriedade privada. E só aí pôs em causa o afirmado pelos novos amigos. Afinal, o capitalismo não lhe parecia tão mau. Ter propriedade, ter a propriedade dos meios de produção, pagar a quem trabalhe e acumular riqueza não lhe pareciam princípio de vida errado. Só colocava em questão o montante da retribuição pelo trabalho, em momento algum, a questão da legitimidade da propriedade plena dos meios de produção pelo capital.

         A Margarida achava piada à socialista não ter sequer um lampejo de dúvida sobre a propriedade dos meios de produção, de se limitar a considerações sobre a justiça do salário, não questionando a própria existência do trabalho assalariado. Não só o comunismo estava arredado das ideias da Ana Paula, o próprio socialismo era apenas palavra vã. Como é habitual as decrescências das doutrinas, acabam em balofices inúteis.

       Cândida, a narradora admitia a hipótese de colher as melhores potencialidades do combinado liberalismo e socialismo, depurando de imperfeições e perversidades os rebentos capitalismo e comunismo. Não desconhecia os desfechos autoritários do comunismo nem as desigualdades gritantes no seio do capitalismo. Atrevida, a narradora achava que seriam arestas a limar na evolução do híbrido de liberalismo e socialismo, a antecâmara do novo estádio de civilização. Chegada a este ponto, já ouvia os brados pelos milhões de vidas perdidas nas ditaduras comunistas e as reacções inflamadas contra a exploração pelo capital. A aversão total de uns por outros, impedia-os de ver o óbvio: a sensatez aconselha a concertação destas doutrinas políticas e económicas, corrigindo as arbitrariedades. A única forma de impedir os desvios autoritários e nacionalistas e mais uns milhões de mortes escusadas. Não se tratava de manter a mera convivência pacífica entre dois mundos teóricos díspares, que se revezariam no poder, em governos indistintos, dirigidos por políticos fracos e capturados por interesses duvidosos, agarrados ao poder, perpetuando lugares e benesses para os próprios e apaniguados, com o conluio dos intelectuais vigentes que, ao lançar mão de críticas inofensivas, mostram quão farsantes são. Maravilhados pela forma como a nova democracia favoreceu alguns, mormente eles próprios, esquecem os outros, a imensa mole de gente descontente, sempre enxovalhada pela elite bem instalada. Os potenciais eleitores de populistas. Fartos de ser aldrabados, enxovalhados e destratados por um grupo pessoas cheias de certezas e de superioridade moral e intelectual. Alvo da chacota primária por quem regozija a eternização das injustiças, milhões de trabalhadores, tantas vezes mal pagos, vêem os impostos desembolsados serem canalizados para enriquecimento de corruptos, de lapas requintadas a meras baratas do poder. Deparam-se com o tráfico escancarado e despudorado de votos de subsídio-dependentes e de reivindicadores de qualquer causa da moda, fácil de satisfazer, ou de fanáticos de democracias faz de conta. Vêem empresários sufocados por impostos e obrigações legais a visar única e exclusivamente a proliferação de monopólios e o favorecimento de grandes grupos empresariais, que têm a possibilidade de se deslocalizar e de fugir à carga fiscal, conseguindo minar a sobrevivência de qualquer negócio de menor dimensão. Condenados à nascença pela liturgia da consultoria financeira internacional que, desfasada do genuíno, sentencia à morte, pelo mundo fora, todas as realidades não enquadráveis em estudos e linguagem infundada e especulativa. Vêem ainda populações rurais militantemente menosprezadas ou simplesmente esquecidas. E produtores agrícolas constrangidos a praticar preços de venda irrisórios, totalmente desfasados do custo de produção, mais uma vez a troco de subsídios, que enviesam qualquer possibilidade de uma economia justa e séria.

        Em vez de perder tempo com propagandas políticas patéticas que vão ao encontro de cada anseio, de cada indivíduo, a cada momento da existência. Em vez da atraente e moderna defesa das identidades, da cura prometida para mágoas e ressentimentos individuais e, tantas vezes, mesquinhas, propunha-se encontrar um denominador comum da base da sociedade. Soluções a servirem o bem-estar da colectividade. Sorria com a concessão. Ao fim de trinta anos deixara de sacralizar o individualismo e a liberdade individual. Para tando bastou ver a ideia levada ao absurdo, percebendo que tudo tem limites, até a liberdade.

        Não se tratava de manter democracia nos actuais moldes, mas sim reformar este frágil regime, antes que seja engolido pelo populismo. Com a linguagem do real e do concretizável. Fazendo concessões efectivas e palpáveis às populações, que veriam a sua integridade respeitada e, se possível, as vidas melhoradas. Não em resposta a demandas pontuais das populações, mas em razão do todo justo e razoável. De forma a não se tentarem com falsos profetas. Só nesta base via possível a manutenção da democracia, como travão do fascismo à espreita. Adivinhava a desconfiança e o gozo que tais pensamentos inspiravam em mentes mais instruídas e atraentes. Ainda assim, insistia. Apesar de nada disto ser apelativo, nada disto dar mostras dos dias correntes.

       Via a retribuição do trabalho numa base de relação horizontal entre a propriedade dos meios de produção e a força de trabalho, em atenção a estarmos face a dois sujeitos que concorrerem para o objectivo comum: o lucro e o crescimento da empresa, que deverá ser partilhado de forma igualitária. Acreditava no fim efectivo do arcaísmo do dar emprego. Nada se dá. Troca-se. Mesmo sem a compropriedade dos meios de produção do trabalhador, quando muito o dono da empresa vende o posto de trabalho a troco do serviço e o funcionário vende o serviço a troco da retribuição.

        Estava ciente da necessidade da estrutura hierárquica nas unidades de produção. Se a horizontalidade da relação laboral era possível na propriedade e na distribuição do lucro, nunca o seria na gestão, onde é preciso haver cadeia de comando. Acreditava na progressão profissional em função de objectivos quantificáveis e defendia a intervenção do estado, em matéria de salários e de progressão profissional, cingindo-se à definição de regras claras e objectivas quanto aos critérios de avaliação e eficácia nas diversas áreas. Seriam determinados através da legislação dos factores determinantes do salário x ou y, em função da conjugação de critérios objectivos e mensuráveis, como a assiduidade, a categoria profissional, a formação, o desempenho, a criatividade, a rentabilidade ou outros. Com mecanismos de fiscalização eficazes, que pusessem cobro às previsíveis manobras de contornar a lei. As empresas teriam de se sujeitar aos critérios definidos, imutáveis a cada legislatura e reflectidos para as seguintes. Cederia o liberalismo em prol do bem-comum. O centralismo socialista, em moeda de troca, emagreceria substancialmente, saindo da esfera dos negócios, território próprio da iniciativa privada. Libertaria os sectores mantidos reféns e deixaria de intervir e subsidiar a economia de forma a deixar de a enviesar. Decretando regras claras, objectivas e justas, desvinculadas dos diversos lobbies. Actuaria como árbitro e não um concorrente gigante e desleal no mercado livre. A Margarida acreditava no centralismo regulador e numa economia a desenvolver livre, mas regradamente.

        Não se resignava às novas correntes de pensamento que profetizam como consequência do caminho da automação do mundo moderno e tecnológico, a desocupação de cerca de um terço dos habitantes do planeta a quem, como há dois mil anos, é preciso dar pão e circo. Pensamento que incorre do deslumbre ou da demonização da robotização e da sua potencial perfeição, e na falta de constatação de para cada robô serem precisos vários indivíduos que o criem, usem e corrijam os defeitos. E outros para os abastecer de energia, transportar, fazer a manutenção, enfim, infinidade de acções que escapam aos distraídos do essencial: a iminência de conflitos e desastres naturais à escala mundial, o ajuste certo da densidade populacional do planeta.

        De qualquer modo, percebia a necessidade de suprir as deficiências económicas dos mais desfavorecidos. Razão pela qual, via com bons olhos o rendimento universal experimentado em países do norte. Ao estado compete, através dos impostos cobrados, conceber a redistribuição justa, sendo vantajoso criar o rendimento universal graduado em dois escalões. No primeiro escalão, dirigido em especial ao grupo constituído pelos que podendo, não trabalham, seria dado o mínimo de subsistência, a estender todos os cidadãos, fosse qual fosse a sua condição. No segundo escalão, compreendido pelos que façam prova de não poder trabalhar, seria dada o mesmo valor do anterior acrescido da compensação pela contingência, valor correspondente ao considerado vida condigna. Aos primeiros porque a sociedade comporta sempre margem de gente avessa às regras de convivência em comunidade, mas seria desumano recusar o mínimo de sobrevivência. E porque a justiça da medida seria perdida caso se não estendesse a todos, o oferecido apenas a alguns. Aos segundos, porque aos respeitadores das regras mínimas de convivência, ou aos que não as infringem voluntariamente, devem ser dados meios para uma vida condigna, independentemente da sorte a que estão sujeitos.

        É de mim, ou esqueceste a Ana Paula? O Vicente, ao aproximar-se e ler o último capítulo. Sim, distraí-me, ela estava a ler a Comezinha de 1991 e levantei voo, respondeu a Margarida, ainda absorta pelo manifestado. Estou a arriscar-me muito, não é? O namorado riu. Que queres que te responda? Avante camarada? Se nem tu estás convencida. Queres é apoio. Mas não vais ter. Nem penses, concluiu ele. Ela encolheu os ombros, balbuciando: vamos então voltar à história.






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