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Final da tarde de feriado. Um dia atípico. Ao fim de tanto tempo a romper cedo da cama, acordámos quase às três da tarde. Ontem deitei-me já ia avançada a madrugada, mas nada fazia querer que dormisse tantas horas seguidas. Cansaço extremo dos últimos dias e sonos finalmente refeitos.
Rebobinando. Passam poucos minutos das sete da tarde, o Nuno está ao piano - começou pelo Ave Maria. Toca-o sempre que vamos fazer uma viagem por mais pequena seja, e também à chegada; hoje não há saída, mas é um fim de tarde doce. Agora rola o Adágio de Albinoni. Há uma hora fomos ao Continente, não fazer compras, mas uma transferência no multibanco amovível, já que o único banco da zona, que havia encerrado portas há um ano, agora retirou mesmo as caixas ATM. Com optimismo considero a hipótese de alguma outra instituição bancária arrendar o espaço e iniciar ali actividade, mas bem sei que não é provável.
Em seguida, fomos ao chinês comprar nova série de luzes para a árvore de Natal. Lá as colocámos a medo do Ritz voltar a roê-las como fez o ano passado, roubando-me uma das alegrias maiores da temporada: adoro a simplicidade do cintilar das quatro cores paradas ou a piscar lentamente – detesto o modo rápido. Este ano o dono da loja chinês teve de me alertar para o facto de trazer a caixa errada, de uma só cor. Modernices em que nem reparei, valendo a atenção e cuidado dele que imaginou e bem que quisesse as tradicionais. Ah e tal, coisas kitsch, nada de genuíno espírito natalício, o dos dogmáticos, dos conselheiros e da pseudo-erudição - não, não e não, hoje não estrago o dia com essa gente.
Está quase a fazer um ano sobre o internamento para o bypass gástrico, que resultou em menos 40 e poucos quilos – desde o final do Verão não perco peso e julgo seria suposto perder ainda que pouco até perfazer o ano e meio. Não me preocupa, se ficar assim ainda que considerada gorda para os padrões das tendências, ficarei muito bem. Deverei ter cuidado, isso sim, para não voltar a engordar já que me foi dito nas últimas consultas no Santo António que é muito vulgar, mesmo no caso do bypass gástrico, os pacientes voltarem a ganhar peso, nalguns casos para valores pré-operatório. Agora o Nuno toca as Ilhas dos Açores dos Madredeus – lindo.
Antes disso estivemos a montar a árvore. Como todos os anos retiro as caixas da prateleira de baixo do guarda-fatos – nesta casa não há como em Bessa Leite arrumos e despensa -, coloco tudo no tapete da sala, e a primeira tarefa é do Nuno: montar a árvore. A mim compete-me decorá-la, o que é muito simples por ter pouca tralha, e colocar as restantes escassas peças pela casa: a mini árvore e a vela no cantinho do Nuno em cima do piano como desde início em Bessa Leite, o presépio de loiça dado pela minha cunhada e irmão em cima dos livros na estante do meu +1, o anjo e a bolinha de vidro da neve dados por amigas no aparador, e o presépio que está todo o ano na mesinha cabeceira passa para a mesa de apoio ao sofá.
Neste meio tempo o Nuno parou de tocar e veio pedir-me um café. Boa ideia, faço dois cafés e trago um para a mesa do computador. Gosto de ir bebericando o café quase frio, por falar nisso, está frio fora do +1, aqui tenho aquecedor; ontem estavam 16 graus na sala, como em toda a casa não aquecida. De referir que tenho a janela da casa de banho de serviço um pouco aberta 365 dias por ano, por ser a divisão onde está a areia do gato - vá, e por gostar de arejo - e a porta sempre entreaberta para o gato cirandar, pelo que é impossível aquecer a casa.
Com o desvario das horas em dia feriado, vamos jantar tarde, talvez lá para as dez – em miúda jantava por volta das nove e meia, mas cá em casa costumamos fazê-lo cedo. Neste momento o Nuno faz soar o Vincent ao piano – durante anos foi a música que mais vezes pedi que tocasse. Quando me diz: - hoje os dedos não estão a obedecer, está-me a sair mal -, peço-lhe que toque o Vincent, já sei que sai bem, sai sempre bem e eu já não choro de cada vez que a toca. Bom, às vezes lá calha. Nos primeiros anos era comum ao fim-de-semana choradeiras pegadas ao som do piano. Choro de alegria, de sonho, de comoção. Desde que vivemos juntos é raro o dia em que não peço ao Nuno para tocar uma ou duas músicas. É hábito no final do almoço à semana duas ou três, antes de ver na aplicação do telemóvel o horário do autocarro e sair disparada, tantas vezes a meio de uma música.
Entretanto o Ritz veio cheirar a caneca do café e através do farejar da ponta direita da mesa do computador, alertar-me para a falta da almofada dele. Interpreto o que me diz, sem grande convicção. Há dois dias cheguei a casa e nada de Ritz. Imaginamos que estivesse dentro de algum armário ou gaveta, mas desta vez não. O Nuno tinha fechado os estores e lembrámo-nos da hipótese de ele ter escapado no momento de abrir a vidraça para puxar o estore – o nosso do quarto tem o manhoso tique de não descer sem uma ajudinha extra a puxá-lo. Abri o estore e a janela e lá estava o sacripanta. Quer dizer, passo eu as manhãs dos fins-de-semana cheia de cuidados para que não fique lá sozinho e o Nuno, por não ver, tranca-o na varanda. Estava gelado, mas como sempre acontece quando se passam episódios do género, nem uma miadela. Em momentos de stress este gato fica totalmente mudo. Mais, nessa noite vim sentar-me aqui no +1 a escrever, e ele ao fim de tanto tempo resolveu tentar enfiar-se atrás dos livros da estante, como fazia para se proteger nos primeiros meses cá em casa. Atirei-me logo às interpretações felinas: estar preso ao frio e chuva mais de uma hora despertou ansiedade, a memória de tempos adversos, daí a procurar o antigo local de refúgio.
Mas rebobinava, voltemos então. Este texto vai ficar particularmente longo e pouco atraente para leitura. Seja, tanto melhor. Ora, ia na montagem da árvore. Antes disso foi o pequeno-almoço tardio, às três e meia da tarde, convertido em almoço. Repeti os ovos mexidos, tomate cherry, azeitonas e pão. Desta vez, atenta a fome acrescentei um croquete grande aquecido no microondas para cada um. Metade o meu foi para o Ritz, que adora croquetes. Antes disso dormíamos e sonhei com a torneira da casa de banho e um telefonema para o canalizador. Um sonho prosaico: preciso realmente de chamar o Sr. M., canalizador. A base da torneira está a verter. Aviso à navegação: é usar a outra casa de banho antes que a água comece a infiltrar.
Ontem estraguei a noite com uma indisposição costumeira. Falta de bom senso meu ao perder tempo dando atenção, cada vez menos é certo, ao que não merece. Estava tão bem disposta ontem. Para quê estragar a disposição com aquilo e aqueles que só destroem. Na aparência de conceberem, de criarem valor, secam, arrasam e subvertem tudo quanto é belo e são. No hábito das certezas e dos juízos fáceis, não compreendem, nem sentem a beleza nem a integridade. Usando aparente sofisticação e complexidade na argumentação correm atrás do artifício. Gente afectada em bicos de pés e habituada a não considerar nada nem ninguém, apesar do aspecto bem intencionado e dos elogios balofos - gente que floresce como as ervas daninhas. Tudo quanto fazem é devorar e aniquilar o que tem valor para enaltecer egos inchados. Antes disso, estava a começar a escrever alegrias - a deixar-me ser eu própria, sem perder tempo com balofices –, ontem à noite irremediavelmente estragadas.
Antes disso jantei arroz de polvo. A minha mãe fez a calda e trouxe-me no tacho. Bastou-me juntar o arroz. Comi pouco por ainda estar com dificuldade em digerir – vai e vem a sensação. A sorte é que o Nuno estava com fome; não sobrou. A tampa do tacho vinha presa com uma fita de nastro branca e a recomendação: não deite fora, ponha dentro do tacho quando mo devolver. Recordou-me a avó, nascida no decurso da Primeira Grande Guerra, vivida em Espanha na Guerra Civil, passando pela Segunda Grande Guerra e a Revolução. Tudo isto se reflectia na quantidade dos elementos de retrosaria que guardava para acautelar o futuro. Ainda conheci os cartões com dezenas de colchetes, botões, agulhas. Fita de nastro, galões. Linhas, montes. Temos de estar preparados. A memória dos racionamentos. E disse a minha mãe ontem: devolva-me a fita de nastro, ainda vai dar para umas tantas fitas de pendurar panos. Talvez ainda sobre para si, como as da avó. Lembrei-me dos lençóis que o Ritz me rasgou, convertidos em panos de limpeza pela dona L.. Gosta da costura, a dona L.. Chegou a trabalhar numa fábrica de confecções, antes de ter o próprio negócio de venda de sofás. Sofás bons, de qualidade. É da loja dela o cadeirão de braços com 22 anos que estofei de novo; vendeu vários sofás entre os meus familiares. Mas correu mal, ao fim de 15 anos faliu, ficou com dívidas ao Estado que foi honrando, o marido adoeceu, e começou a trabalhar prestando serviços domésticos em várias casas, algumas de antigos clientes.
Antes de tudo isto, ontem estava na empresa a trabalhar. Foi um dia quase tão agitado como o anterior, com a diferença de ter gasto algum tempo a espreitar os blogues que sigo a divertir-me com a boa onda que ontem reinava. Fui deixando um comentário aqui, outro acolá, a sentir-me em boa companhia. Não devia dizer isto por poder parecer indelicado e injusto, mas a verdade é que apesar de em 90% do tempo estar de peito aberto para o que se vai desenrolando, há momentos em que penso: vais voltar a ter desilusões. Olha as aparências, rapariga. Olha as aparências. Muita simpatia, muito elogio. Muita ilustração. Olha o revés. Desde o final do século passado, não seria a primeira nem a segunda vez, a última há bem pouco tempo, de tudo o que tem boa aparência se desfazer num olhar mais atento na verdade crua e dura da falsidade, da mentira e da grosseria dissimulada em boas palavras. Não é que não faça parte da vida, mas sempre gera pequena mossa, e é tonto não aprender com as lições do passado.
E ontem no fim do dia de trabalho, um mimo especial das duas colegas com quem partilho o gabinete: um presente dado em embrulho cuidado e mensagem bonita para abrir no fim-de-semana. Uma lição aprendida nos últimos meses: como a presença nova de uma pessoa mais delicada na sala pôde mudar para melhor as relações mais tensas entre quem está essencialmente focado no trabalho. Gestos pequenos e simples que mudaram para melhor os nossos dias. Espero ter aprendido, admito ter andado muito distraída.
E antes disso, logo pela fresca, a mensagem de uma amiga a confirmar presença no fim-de-semana. Alegria. Seremos 21. Gosto do número. Éramos para ser 26, falta a vermelho para os amigos C, em Londres, e R., a trabalhar em Lisboa e a minha enteada pela mesma razão. Estão perdoados, mas se para o ano ainda tiver emprego, estão novamente intimados e vão ter de arranjar justificações em papel azul 25 linhas. Este ano, depois de vários sem festejo, que aliás se circunscrevia a juntar em casa pais, irmãos e sobrinhos, este ano, dizia, se Deus quiser (é bonito dizer isto, não é?), seremos: pais, nós, irmãos, dois primos, três amigos e caras-metades, sobrinhos e primito júnior. Os pintainhos.
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