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Só se tivesse perdido completamente o juízo ou a capacidade de avaliação da realidade e não fizesse a mais pequena ideia do que são as leis que regem as relações internacionais é que não perceberia que o que se passou na Ucrânia foi uma invasão e não distinguiria de modo claro o agressor Rússia do facínora Putin da agredida Ucrânia - não acordei para a questão há dois meses, já me referi à previsível invasão em Abril de 2021, aqui e aqui, tal como me foi instintiva a tomada de posição desde o primeiro momento desta segunda investida de Putin na Ucrânia, aqui e aqui, sobre cujos antecedentes já aqui tive oportunidade de explanar.
Malgrado os forçados argumentos baseados no vínculo histórico-cultural comum esgrimidos pelos defensores da posição de força russa, a ingerência de Putin ao longo destes 20 anos, máxime através Viktor Yanukovych, é manifestação evidente do esforço de hegemonia regional russa na tentativa de impedir um Estado Soberano de prosseguir os seus interesses ao dar os passos necessários para se juntar a entidades supranacionais - no caso União Europeia e NATO - em clara violação do direito da liberdade de associação entre estados.
Usando de um tipo de manha que já não passa no tempo moderno face à capacidade da comunicação social desmontar a cada minuto as mentiras forjadas - e, diga-se em abono da verdade, com igual capacidade da mesma comunicação social para as criar em favor de uma qualquer campanha de mentalização tida momentaneamente por superior - Putin foi preparando a invasão ao mesmo tempo que a desmentia, tentando enganar o mundo e acabando por investir contra o país vizinho, independente desde 1991, sob pretexto de manter a paz nos territórios separatistas de Luhansk e Donetsk. O feitiço virou-se contra o feiticeiro sendo os russos confrontados com o inigualável espírito e capacidade de resistência ucraniano, apoiado pelas boas intenções das vozes internacionais audíveis e pelo fornecimento de equipamento militar por diversos países ocidentais.
Apesar da contra-ofensiva do país cuja soberania foi violada, a dura realidade no terreno deixa a descoberto um cenário de destruição das principais cidades ucranianas, e das vilas e aldeias que, como bolsas de resistência, ficam a caminho desses pontos urbanos. Os ataques com misseis de longo alcance russos destruíram não só muitos dos activos militares ucranianos, como foram bombardeadas zonas administrativas, residenciais e hospitais. O caso mais chocante de crise humanitária é talvez o da cidade portuária de Mariupol, no sudeste da Ucrânia que, pela sua posição estratégica de acesso ao Mar de Azov, foi alvo de cerco e bombardeio durante semanas pelas forças russas, causando centenas de mortes de civis. Nas últimas semanas equipas de voluntários reúnem relatos e provas no terreno de crimes guerra e infracções dos direitos humanos.
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Há quase 20 anos talvez me satisfizesse com uma posição maniqueísta da situação, vendo de um lado a vítima e do outro apenas um único agressor. Quando tive o primeiro blogue - creio que em 2003 - lembro-me da reagir mal às críticas à hipocrisia norte-americana. O mundo dividia-se entre posturas anti-comunismo e anti-americanismo, assemelhando-se às discussões Porto-Benfica por adeptos fanáticos. À época era uma tonta que tomava partido pelo lado americano. Típica discussão infantilóide na qual só me perdoo ter alinhado por na altura estar na casa dos 20 e saber pouco da vida. Por isso me é tão estranho continuar a ver as mesmas lengas-lengas e a forma leviana de tratar a guerra em gente com idade para ter juízo e experiência de vida da qual não parece tirar lições.
Há uma série de questões que sempre que se colocam despertam reacções raivosas inconsequentes de gente excitada ou fanáticos, habituados a viver num mundo pintado a preto e branco pela comunicação social menos exigente, que são meras decorrências do pensamento de quem não gosta de ser leviano quando tenta perceber a realidade em que vive.
As razões do ímpeto belicista de Vladimir Putin estejam ancoradas numa estruturante mágoa pela quebra de status da Rússia na geopolítica internacional com o colapso da União Soviética e numa visão imperialista e não democrática do mundo, ou tenham também por base um ressentimento anti-americano pela preponderância dos Estados Unidos nas relações internacionais através do uso da força militar, não devem ser negligenciadas ou omitidas sob pena de não se perceber o que está a acontecer.
Tal como a inegável e crucial ajuda norte-americana à Europa na Segunda Guerra Mundial - e, sobretudo, na sequência dela -, o seu papel de grande país democrata acolhedor de milhões de emigrantes fugidos da pobreza e da violência de estados totalitários e a partilha dos valores ocidentais, não nos deve fazer reféns da gratidão e cumplicidade, mantendo-nos com palas nos olhos, cegos às evidências dos interesses em jogo nos dias de hoje.
Não é por a China ser um país autocrata desrespeitador dos direitos humanos que deixa de ser verdade a acusação aos Estados Unidos de promoverem ou facilitarem a Guerra na Ucrânia como forma de lucrarem economicamente com a substituição do fornecimento à Europa do gás russo pelo gás norte-americano, numa altura em que estavam com maior dificuldade em escoá-lo.
Não é por não merecerem todo o nosso apoio e ajuda que não é notório que os martirizados refugiados ucranianos tiveram maior compreensão dos restantes europeus que acorreram a acolhe-los do que os escoiceados refugiados sírios. E falar em migração económica num país destruído por 10 anos de guerra, com a participação de diversos países ocidentais e seus interesses, e onde foram usadas armas químicas não abona muito a favor de quem invoca para a Ucrânia toda a defesa dos mais nobres valores mas é incapaz de ter a sensibilidade de perceber que os direitos humanos não são bandeirinhas para hastear apenas para o lado daqueles com quem simpatizamos ou para o lado das vítimas dos que detestamos.
Para terminar, deixo a sensação que decorre em qualquer alma com um pingo de compaixão pelo sofrimento alheio: o absurdo hiato entre o cenário de crime e violência circunscrito à Ucrânia a quem os países europeus e demais Ocidente vai fornecendo armas para se defender ao mesmo tempo que tudo fazem para que o cenário de horror não extravase fronteiras, assistindo à tragédia com a leve penalização do agravamento temporário da inflação, que acabará por favorecer as suas economias.
O pretexto tão real quanto conveniente da ameaça de conflito nuclear tem permitido à Europa e aos Estados Unidos manterem-se confortáveis enquanto a guerra está circunscrita, de nada valendo a regra, noutras circunstâncias tão invocada - desde a intervenção da NATO na Jugoslávia para defesa dos direitos humanos no Kosovo -, de que as intervenções militares podem ter justificação no caso de violações maciças dos direitos humanos, permitindo mesmo a invasão de um Estado Soberano.
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