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A noite passada sonhaste com traição em ambiente juvenil. Eras a traidora e tudo se conta em poucas linhas: um rapazinho, adolescente como tu, aproximou-se e sentiste-te envolvida e tocada – não vale a pena soltarem a imaginação porque a coisa foi bem inocente -, sentiste remorso porque vias bem a cara e expressão de outro rapazinho, teu namorado, que não só fez figuras tristes como te induziu no ridículo para te perdoar.
O teu sentimento no sonho era um misto de remorso ou peso de consciência (tão desusado) e irritação por te prestares a figuras ridículas. Absténs-te de descrever o cenário, mas conheces a simbologia associada. A psicanálise muito debitaria acerca do sonho, sobretudo, se te esmerasses a intensificar, intelectualizar e densificar o enredo e a enriquecer a cena. Nunca para aí estiveste virada, não tens a menor pachorra para complicações e até nos sonhos és linear – não tens paciência para a psicanálise nestes tempos em que floresce o negócio da terapia. Tudo rende análise, teses para chegar a conclusões pré-definidas. Litros de tinta ou metros de pixéis de sabedoria e acesa competição entre portadores de conhecimento profundo e estruturado sobre o que sentem e pensam os outros.
A ti chegam explicações singelas. Ontem à noite viste imagens das arábias. De beleza incontestável. E sofrida, podes supor - afinal não é sempre sofrida, a verdadeira beleza? Não esconde dramas e tragédias? Cenários de riqueza, extraordinário bom gosto e delicadeza, em tudo diferentes do peso da ostentação a que nos habituamos em palcos a que a mentalidade dominante cobre com os rótulos da elegância. Talvez nem tudo seja mau, talvez o artifício, a imitação do belo nos proteja daqueles sofrimentos que a verdade carrega. Além dos cenários, viste a cara de um dos protagonistas: sem que te detivesses nas razões, um rapazinho novo – talvez de 20 anos – prendeu-te a atenção no momento em que deslizavas as imagens. O sonho trouxe-te os motivos. Reflectes: passamos a primeira metade da vida a tentar dar o ar de mais entendidos do que somos e a segunda a desejar o regresso à inocência perdida. O teu passado juvenil não tem histórias de traição a revelar. Mas alguns dias do teu presente estão envoltos em desânimo provocado por realistas debilidades, dores e vulgaridades - esses pós soezes que sempre pairam no dia-a-dia de gente que respira. Essa realidade custosa faz-te evocar a pureza perdida como guia de confiança. Toda a imagem do sonho é de beleza expressa na alegria jovial e terna dos rapazes e estragada pela traição e remorso. E talvez recuperada pelo perdão. Não te importas de ficar com o papel de vilã. Nem de inverter as mais banais circunstâncias da vida. Não interessa a verdade do acontecido e das vidas que existiram de facto. Interessa questionar se a traição, a mera ideia de trair ou a perspectiva de vir a trair não são apenas uma escolha entre duas formas de enganar. A quem escolhes trair na vida? As balelas da psicologia e do esoterismo aconselhariam não te traíres a ti própria, como se isso resolvesse alguma coisa, como se não fossem o acaso e o sábio tempo a pôr os pontos nos is.
E dás por ti a recordar uma conversa de há meses em que alguém se zangava com um poeta maior por escrever sobre o que supostamente não experienciara. Pensar os sentimentos é fingir viver? É ludibriar o leitor? Revelará menos integridade e emoção do autor? Só se deve acreditar em vidas notoriamente cheias de movimento e acontecidos? Estrategicamente testemunhadas por um grupo de anuentes que dêem credibilidade às grandes aventuras, ao grande protagonismo. O que estará para lá dos tratados, estudos e biografias de extraordinária seriedade? Quilos de tinta e metros pixéis de certezas acerca do que sentem e pensam os outros. Para lá destas crenças desenrolam-se vidas com ou sem ocorrências de superfície a narrar e examinar, decorrem vidas longe das teses muito estruturadas, muito rigorosas, muito sábias.
O que te vale? Viver com alguém inteligente e seguro o suficiente para ler um post como este com a mesma naturalidade e grau de abertura com que leria um folheto de instruções para montar uma estante. Alguém a quem contas tudo quanto de importante te passa na cabeça e coração, por mais estapafúrdio seja. Bem, quase tudo, mas o quase é por uma questão de bom gosto e reserva de consciência e não um quase de salvaguarda de razões e emoções que comprometam a confiança mútua, que tem sido inabalável e assim será mesmo que tudo o resto possa ruir. Resumindo: não escondes o que pensas e sentes, o que ficou expresso neste post e também o que não ficou, repetes, não escondes o que pensas e sentes, sobretudo, de quem mais confias. Tens uma colossal falta de talento para a dissimulação.
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