Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Sempre me foi difícil fazer passar e ideia a quem cresceu na cidade de uma melhor educação no campo. Passei os primeiros anos de vida entre o campo e a cidade. Não é fácil num mundo que traduz educação por alfabetização e acesso a canais de informação e cultura - além de uma parafernália de modas que vão do modo de vestir até aos tiques de linguagem ou hábitos de consumo -, passar a ideia que há um saber prévio a esta sofisticação, que se traduz no respeito pelo tempo e espaço. Pela natureza. Pelas plantas, animais e pessoas.
A dureza da vida rural levou a que muitos dela se afastassem, feridos pelas dificuldades e injustiças económicas e sociais que decorrem das relações de poder naturais e humanas, muito mais aguçadas do que as da cidade onde salvo o mundo marginal, as arestas foram amenizadas pelo desenvolvimento económico, o estado social e o aparente amparo de vizinhança próxima.
Falar em aceitação dos tempos da natureza, da têmpora dos animais, dos destemperos dos homens, dando-lhe nomes fáceis de entender, por corresponderem à lógica e à verdade dos factos, é remeter os citadinos para um mundo que com esforço querem esconder por vergonha das origens, por legítimo medo de regresso à crueza da vida sem subterfúgios da moderna linguagem psico-jornalística.
Como voltar a viver num mundo onde a morte é patente seja no reino vegetal seja no animal e onde se fala desabridamente dela, sem pejo? Como voltar a viver num mundo onde as palavras sobre sexo são directas e objectivas, sem meias-tintas? Como voltar a falar abertamente num mundo no qual o jornalismo e a psicologia burgueses descobriram que sempre há culpados por todas as acções que causem efeito negativo, ou menos positivo ou, até quiçá, menos desejável aos apetites da circunstância?
Aceitar as leis da natureza está para o mundo moderno, como o diabo para os medievais. A culpabilização do vizinho do lado por tudo de mal que aconteça, ainda que o responsável pelo estrago seja um raio caído do céu, é o que mais define a realidade presente. E toda a explicação de ciência que exista para descrever o fenómeno da trovoada nunca será suficiente para demover a necessidade do homem de culpar outro por todo o mal que acontece. Será outrossim distorcida até servir de prova de culpa do outro, através de elencar de factos e deduções que sempre darão aparência de grande rigor e racionalidade, a contrastar com as intuitivas leis naturais - muito pouco apelativas para os amantes e cegos devotos dos fact check, dos conceitos, paradigmas e dinâmicas, das certezas absolutas.
Com isto quero apenas dizer que não seria de todo mal pensado voltar a perceber que as relações do campo feitas de maior respeito pela natureza e pelos outros – e que, em regra, os citadinos não percebem porque confundem educação com etiqueta e hipocrisia – comportam lições importantes para este novo milénio.
É natural que Portugal contemporâneo permaneça na cauda da Europa sendo o país audível francamente provinciano e pretensioso - desdenha, maltrata e zomba do mundo rural ou tão só de tudo quanto vai além dos nichos turísticos de Lisboa, Porto e Algarve encarados como exemplos de grande sofisticação. Não vamos longe, não tendo referências de personalidades para admirar e servir de exemplo, mas antes escaladores sociais ridiculamente deseducados e ignorantes apesar do muito parlapiê. Restaria a existência de uma elite intelectual que nos salvasse - mas essa é de fancaria: a exemplo temos os humoristas do regime, os poetas do regime e os escritores do regime, sempre em bicos de pés ansiosos por um o lugarzito, sempre na miragem do amparo do sistema. E um rol imenso de académicos e gente da arte e cultura desfasados da realidade e sem um pingo de respeito pelos compatriotas e os seus reais problemas.
O excesso de sofisticação, aliás, a aparente sofisticação, alicerçada em espiral de retórica oca por já não radicar nos princípios que deveriam nortear a vida em sociedade, fazem o mundo actual distanciar-se da noção do que está certo ou errado, ou seja, daquilo que é melhor ou pior para a vida dos seres humanos e da natureza.
A aceitação das leis da natureza não na medida de uma total e acéfala resignação, mas de uma ponderação racional das medidas de força em causa poderia desenjoar-nos deste lodo de mediocridade balofa em que vivemos. Desde que posto o travão na competição e ambição desmedida, desfasadas das necessidades e capacidades humanas e naturais. Isto é, procurando um equilíbrio com a natureza.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.