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Nas leituras distraídas tropecei num singelo postal com uma recordação de infância envolvendo uma espécie de limusina, acenos e pregos no prato, daquelas que revelam a graça e inocência da imaginação quando somos pequenos. Achei uma memória deliciosa e pus-me a pensar se tinha qualquer coisa de equiparável. O que mais de aproximou foi o Brasa da Nestlé e a cama de dossel.
Comecei cedo a ser encarregue de fazer café no final dos almoços e jantares. Era todo um cerimonial: o pacote de café em grão da Sical 5 Estrelas - no meu tempo já não era uso escolher na Casa Cristina a mistura de robusta e arábica -, o moinho, a cafeteira de ir ao lume, o tempo de espera para que a água subisse através do filtro onde depositava o pó do café já moído no granulado certo. Mais tarde as máquinas eléctricas à americana, o bule de vidro cilíndrico no qual se fazia descer o filtro prensando o café na base, a de balão aquecida a álcool. Era um mundo.
Em criança passei uns dias a brincar com os meus irmãos às empresas. Noutra altura tivemos uma livraria na qual estava ao balcão - mais não era senão a minha tábua infantil de passar a ferro onde assentavam os livros que nos eram oferecidos sobretudo nos aniversários e Natal -, mas o principal projecto foi uma empresa no ramo automóvel: o mais velho desenhava os carros com talento - quando os fazia em plasticina até o motor era replicado -, os outros dois geriam o negócio e eu tratava da papelada. Com patente misoginia dos manos mais velhos competia-me entre outras tarefas fazer o café. Recordo-me da intrujice com que fui ter com a minha mãe a perguntar se autorizava uma vez sem exemplo que bebêssemos aquela pequena quantidade de café - mostrando-a depois de já ter vertido quase todo da cafeteira verdadeira no meu bule de plástico. O certo é que fosse como fosse para uma empresa funcionar era preciso que quem trabalhasse bebesse café e essencial que as minhas xícaras cor-de-laranja às pintas brancas servissem de adereço real ao mundo profissional.
Não estando autorizada a beber café, que eu própria fazia no final das refeições, insisti com a minha mãe que me comprasse o Brasa, o solúvel da Nestlé de cevada, chicória e centeio cujo anúncio na televisão me entusiasmava. Foi uma conquista. Lembro-me do gozo especial com que trazia a minha xícara de Brasa para a copa onde jantávamos ao mesmo tempo em que os adultos tomavam café. Trepava para o móvel encastrado que ficava no vão da janela, corria as cortinas ficando recostada na parede estendo as pernas sobre o tampo imaginando-me uma senhorita a beber café na sua cama de dossel com tule. Não matava apenas dois, mas três coelhos de uma só cajadada: bebia café, era adulta e tinha uma cama de dossel como a Emília do Sítio do Pica-pau Amarelo. Qual princesa?, era muito mais do que isso.
Curiosamente trabalho há vários anos na empresa criada por dois irmãos, com ligação ao ramo automóvel, e lá bebemos café Buondi. Em casa continuo a usar café Sical e um dos presentes que mais apreciei nos últimos tempos foi dado pela minha sogra: uma cafeteira de vidro pirex de ir ao fogão.
Uma vez escrito decidi que este postal vai para a série Tílias.
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