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Tu falavas. E é sempre mais bonito quando tu falas. Não consigo voltar a conversar contigo, como hoje cedo; explicava que tu não existes e tu condescendias comigo, dizendo: pronto, mãe, supondo que eu não existo e sou uma mera obra da tua imaginação, a que deste corpo e alma através de palavras, ainda assim, quero um irmão ou uma irmã. Filha ouve, isto era muito mais bonito. Não te precipites. Não era assim a seco. Agora só me ocorrem psicologias baratas que estragam mais ainda o momento. Não interessa mãe, conta-me. Como foi a conversa? Não sei mesmo, filha. Lembro de te explicar que nunca tive a pulsão de pôr no mundo um filho ou filha. Não será bonito, mas o facto é que o Ave Maria me toca mais pela beleza da arte do que pela beleza da maternidade. Como se a beleza da arte se despegasse da humanidade. E não pode despegar, minha filha, senão não é arte. A ideia de perfeição, além homem, além mulher, é o perigo maior. Tornamo-nos senhores de nós mesmos, e não somos. A maternidade prende-nos ao mundo, prende-nos à necessidade do bem. E por mais que nos queiram dizer que não se pode escolher entre o mal e o bem, por mais que digam que não existe essa fronteira, ela existe e está na maternidade, na vida. Se quiseres, na continuidade da maternidade. Se desejares ver o bem além da terra, das pedras, das plantas, dos rios, dos mares, tens de perceber que a maternidade nos reduz à dimensão de vigilantes do mundo e nos eleva à dimensão de elos do tempo. Que queres diz como isso, mãe? Que devemos saber quem fomos ao longo dos séculos, dos milénios. Que a maternidade é uma pequena centelha que nos dá sentido. E se não a experimentarmos de modo natural, ao menos tenhamos a sensatez de respeitar a beleza integral. Ao criar-te, minha filha, tenho a preocupação de não te despegar da humanidade, não só por convicção de que é o bem, como por amor à arte.
Excerto da Quinta, escrito a 20/08/2019.
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