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[...] até porque me começo a lembrar do que falávamos esta manhã. Contava-te [...] por razões que agora não vêm ao caso, estava sentada à secretária no escritório onde durante dois anos fiz de conta que um dia teria uma vida independente, com o rádio ligado. Era um Sanyo que a tua avó me deu na adolescência, talvez catorze anos antes. Foi o segundo rádio que tive, o primeiro era daqueles que tem relógio digital e despertador, encomendei-o à Eca, numa das vindas à quarta-feira ao Porto. Hei-de falar-te nas quartas-feiras da Eca, e das idas e das chegadas. Paguei o rádio com o dinheiro dos presentes de Natal. Tinha sete anos, quarto novo só para mim, e a solidão inteira para preencher com música e a voz dos locutores dos programas da noite, enquanto tentava dormir e me voltava a levantar, pegava em papéis, mexia nas canetas de feltro, tentava desenhar, olhava para o par de crianças, sentadas na erva rodeadas de ternurentos pintainhos amarelos e coelhos pardos, para a Heidi nos Alpes, com o belíssimo céu azul breu, onde brilhava redonda a lua cheia. Olhava a Rita, a enorme boneca de pano presa na parede, pernas e braços vermelhos, calções, pés e mãos azul-claro, blusa azul-escuro com bolas brancas, cara de palhaça e cabelo espetado amarelo áspero. Era Rita, porque fora dada pela tia Rita, timorense. E outra boneca de tranças também presa na parede, com pano de xadrez e seis ou nove bolsos, agora não me lembro, onde guardava os ganchos, os pentes e as escovas. Coisas importantes, à época. Não seria bem solidão, seria mais medo. Nas velhas casas grandes, rodeadas de árvores e longe no mundo, há rangeres nocturnos, há madeiras das portas dos guarda-vestidos que estalam e resmungam, lá fora há corujas que piam e cães que parecem mandá-las calar. Há sinos de duas igrejas que tocam de hora a hora, em horas desencontradas, como se o protocolo do tempo estivesse invertido, primeiro a imponente, de Unhão, depois a modesta, de São Cristóvão. [...] contava-te que [...] estava sentada na secretária, no escritório, e em vez de estar a preparar uma escritura de compra e venda para a imobiliária, ou a defesa oficiosa de um pequeno traficante, brincava com o screen saver do velho computador. Há época era possível personalizá-lo e fiz correr uns pequenos aviões da direita para esquerda no monitor, transportando uma faixa onde escrevi: play it again, Sam. No rádio Sanyo, e sem que eu pedisse, o Jorge Palma cantava o Deixa-me rir. Se tivesse sido a pedido, a música não seria essa, com certeza. Talvez o A Gente vai continuar. A emissão foi interrompida, e anunciaram que um avião tinha batido numa das torres de Nova Iorque. Limpei as lágrimas. Pus-me a caminho de casa a pé, como era costume. À época ainda não estava com a forte inflamação nos tendões dos pés, que no ano seguinte, me fazia arrastar com dores, diariamente, naquele caminho. Dói mais nos primeiros quinhentos metros, depois é suportável, pensava. E assim foi até me indicarem a pomada milagrosa. Mas no fatídico dia, vim para casa lesta de pés e pernas, simplesmente desordenada de cabeça. E por ali entre as antigas cerâmicas das Devesas, quase juraria ter visto a barriga de um Jumbo a rasar-me a cabeça. Cheguei e abri a porta, estava a Nazaré, a empregada lá de casa. A Nazaré era da Afurada, de família de pescadores. Mulher forte. Acendi a televisão e vi a imagem dos aviões a embaterem nas Torres Gémeas vezes sem conta, e o mundo a desabar tal como o conhecíamos. Vais-te rir, mas quando me lembro disso, penso sempre que é perigoso brincar com aviões nos screen savers dos velhos computadores enquanto se ouve Jorge Palma. [...]
Excerto da Quinta, escrito a 20/08/2019
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