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Ali a cinco metros já neste século estacionava a carrinha do homem da fruta. Um contra-senso, esse de numa quinta se comprar fruta, mas era assim, no fim. O vendedor, quando confrontado com pedidos de desculpa pelo tempo que aguardava, respondia que era um prazer estar ali, naquele idílio da sombra das tílias. Gostava de estacionar a carrinha no terreiro e encher-se daquele ar e aroma.
Até vinte anos antes no segundo tabuleiro, porque a Casa das Tílias era feita patamares ou socalcos a que chamávamos tabuleiros, estava uma das casas de caseiros, habitada pela última vez nos anos 70/80 pela Fernanda, o Agostinho e a Susana, que de lá saiu ainda muito criança, com os cabelos loiro muito penteados. Penteei-a vezes sem conta, ela sentada no mocho, como chamavam ao banco de madeira baixo, à porta da cozinha rústica sombria que conhecia bem. Eu a pé dobrada à volta dela sentada no dito mocho, aplicada a imitar a Eca a pentear. Ela com 3 ou 4 anos, eu com 7 ou 8. Muito se sofre para ser bela, dizia a Eca enquanto me fazia penar com o pente ao tirar os nós dos fios de cabelo.
E no mesmo encadeamento de casas, estavam as arrecadações a que os caseiros chamavam lojas. Foram-se de lá, mas vinham todas as Páscoas, durante anos, trazer o pão-de-ló. Uma das arrecadações era a das maças. Quando as fruteiras começavam a esvaziar, sabíamos que tínhamos de ir às maçãs. Tento-me lembrar como chamávamos ao espaço e percebo que não o denominávamos senão como nas maçãs ou nas batatas. Nas maçãs estavam as maçãs nas prateleiras do lado direito e as batatas do lado esquerdo. As batatas não grelavam depressa como as de agora. Dizem que tem de se pôr pó. Lá não via nada disso, a não ser batatas daquelas que o João e a outra Glória, os jornaleiros da quinta, apanhavam da terra, meses depois de as deitarem à terra. Havia sempre uma quantidade delas, as mais mirradas, que ficavam para a sementeira do ano seguinte. Depois de lavrado o campo, dos punhados de batatas plantadas despontava a rama com pequenas folhas verdes arredondadas, e crescia a cerca de 40 cm de altura, depois a flor branca e no fim os tubérculos prontos a serem colhidos. A porta das maçãs abria com chave tubular de ferro, das que ficavam penduradas no chaveiro na entrada de casa, eram muitas escuras grandes e pesadas. Entrava-se para um corredor comprido, com janela em frente ao fundo e prateleiras laterais de cima a baixo, estando as do meio carregadas de maças e batatas. Abrir aquela porta era descerrar o segredo do paraíso do olfacto. São memórias do nariz que ficam para uma vida inteira, e se mais houvesse para infinitas encarnações. Mas há uma sensação estranha: aquele espaço, aquelas prateleiras cheias de maçãs, anos mais tarde, pareceu-me tê-las visto numa sala de cinema ao assistir ao filme A Vida é Bela, de Bellini, carregadas de judeus. A antecâmera do gás. Desde então, não dissocio as duas imagens.
A casa dos caseiros era a cozinha, com lareira de pedra, e o quarto. A tangerineira junto à parede da cozinha, a pequena horta. E na outra ponta, depois das arrecadações, o buraco.
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