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Três Velhotes, colonização e gato

por Isabel Paulos, em 20.02.21

Faço este postal para desfazer equívocos. A ver vamos quantos mais crio. Conheço há muito a ideia de que na cozinha se devem usar bons vinhos. Supostamente a apurada caldeirada é preparada em bom vinho branco ou whisky. A mesma ideia ditaria usar-se irrepreensível Porto para regar os morangos – hoje em dia ninguém os corta e rega com vinho, sob a acusação de se melar e roubar à fruta os melhores benefícios. Pois, lamento muito, mas aprendi com a minha avó e mãe a escolher vinhos menos bons (não necessariamente maus) para efeitos culinários. Creio ser o que faz a maioria das casas portuguesas despretensiosas. O Três Velhotes é Vinho do Porto vulgar e barato, perfeitamente aconselhável para regar morangos ou salada de fruta - ah, já vejo os especialistas a espernear e aconselhar o saudável sumo de laranja ou de limão para o mesmo efeito.

O dos velhotes não é o único equívoco das nossas vidas. São tantos. Sobre África e a nossa presença em África são incontáveis. Podia recordar a história mais remota, mas por imperativos de lógica começo antes da Conferência de Berlim, promovida por chanceler alemão Otto von Bismarck, na qual se chegou a acordo quanto a divisão do continente africano entre as potências europeias, num desenho a régua e esquadro que naturalmente ignorava ou desconsiderava os sentimentos de irmandade ou de tensão entre reinos, tribos e etnias africanas. Começo então por recordar o Tratado de Simulambuco, assinado em Fevereiro de 1885 pelo representante do governo português Brito Capello, capitão tenente da Armada e comandante da corveta Rainha de Portugal e os chefes e oficiais do reino de Ngoio, que colocava Cabinda sobre o protectorado português.

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Para desfazer o nó em poucas linhas, simplificando ao máximo aquilo que penso sobre a colonização e descolonização, digo apenas que não discuto com o tempo. A nossa presença em África perdurou além do que seria expectável no quadro internacional hostil de guerra fria e a autodeterminação de países como Angola passou mais pelo joguete habitual de interesses entre os dois blocos, do que por um puro processo de descolonização. Acresce que pouco se fala do que eram as colónias antes do período da guerra colonial e seria interessante conhecer sem preconceitos essa realidade e fazer o contraste com o desenvolvimento económico e social verificado em países com Angola a partir da década da 60. Seria talvez prudente estudar os passos que foram dados no sentido de um maior respeito pelos direitos dos africanos – em profundo contraste com as tradições colonialistas -, como o caso da abolição do estatuto do indigenato em 1961, com acesso facilitado à cidadania portuguesa e inerentes direitos, no conjunto de reformas introduzidas por Adriano Moreira, Ministro do Ultramar. Perceber como no curto espaço entre os anos 60 e 70 Angola evoluiu significativamente seja no plano do ensino, primeiro com uma rede de ensino primário, mais tarde secundário e universitário, seja no desenvolvimento das infra-estruturas ferroviárias e rodoviárias. E além de tudo pensar como era difícil a alguns militares graduados introduzir junto dos antigos colonos módicas noções de respeito pela dignidade humana no seio de uma sociedade marcadamente estratificada.

Mas também perceber que reduzir a guerra colonial a uma luta pela libertação de uma nação é tão só ideia enganadora, por se desconhecer a multiplicidade de reinos, tribos e etnias ou simples grupos de interesse com aspirações distintas e facilmente manipulados ideologicamente por facções políticas instrumentalizadas pelos blocos internacionais. O embrião da subsequente guerra civil de 30 anos. Compreender que à época os Estados Unidos estavam fragilizados e a braços com a guerra no Vietname e a União Soviética pretendia substituir-se às potências europeias que iam abandonando o apetecível continente africano, impondo a sua supremacia sob a égide do comunismo. E que em Angola encontraram eco e respaldo nos movimentos de libertação como o urbano MPLA, constituído por uma comunidade de brancos, mestiços e de Mbundu (cuja língua é o Kimbundu) mais letrados residentes em Luanda e arredores, alguns funcionários públicos outros estudantes na metrópole, onde naturalmente começaram a conspirar na Casa do Estudante do Império de Lisboa, com apoio dos comunistas clandestinos, apesar de perseguidos pela PIDE. Já a UNITA, representante da Angola profunda, do povo Ovimbundo, o grupo mais populoso constituído por várias etnias (bailundos, huambos e bies) foi amparada mais tarde pela África do Sul, mas não pelos Estados Unidos, que apoiaram desde início a FNLA, oriunda dos povos Bakongos, do norte e do reino do Congo.

E, finalmente, tentar entender que no meio deste jogo intrincado a população portuguesa que lá vivia independentemente da legitimidade ou bondade da sua presença acreditava, em muitos casos, na autonomia de Angola: acreditava talvez muito ingenuamente numa evolução pacífica e que o país obteria um estatuto de autonomia especial. Não foi assim. Não pode ser assim. O que se verificou foi o abandono, a descolonização descuidada com prejuízo para os portugueses que lá estavam, mas sobretudo para os angolanos. Se bem que reduzir a coisa a portugueses e angolanos é simplista demais: afinal, quem era angolano e quem era português?

O último dos equívocos tem a ver com a razão para escolher adoptar um gato quanto prefiro cães. Apesar da maior inclinação para cães, também gosto de gatos e sempre me poupo ao trabalho e nojo de andar com saquinho na rua a apanhar cocós.

 






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